29 de março de 2011

O jogo sério da poesia

Já se disse muito sobre a influência das Belas-Artes na formação dos homens, mas o resultado foi sempre como se ninguém estivesse a falar sério, e isso era natural, porque não pensaram na natureza da arte e, em especial, na da poesia. As pessoas atinham-se apenas ao seu lado exterior, pouco exigente, que evidentemente é inseparável da sua essência, mas que pouco corresponde ao caráter total dela; ela foi considerada um jogo, porque aparece na figura modesta do jogo, e, assim, como é razoável, não podia decorrer dela nenhum outro efeito que não o do jogo, a saber, a distração, o que é quase exatamente o contrário do seu efeito, onde ela existe na sua verdadeira natureza. É que, então, o Homem recolhe-se junto a ela e ela dá-lhe calma, não a calma vazia, mas sim a calma viva, onde todas as forças estão em atividade e só por causa da sua harmonia íntima não são reconhecidas como ativas. Ela aproxima os homens e reúne-os, mas não como o jogo, onde só estão reunidos porque cada um se esquece de si mesmo e não vem à superfície a peculiaridade viva de cada um deles.
(Excerto de uma carta de Hölderlin a seu irmão no dia de ano novo de 1799, quase à beira do séc. XIX)
***
Esta citação foi recolhida da Introdução ao livro "Hinos de Hölderlin", de Heidegger (tradução de Numir Lahodil). Que a poesia é um jogo, o poeta parece dizer sim. Mas vai além. Heidegger diz que tenta se aproximar da poesia de Hölderlin sem buscar ajuda na astúcia apressada, na erudição cegamente acumulada, nas sentenças pretensiosas, nem no fervor de sentimentos primordiais imaginários. Este último aspecto parece ser o mais obscuro deles, mas acho que a chave de sua compreensão está na constante tentação de nos entregarmos inteiros à nossa subjetividade. Sua resposta a todos estas tentações da intelectualidade moderna está no que ele chama de seriedade lúcida. Contudo, não me aguento e faço a pergunta: não poderíamos buscar a chave na seriedade lúdica?

26 de março de 2011

Cortázar: o ordinário e o extraordinário na gênese do fantástico

MBGLA
Julio Cortázar
Eu sei que faz cinco anos que estou numa das etapas mais negativas da minha vida. Mas sou tão pouco racional que não me ocorre a idéia de ir procurar um astrólogo e dizer: “escuta aqui, investigue esse assunto para mim”, porque sei que não vou ganhar nada com essa investigação. Tenho a sensação clara de que existe isso que as pessoas chamam às vezes de “destino”, e que num momento determinado se coloca contra você. [...] Tento assumir algo que sinto que me acontece, e contra o qual não posso fazer nada a não ser me defender com os meios que estiverem ao meu alcance.

Desde muito pequeno existe esse sentimento de que a realidade para mim não era apenas o que a professora ou minha mãe me ensinavam e o que eu podia verificar tocando e cheirando, mas que existiam, além disso, contínuas interferências de elementos que não correspondiam, no meu sentimento, a esse tipo de coisas. Essa foi a iniciação do meu fantástico. Quer dizer, não é um fantástico fabricado, como o fantástico da literatura chamada gótica, em que se inventa todo um aparato de fantasmas, de espectros, toda uma máquina de terror que se opõe às leis naturais, que influi no destino dos personagens.
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Posso dizer que as primeiras intuições que tive nesse plano, desde menino, foram tão normais e tão naturais como as que podia ter frente a qualquer manifestação tangível e aristotélica da realidade. 

Ou seja, uma espécie de aceitação prévia de qualquer coisa que os demais consideravam inexplicável, como um jogo de casualidades, ou como uma brincadeira de coincidências.

Desde criança desconfiei destas palavras: “coincidências”, “casualidades”. Porque me pareciam baratas demais. Na verdade, digo que fui um menino muito precoce e então tudo que existia de barato na inteligência daqueles que as crianças chamam de “os grandes” – ou seja, a família, minha família – eu notava, quase que com crueldade. Ouvia minha família falar e sabia, por antecipação, o que iam dizer. Porque um lugar-comum puxava o outro. Era um sistema já organizado de pensamentos em questão de política, de comida, de saúde, se o banho devia ser morno ou frio, se o bicarbonato fazia ou não fazia bem. E eu me divertia silenciosamente adiantando para mim mesmo tudo o que as pessoas iam dizer. Eu sabia que depois que minha mãe dissesse aquela frase,  minha avó diria outra que, na maioria dos casos, era a que eu tinha previsto. Emendavam de um lugar-comum a outro, de um juízo de valores a outro.
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A margem de pensamento dos adultos me parecia muito pequena no círculo da minha família, que era o único que eu conhecia. [...] Mas o fato é que, sendo precoce no campo das intuições, percebia no vocabulário dos adultos – aliás, um reflexo da realidade deles – que eles viam a realidade de um modo diferente do meu. Pois bem, percebia então naquele vocabulário uma espécie de desajuste.
Quando ouvia certos lugares-comuns, tinha a impressão de que provavelmente a verdade era o avesso daquilo. Naturalmente, a criança não diz essas coisas porque corre o risco de levar um tabefe, sobretudo nessas casas argentinas onde criança é criança e adulto é adulto e justamente por isso tem sempre razão. Nem precisa saber mais: basta ser adulto para ter razão. Mas, enfim, tudo isso é para explicar que não existe um momento no qual eu tenho definido o fantástico. Havia um mundo paralelo, misturado ao mundo de todos os dias, o mundo das escola e o mundo da casa, e eu me movia entre um e outro, flutuando.

Por exemplo, minhas brincadeira solitárias eram praticamente mágicas, totalmente diferentes das brincadeiras com meus amigos, que eram conhecidas. As minhas eram únicas: inventei um reino imaginário no jardim da casa, só para mim. Claro que eu sabia que era o jardim, mas sabia também que os grandes não sabiam que era ao mesmo tempo o “reino”. [...] Assim, no dia em que comecei a escrever poemas e contos, era quase inevitável que essa permeabilidade se abrisse. Na falta de uma palavra melhor, eu mesmo tenho usado “fantástico”.
Trechos de "O fascínio das palavras – entrevistas com Júlio Cortazar" (por Omar Prego) – trad. Eric Nepomuceno, Ed. José Olymplio, Rio de Janeiro: 1991.

SESC-Pinheiros (SP) abre espaço para leitores e novos escritores (Recado)

Sesc Pinheiros promove encontro de leitores e novos autores com escritores veteranos para bate-papo

Levando-se em conta as várias plataformas, dispositivos e suportes para a criação e distribuição da produção literária nacional, o Sesc Pinheiros desenvolveu o projeto "Escritores de Quinta", um espaço voltado para a apresentação, crítica, debate e produção literária multimídia. Realizado mensalmente, sempre em uma quinta-feira, tem curadoria dos escritores Bruno Cobbi, Edson Rossatto e Nelson de Oliveira.

"O projeto tem como foco a reflexão crítica sobre o trabalho de novos escritores e os modos e meios como a literatura é produzida hoje", diz André Dias, responsável pela programação de literatura do Sesc Pinheiros. "Ele incorpora os formatos dos encontros literários que acontecem no circuito alternativo, permeado pela informalidade e pela simultaneidade de apresentações de obras, ideias e debates", completa.

As vagas são limitadas e as inscrições podem ser feitas pelo telefone (11) 3095-9492.

SERVIÇO:
Escritores de Quinta (Grátis)
Curadoria: Bruno Cobbi, Edson Rossatto e Nelson de Oliveira
28/04/2011, das 19h30 às 22h00
Local: Sesc Pinheiros - Rua Paes Leme, 195 - São Paulo - SP
Inscrições: Tel. (11) 3095.9492 (das 12h às 21h)

18 de março de 2011

Ícaro - interessante releitura

Rotineiramente nos meus sonhos sou levado de roldão no turbilhão das chafurdices mais absurdas. E acordo brigado comigo mesmo, por ser frágil, pequeno, indefeso — criaturinha atômica perdida na grandeza das coisas.
          Há pouco eu ia ladeira abaixo, desembestado, numa carreira de doido. E se não conseguisse nunca mais parar, fosse bater no fim do mundo? Bem feito, quem me havia mandado sair daquele jeito! Não, eu podia me esborrachar nas pedras, terminar todo arranhado, quebrar perna, braço, rachar a cabeça. Ah meu Deus! E que vontade de voltar atrás, ao tempo da partida! De pelo menos estacar, tomar fôlego, andar apenas, passo aqui, passo ali, feito cachorro vadio. Porém já nenhuma vontade eu carregava, nada eu conseguia fazer para diminuir a velocidade, desgovernado seixo na correnteza. E descia, rolava, perdido, danado. Grão de areia arrastado pelo ar, eu sentia sumir-me o chão dos pés, levitar, alçar vôo. As per­nas, soltas no espaço, balançavam agarradas ao resto do corpo, feito as de um enforcado. E me guiavam os quatro ventos do desespero para as alturas e as perdições. Na boca, o gosto do nada; nos olhos, o medo de precipitar-me; no peito, a ânsia da desgraça. Sim, a queda. Não podia durar muito minha aventura de pássaro sem asas. Como voar para sempre? A me­nos que eu buscasse o mar, seguro porto de todos os voadores. Nunca, ele não existia, e, se existisse, vivia longe, longe demais. Mas quanta burrice, eu quase alcançava tocar com os pés as cabeleiras das árvores. Não carecia preocupar-me tanto. Bastava soltar-me das argolas do céu e saltar.
          Com alguma perícia, agarrava-me aos galhos e, macaco velho, evitava o tombo. E ainda dava cambalhotas no ar, pulava de galho em galho, imitava Tarzan. E se me estrepasse? Não, não me restava salvação, condenado a perambular entre as estrelas, até perder todas as forças e... ploft. Era uma vez um menino que desceu a ladeira da vida, tomou carreira, subiu feito balão e espatifou-se todo.
          Não deixei de voar, não avistei o mar, não me agarrei aos galhos das árvores e o sonho terminou em gritaria.
          Há muitos anos, eu vivia constantemente machucado, ferido, coberto de ronchas. E, ainda por cima, minha mãe me cobria de peia. Deixasse de ser tão molenga! Eu não me emendava, no entanto. Caía, apanhava, caía de novo, apanhava mais. Por que não largava essa mania de viver trepado, feito macaco? Porém as mangueiras me encantavam. Difícil só alcançar o primeiro galho. Daí em diante eu me perdia, metido entre as folhagens, escondido do mundo. E a sensação de poder cair! Aquele vento doido, o desequilíbrio, o chão coberto de folhas secas, pintinhos entretidos a caçar insetos, aos pios, frágeis, indefesos entre os pés sujos e desatentos dos porcos aos roncos! Então aconteceu qualquer coisa comigo e eu pulei? Ou caí? Tudo isso depois de me fartar de chupar as mangas amassadas e podres do chão. Caíam de maduras ou por arte dos meninos. Eu não participava dessas brincadeiras. E sempre pegava a sobra. Até o sobejo dos bichos.
          Aprendi cedo a levar quedas, ou dar pulos; ou voar. Esses três tipos de ginástica se confundiam em mim. Eu caía, pulava ou voava da mangueira? Da janela de minha casa, porém, eu conseguia pular mesmo. E voava até o meio da rua. Chamava os colegas e fazíamos apostas.
          Eu devia ter nascido pássaro. Essa vontade de pular, de jogar-me ao chão, de lançar-me do alto. Apenas o espaço vazio, chão, a terra. E o vento que bate, açoita, puxa, empurra.
          Quando me senti bem treinado, resolvi pular do muro alto do quintal. Embaixo só pedras, espinhos, formigas. Caí e quase desmaiei. Levantei-me, cambaleante, machucado, arranhado. Ainda bem que não havia ninguém por perto. Só minha decepção. Quando entrei para casa, mamãe ficou muito nervosa e agitada. Eu disse ter pulado uma cerca, com me­do de um touro. Eu não podia dizer a verdade. Ou touro, ou tourada. “Esse calção encarnado”.
          Antes da seguinte experiência tive a idéia de fazer testes com formigas. Primeira etapa: arranjar uma caixa de fósforos, qualquer latinha. Segunda: encontrar uma porção de formigas. Terceira: ter paciência e coragem de pegar com o maior cuidado as bichinhas. Ninguém consegue fazer isso, por­que formiga é bicho danado de esperto. Mas eu era esperto e meio. E conseguia juntar dez, doze, dezenas delas. Subia ao muro, abria a caixinha, as formigas saíam apressadinhas e eu dava um sopro. As coitadas voavam, caíam e não acontecia nada de mais. Ao chegarem ao chão, corriam, apavoradas. Talvez fossem leves demais.
          Experimentei também as bonecas de minhas irmãs. Do lugar mais alto do mundo — a torre da igreja. E de lá soltei uma a uma, encantado com suas quedas lentas. Corri as escadas para ver o estado delas. No patamar, porém, não encontrei mais nenhuma. Teriam voado? Para a serra, lá onde moravam os passarinhos? Ou haviam voltado para o alto da torre, à minha procura? Espiei para cima, para todos os lados e cadê boneca? Só passarinho voando. E não podiam ser bonecas de pano. Ou podia boneca se transformar em passarinho?
          Noutro dia o sacristão não me deixou subir à torre. Precisava enfeitar a igreja para a procissão. Voltei para casa, doido para ver de novo boneca transformar-se em passarinho.
          Na hora da procissão, o povo em fila, as casas fechadas. Nos parapeitos das janelas nenens de colo e suas avós, e nas portas velhinhos sentados em cadeiras de balanço. Tomei a dianteira, impaciente. Ao nos aproximarmos, deixei a fila e subi à torre. Debruçado sobre a janelinha, tive vontade de cuspir na boiada. A igreja se entupiu de gente. No patamar ficou quem não pôde entrar. Tantas cabeças juntas nunca tinha visto assim de cima. Admirado, ia me esquecendo das bonecas. Deu-me vontade de novo de cuspir. Desisti: o sacristão podia me mandar descer. Devia era jogar logo as bonecas. E joguei. Vôo bonito. Pareciam anjos descendo do céu. Tive medo de olhar, vontade de me retirar da janela e me esconder dentro do sino ou detrás do sacristão.
          O povo, ao avistar a chuva de anjos, gritava e corria. As bonecas caíam. O padre pedia calma aos fiéis. Eu me espremia de medo. As bonecas assustavam o povo de Deus. E se o povo subisse as paredes para me castigar? Aranhas vingativas que me jogassem ao solo. Eu me espatifaria feito uma boneca. Não, voaria e viraria anjo ou passarinho e sobrevoaria a cidade e fugiria para a serra. O padre me amaldiçoaria, me chamaria de Maligno. Mostraria a cruz e eu voltaria a ser gente, menino maligno. Cairia, me despedaçaria todo. Não precisava nem cair. Bastava pular da torre. Todas aquelas ovelhas correriam, fugiriam de mim e me deixariam morrer. Nenhuma abriria os bra­ços para me aparar. Eu me quebraria de encontro ao duro chão do patamar. A menos que o povo se juntasse de novo. Então eu cairia em cima dele e me salvaria. Não, aquelas cabe­ças eram duras. Serviam então as mãos. E se seus dedos me furassem, me espetassem? Nem isso. Aquele povo imenso abria caminho para minha morte. Furava um buraco para eu me enterrar. Eu e as bonecas.
          Todos olhavam para cima, embasbacados, como se eu fosse a papa-ceia. O vento soprava. O espaço vazio, cinzento. Minhas irmãs choravam a morte de suas bonecas que voavam para a serra e às vezes caíam como frutas maduras. Por onde andava o sacristão que não vinha bater o sino? A procissão continuava, mas no patamar não cabia sequer mais um cristão. Os fiéis esperavam Deus. Se eu caísse? Se eu voasse? Se eu virasse anjo, passarinho, aquele homem de asas?

Dia mundial da poesia - 21 de março (recado)

O cartaz é muito grande para coloca-lo aqui no tamanho original. Sugiro salvar à parte e ampliar.

14 de março de 2011

Literatura e pintura


Tudo começou com a leitura de um poema de William Carlos Williams escrita a partir de um quadro de Brueghel (Paisagem com a queda de Ícaro, 1555). O mito de Ícaro é sempre revelador e a poesia de Williams, sem pretensão de revelar mistério algum, demarca com muita precisão e simplicidade os pontos cardeais desta paisagem, onde o humano e o sobrehumano se confrontam. Quem perde? Lá estão o lavrador e o filho desobediente do arquiteto Dédalo. A versificação de Williams goteja e ao mesmo tempo flui. Em sua obra poética, muitas vezes, ele toma uma só frase e a escande de modo que cada pedacinho dela se destaque. Sem quebra do ritmo. Querendo aprender um pouco desta sua técnica, me propus a fazer um exercício inspirada neste mesmo poema. Aqui apresento o poema de Williams, sua tradução portuguesa e o meu exercício, como introdução ao tema da relação entre arte e literatura; e do exercício da nossa arte de escrever a partir da leitura de escritores que admiramos.

***
 II Landscape with fall of Icarus
William Carlos Williams
According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring

a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry

of the year was
awake tingling
near

the edge of the sea
concerned
with itself

sweating in the sun
that melted
the wings' wax

unsignificantly
off the coast
there was

a splash quite unnoticed
this was
Icarus drowning
***
Paisagem com queda de Ícaro
Trad. de José Agostinho Baptista
De acordo com Brueghel
quando Ícaro caiu
era primavera

um lavrador arava
os seus campos
todo o esplendor

do ano
formigava ali
à

beira do mar
consigo mesmo
preocupado

suando ao sol
que derretia
a cera das asas

perto
da costa
houve

uma pancada quase imperceptível
era Ícaro
que se afogava

***
Mais uma manhã
Exercício de Bia Albernaz
esta é
aquela de sempre

a mesma
da morte de Ícaro

que leio
no poema

de William
Carlos Williams

uma meditação
do poder da primavera

onde o sol
lambe o lavrador sem asas

e a natureza
neutraliza o artista.

***
Na web, em busca da imagem do quadro para reproduzi-lo aqui, encontrei um texto, de Maria Alessandra Galbiatti ("Bruegel e Williams: uma leitura intersemiótica do mito de Ícaro", em: Todas as musas - ano 01- número 02 // jan-jul2010), que compara o poema e a tela, com base na teoria de Greimas. Neste texto, há uma indicação sobre uma página da Emory University, em Atlanta, com uma coletânea de poemas que falam de arte (The poet speaks of art).

13 de março de 2011

Escrever: modo de ser

          De acordo com Heidegger (cf. “Carta sobre o humanismo”), a escrita é uma imposição salutar do pensamento e um caminho para reencontrar o silêncio e escapar da opinião e da conjectura. Mesmo sob o risco do pensamento perder sua mobilidade, simplicidade e multiplicidade, a escritura assinala o que há para pensar.
          A folha em branco impõe a ato de estar diante de e o reconhecimento do vazio. O esvaziamento expressa o pleno. A escrita é um modo de estar presente, não pelo cumprimento de um dever, mas pelo atendimento a um convite feito a todos e a ninguém.
          A existência assim se constitui como a narração de um ser aberto aos acontecimentos do mundo, em aprendizagem contínua. Conjugando a letra, a lei e o espírito, buscando um pensamento outro, provendo-se de experiência, o escritor ultrapassa discursos e, mesmo anônimo, se afirma como ser histórico, que instaura realidades. Escreve-se a partir da possibilidade de colocar mãos à obra e de habitar poeticamente o humano. Diante do tédio, é um luxo abrir mão da escrita que nos concede o pode ser, o estar ligado e a concomitância do pensar-sentir-dizer.
Autorretrato de Thibault Balahy

4 de março de 2011

Olhar Moacyr


O fascínio da síntese (Folha de São Paulo)
Moacyr Scliar
          Existe uma idéia, comum sobretudo entre aqueles que começam a escrever, segundo a qual é fácil escrever um conto (uma idéia para a qual Mário de Andrade talvez inadvertidamente tenha colaborado ao declarar que "conto é tudo aquilo que a gente quer chamar de conto"). Nada mais ilusório, porém.
          Em termos de literatura, o conto representa um desafio extraordinário. Existe, em fisiologia, uma lei do "tudo ou nada": quando um músculo isolado recebe um estímulo elétrico crescente, ele a princípio não se contrairá, mas, quando o fizer, será com o máximo de sua energia. O conto é assim: nasce com o máximo de energia ou fica imóvel.
          Há para isso explicação. O conto é a forma mais antiga de narrativa, o começo de toda literatura. Sob essa forma são narrados os mitos gregos e as parábolas bíblicas, que inspiraram inclusive um Franz Kafka. O contista, no fundo, está em busca da síntese, da economia que caracterizavam estes simples, mas transcendentes relatos. Dalton Trevisan é um grande exemplo nesse sentido, uma vez declarou que seu ideal era escrever haicais. Objetivo semelhante perseguem os autores de minicontos, um gênero muito especial.
          A revista "El Cuento", editada pelo mexicano Edmundo Valadés, reuniu centenas de textos desse tipo. Um exemplo, de Thomas B. Aldrich:
          Uma mulher está sentada só em sua casa. Sabe que não restam mais ninguém no mundo: todos os outros seres morreram.
          Batem à porta. 
*** 
Viés 
(em O imaginário cotidiano)

"EUA mantêm juros, mas com viés de alta." (suplemento Dinheiro da Folha, 19 mai. 1999)
"Juro cai para 23,5%; viés de baixa continua." (idem, 20 mai. 1999)

          Ele a olhava com viés de baixa. Ela o olhava com viés de alta.
          Ele a olhava com viés desenvolvimentista. Ela o olhava com viés monetarista.
          Ele a olhava com viés "um pouco de inflação não faz mal". Ela o olhava com viés recessivo.
          Ele a olhava com viés telescópico. Ela o olhava com viés microscópico.
          Ele a olhava com o viés olímpico da utopia. Ela o olhava com o viés labiríntico do mercado.
          Ele a olhava com viés histórico. Ela o olhava com viés contábil.
          Ele a olhava, no mínimo, com viés Keynes, e em momentos de maior desespero, recorria até o viés Marx. Ela o olhava com viés Milton Friedman (e escola de Chicago).
          Ele a olhava com viés "con los pobres de la tierra quiero yo mi suerte echar". Ela o mirava com viés "business is business, my friend".
          Ele a olhava com viés bandeiras ao vento. Ela o olhava com viés gráficos e tabelas. Ele a olhava com viés romântico, mas admitindo o moderno. Ela só olhava com viés pós-moderno.
          Ele a olhava com viés filme iraniano, ou seja, arte. Ela o olhava com viés George Lucas, ou seja, bilheteria.
          Ele se desesperou; será que nunca vamos nos olhar com o mesmo viés, perguntou, em tom de súplica. Eu não posso mudar meus olhos, respondeu ela. Nem eu posso mudar os meus, replicou ele. Mas eu tenho aqui uns óculos que compatibilizam o viés, disse ela. Eu quero estes óculos, disse ele, esperançoso. Eu vendo estes óculos, disse ela, mas você pode fracionar o preço em várias parcelas, com juros. Felizmente os juros estão com viés de baixa, disse ele. Mas nos Estados Unidos estão com viés de alta, disse ela.
          Ele a olha com viés desconsolado. Ela o olha com viés implacável.

3 de março de 2011

Oficina de contação de história do Gregório (recado)

Comentar o texto alheio: exercício para chegar a um caminho próprio

          Em uma frase do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade anuncia: "uma única luta - a luta pelo caminho".
          “Consciência muscular” é uma imagem usada por Bachelard em sua discussão acerca do caminho, no livro A poética do espaço, para designar a consciência exercitada enquanto a gente caminha, e a implicação do corpo na leitura e na escrita. O modo de ser "caminhoso", indicado por Manuel de Barros no poema Sabiá com trevas, parece conversar com a imagem de Bachelard. Assumindo o caminhoso, o poeta apresenta a experiência da alquimia do negativo, que converte treva em sabiá. Partindo do pântano, no último domicílio conhecido,  pode-se chegar à preocupação com as coisas inúteis, a uma língua que é depósito de sombras, com versos cobertos de "hera e sarjetas" que abrem as asas sobre nós.
         
          Tais lembranças surgem, neste momento, por conta de um questionamento sobre a necessidade de releitura de um texto, com o objetivo de comentá-lo. Ler é fruir, sem dúvida mas se buscamos "ler como escritores" (para citar o livro de Francine Prose que traz este título), o fazemos no sentido de estudar as saídas e os impasses, os achados e os pontos que precisariam ser melhor desenvolvidos pelo autor do texto em questão. Focamos na transpiração, buscamos o seu tônus, num esforço de concretização do que comumente chamamos de tom. Este detalhamento só pode acontecer numa releitura. Nesta perspectiva, ao (re)ler o texto alheio a fim de comentá-lo, não se faz crítica mas indicação de caminho que ressalte os achados. Walter Benjamin, em O narrador, diz que narradores sabem dar conselhos, ressaltando, porém, que isto não significa o mesmo que saber dar respostas, mas sim fazer  uma sugestão sobre a continuação de uma história.

          Parafraseando Manoel de Barros, um comentador é apenas um caminhoso, um interessado em ouvir sabiás nas trevas. E, com isso, apura seu ouvido porque ele também está em vias de partir, doido pra se preocupar com coisas inúteis.
Ilustração de Doré para D. Quixote