25 de maio de 2010

A arte da crônica (Final)

Bia Albernaz
O  cronista desfruta de muita liberdade porque, em seus escritos, pode ser um pouco ensaísta, um pouco ficcionista e um pouco poeta. Pode emendar um assunto no outro na maior desfaçatez e, fazendo isto com elegância, levar os seus leitores a entenderem direitinho porque reúne temas às vezes tão díspares como a observação de um porco-espinho, um jantar de gala e a alta dos preços no vestuário. Ao lado desta possibilidade de livre associação, a eventual introdução de personagens no meio das crônicas deu também tão certo que, em alguns casos, esses acabaram se tornando companheiros reais para seus leitores, tal como o Sobrenatural de Almeida, em Nelson Rodrigues; a velhinha de Taubaté, em Luís Fernando Veríssimo; ou a Tia Zulmira, em Stanislau Ponte Preta. Para eles, a crônica assumiu ares de historieta, relatos episódicos e anedóticos em que ao leitor, e não ao autor, cabe a conclusão. Isto porque o desenvolvimento do cronista como artista e escritor não se dá pelo compromisso em relação ao destino dos seus personagens. Um cronista se desenvolve justamente porque sabe parar e, aberto sempre, a partir de novas perspectivas, recomeçar. Fernando Pessoa disse: “Sou um homem para quem o mundo exterior é uma realidade interior”. O mundo se cria, quando participamos dele.
Aí está o grande feito de toda a minha vida. O óbvio vivia relegado a uma posição secundária ou nula. Fui eu que, com minha pertinácia, arranquei-o da obscuridade, da insignificância.  (Nelson Rodrigues)

24 de maio de 2010

Te vi na TV

         Arlette Santos
         Novembro de 2005. O fim do ano se aproximava e eu não me animava a tomar as providências para os festejos natalinos. No Natal, sempre comemorado em minha casa, vem filhos, cônjuges e netos, de Brasília, da Barra da Tijuca e do Uruguai. Em média, quinze pessoas. E eu faço questão de preparar o peru, as rabanadas, bolinhos de bacalhau e todos os pratos tradicionais da época em que eu era jovem.
         Mas o tempo passava e eu não me dispunha a sair em campo para adquirir, com antecedência, tudo o que era necessário, incluindo alguns presentes. Num sábado da segunda quinzena decidi ir ao shopping. Quem sabe o movimento consumista e o presépio que fora inaugurado dias antes me animariam?
         Lá chegando, logo na entrada, fui interpelada por uma jovem perguntando se eu poderia responder a uma pergunta. Notei uma pequena aglomeração de onde sobressaiam alguns equipamentos fotográficos. Minha primeira reação foi seguir adiante, mas então me questionei: por que não dar atenção a esta moça? Afinal, hoje é sábado e ela está trabalhando...
         - Qual é a pergunta?, consenti. E ela: Onde você guarda o seu racismo?
         Feita de forma tão direta, a questão não me pareceu fácil responder. Falar sobre o racismo seria bem mais simples. Respondi: Se o tenho, deve estar em meu inconsciente.
         Pediram-me que assinasse um documento autorizando o uso da minha imagem. Saí dali com uma sensação desagradável: a resposta me parecera incompleta. Chegando em casa não comentei o fato, e com o passar dos dias já o esquecera.
         Na semana entre o Natal e o Ano Novo uma de minhas filhas telefonou e perguntou: Lelette, você deu alguma entrevista na televisão? O Guga (meu neto de nove anos) estava vendo um programa e, de repente, todo alvoroçado, gritou: Mamãe, vovó esta dando uma entrevista na TV.
         Contei-lhe o que havia sucedido. Daí em diante foram inúmeros os telefonemas, emails, abordagens na rua por conhecidos e desconhecidos, fazendo os mais diversos comentários, cumprimentando-me, como se eu tivesse feito algo muito especial.
         Dias depois, quando estacionava meu carro junto a um supermercado, o guardador, que já me conhecia, disse: Vi a senhora na TV.
         Ato contínuo, abaixou-se para copiar a placa do carro. Sorriu para mim e completou: Vou aproveitar e fazer uma fezinha...

         Pois é. O natal tinha passado e eu nem havia percebido. E agora eu podia dar sorte para um quase desconhecido! Tenho de admitir: naquele fim de ano, meu inconsciente fez a festa.

20 de maio de 2010

O canto das estrelas

Barbara Gracie
Sob o véu da noite escura os pássaros calam, as pessoas dormem e os sonhos voam. O mundo faz silêncio para as estrelas cantarem. Entre os pés montanhosos dos gigantes de pedra estão os olhos dos admiradores do espetáculo. As estrelas abrem os olhos dos iludidos que olham para elas.

Quem olha para cima são os que sonham acordados. Perdidos por meros segundos contemplando a beleza do intocável. Podem sentir na pele e nas forças o tempo, mas olhando para cima, mesmo que por um momento, voltarão a ter
brilhos nos olhos e lembrarão, ou esquecerão, do que um dia foram ou deixaram de ser.

Em agradecimento, a Lua, dona desse céu, colhe do alto alegrias e lágrimas, uivos e canções, silêncios e saudades, arte e milagres. É na noite que as princesas escutam suas serenatas, os poetas declamam, as pessoas dançam e amam, sob o brilho lunar.

Fadas e querubins fogem de suas casas para observar as ninfas a brincar. As sereias cantam e penteiam seus cabelos enquanto marinheiros bebem nos cais. Segredos saem para passear, cansados de serem mantidos sob os raios cruéis da estrela do dia. Lembranças rodeiam mortais e imortais, contagiados pelos amantes que iluminam a escuridão.

A noite é acima de tudo dos amantes. Nela os soldados sangram os olhos tentando esquecer seus sonhos engavetados. E nela corações voltam a sorrir ao sentir de novo o toque da paixão proibida. Como num passe de mágica as almas entrelaçam-se sem medo ou pudor, ocultas pela proteção da tênue claridade da escuridão.

Aqueles que procuram a felicidade seguem o caminho das estrelas. Para as estrelas não existe amor proibido. As estrelas abrem os olhos dos desiludidos que olham para elas. As estrelas ensinam a sonhar.

11 de maio de 2010

A arte da crônica 3

Bia Albernaz
De tão trivial, a crônica pode se mostrar banal. De tão humana, a pretensão edificante pode se reduzir a elogios convencionais, carregados de palavras abstratas e conceitos enormes. Cuidado sobretudo com os conceitos enormes, como “justiça”, “amor”, “ética”, bons para serem analisados em dissertações, péssimos para os cronistas, sustentados pelas pontas concretas da existência. Contudo, atenção aos relatos factuais que, de tão comprometidos com a “verdade” do acontecimento, podem acabar se tornando relatórios ou monótonas reportagens, como se ao invés de um retrato, capturássemos a vida na formalidade de uma foto 3x4. Todo escritor deve se dar o direito de exagerar, de acrescentar um pouquinho de graça, ao inventar um personagem, ao misturar ficção e realidade, ao ousar desenvolver uns “e se”, “como se”, “quem sabe”.

10 de maio de 2010

Rua de Sant Joan


Maria Luiza Martins
Picasso sente um princípio de cansaço, trabalhou seguidas horas na pintura da tela grande, no centro do seu estúdio e, por breve momento, faz uma pausa apreciando as últimas pinceladas dadas, que ficaram bem no tom que queria. Buscou aquele efeito, pintando durante todo o dia. Na janela ainda bate a claridade, mas o atelier começa a perder a luz natural. Entardece, mas o sol ainda não se pôs. Vai até a janela e olha pra fora, para a Rua de Sant Joan, e avista os passantes lá em baixo, caminhando em direção à igreja, de onde o som dos sinos chama os fiéis. A tarde é fria, ele sente através da sua camisa de trabalho. Os transeuntes também sentem o frio caindo, todos caminham agasalhados. O artista gosta dos movimentos das pessoas pela rua. E da cor uniformizando as fachadas dos prédios, que já apresentam as janelas escurecidas, pois que a pouca luminosidade do fim do dia ainda não pediu o acender das luzes. A meia claridade cria tons que unem as calçadas e os passantes. Todo o conjunto faz uma cor de harmonia de sentimento que bate em seu peito, no compasso do tanto que pintou adiantando a sua grande obra interrompida. As tintas frescas da sua tela o cansaram por hoje. Aprecia o que vê lá fora. O peitoril da janela ainda recebe um resto de cor de sol que se despede.  Seu olhar se amansa e se envolve destas cores terminando o dia.  A noite está chegando como um abraço à Rua Sant Joan, tal como uma proteção à cidade. Debruça-se no peitoril, participando da tarde, e da rua. Picasso se emociona. Sente um misto de cansaço com o encanto inusitado da tarde. Logo é tomado dessa comoção doce do momento.

Ligeiro, pega um cartão e esboça o entardecer da rua amiga. As cores são do recolhimento, duma paz de fim do dia. Em rápidos gestos reproduz a sua rua, a sua querida Rua de Sant Joan.

1 de maio de 2010

Noite sem luz

Ângela Brancante
Naquela noite certo feiticeiro abriu sua janela revestida de matérias etéreas.

Os sons eram sons de cristais tremeluzentes no ar. A city, naquela noite, estava repleta de bons fluidos – cheiros de vida, verão e amor, cheiros  de hot-dog, pipoca, pizza, cheiro de infância. Todos os sentidos e instintos humanos estavam abertos naquela noite às escuras. Os bares vendiam seu veneno para preencher vazias vidas etílicas, goles de ferro derretido, continuidade abstrata da coreografia de sempre do ato apelidado de – vida. O mundo às escuras! Velas e lanternas formavam figuras, cavalinhos de fogo, bailarinas dançantes de um mundo encantado como num sonho infantil. Janelas coloridas  fitavam com  olhar-gato quem passava. Neste entre-ato, havia no ar uma comunhão silenciosa, iluminada apenas pela lua no alto do céu – o mistério da noite, a chuva que cai, a criança que brinca na pausa...

O feiticeiro fechou sua janela. Teve medo de quebrar a magia daquela noite sem luz.