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16 de agosto de 2020

O BRANCO LUNAR

Maria Tereza Albernaz 

Parecia que o sonho era inventado, mas gravei exatamente como tinha sido.

Estou caminhando ao ar livre e ao virar para uma pequena estrada, vejo uma paisagem esbranquiçada. Me deparo com montanhas de pedra branca, trilhas de pedra branca, mesmo casas feitas com a pedra branca. Não é um lugar nobre, nem pobre demais. Não encontro vida, folhagem, flor. A medida que avanço, percebo ao fundo um mercado, uma feira de todos os tipos de coisas sem cor. Velhos pálidos de cabeça branca e jovens macilentos amigavelmente exibem suas mercadorias. O único animal que vejo é um cachorro quase sem pelo, enrolado em um pano desbotado sendo acarinhado por uma moça que chora. Me abaixo para apanhar no chão pedaços de ossos, ensaio um meio sorriso e ela se afasta fazendo levantar sua ampla saia de uma alvura resplandecente. Sigo seu percurso e me vejo diante de um lago cristalino. Entro e me deito na água transparente, pura, fria. Nas proximidades um homem calvo lança um anzol e pesca um peixe brilhante. Os movimentos e sons desaparecem e as formas somem como um pássaro atrás das nuvens. Neste momento faz-se um vazio total entre a noite e o dia. Na alvorada, começo a afundar lentamente e respiro lívido de medo. Reviro-me de costas, estendendo os braços para alcançar um tronco que sirva de boia. Estou preso ali sentindo a sucção me puxar para baixo. Aterrorizado vejo ao meu lado a moça flutuando em sua brancura imaculada. Depois me acalmo e sou levado também pela morte.   

 

Acordei aliviado por sentir que minha reação ao sonho foi de tranquilidade e aceitação. 

Branco sobre branco. Kazimir Malevich, 1918.

6 de agosto de 2020

Conveniências

Ruth Lifschits

                 Padre, quero me confessar. 

            Não estou à beira da morte e nem mal da cabeça. Estou velha, só isso. Pequei, errei, é hora de acertar as contas. Não sei quanto tempo mais tenho por aqui, já-já me chamam para o andar de cima.

            Católica? Sim, fui. Não se espante, explico. Tive todo o preparo, instrução religiosa mas, lá pelas tantas, parei de praticar. Não que tenha perdido a fé, ela se voltou para um Deus sem igreja. Esse é um dos meus pecados, bem sei. 

            Padre, por favor me dê esse tempo, quero me confessar conversando. Sei que concordou em me ver nesse quarto onde moro. Preciso que me ouça. Pode ser? Ótimo. 

Quarto no Brooklin. Edward Hopper, 1932.

            Me casei duas vezes, a primeira, com vinte e poucos anos, com meu grande amor. De véu e grinalda, união abençoada por Deus. Benção?!, pois sim! Danilo morreu de tifo antes de comemorarmos dois anos de casados. Um jovem, trinta anos incompletos, um doce de pessoa. O segundo casamento foi só no civil, o Deus católico descartado, esquecido.

            Casei com um judeu. Surpreso? Devo contar isso como pecado? Vejo que o desassosseguei. Casei-me sabendo que teria muitos problemas. Os judeus não me queriam, e os católicos desaprovavam a união. 

            Aceitei, quer dizer, aceitamos enfrentar as dificuldades como parte da vida. E Jaime era dez anos mais novo do que eu, uma viúva com um filho pré-adolescente. Ah, não falei do filho? A morte de Danilo precipitou o nascimento do menino, prematuro, com quase 8 meses de gestação. Pulmões ainda não inteiramente formados, criança de risco. Deu trabalho, exigiu muitos cuidados que não dei. Entregue à minha dor, desistindo da vida, larguei meu filho com a minha mãe e a minha irmã. Eu não via sentido em viver. Sem meu amor?! Impossível. Cheguei a iniciar um suicídio num dia em que fiquei sozinha em casa. Enquanto o bebê dormia, fui para a cozinha, me ajoelhei diante do fogão, liguei o gás do forno e enfiei a cabeça lá dentro.  Comecei a respirar fundo quando ouvi o choro – forte, doído. Desisti de morrer naquela manhã. Ele chorava e esperneava. Tirei-o do berço e me sentei com ele numa cadeira de balanço. Ele foi se acalmando e, de repente, sorriu para mim. Esse sorriso me fez mãe, me conquistou. 

            Desse dia em diante, tudo que eu fazia, pensava, planejava era para ele. Tentativa de suicídio, pecado forte, não? Conversei muito com aquele pequeno ser, cheguei até a dizer que se o nome dele não fosse Danilo, como o do pai, seria Salvador. Ele sorria e emitia sons me ouvindo e tentando me imitar. Ficamos muito unidos. Tinha tempo para me dedicar a ele com atenção e mimos pois costurava em casa. Ganhava dinheiro vestindo senhoras chiques. Assim pude ajudar nas despesas e nos cuidados com Danilo e com minha mãe.

            A costura me trouxe o segundo marido, Jaime. Um dia ele me seguiu na Rua do Ouvidor até me ver entrar numa loja de tecidos e aviamentos finos onde todos me conheciam por ser freguesa. Lá conseguiu meu endereço com um vendedor e eu passei a notar um rapaz magrelo na minha rua, nos finais de tarde, me encarando sempre que eu chegava à janela. Nos aproximamos e começamos a nos encontrar na calçada. Eu sem saber muito sobre ele e ele sem saber que eu tinha um filho de 12 anos. Danilinho era semi-interno no Colégio São José, ali mesmo na Tijuca onde morávamos. Sim, concordo, os irmãos Maristas são excelentes educadores. O fato é que Jaime já tinha visto meu menino e pensava que fosse filho da minha irmã. Ela, dez anos mais nova do que eu, parecia ser a mais velha de nós duas. Minha genética me favoreceu, sempre aparentei menos idade. Até hoje é assim, é o que dizem. Quantos anos o senhor acha que tenho? Pode dizer, seja sincero. Oitenta? Não, completo noventa no final do mês. 

            Bem, continuando. Parece conversa mas é confissão, creia-me. Pensei muito antes de querer a sua visita. Digamos que ensaiei bem o que lhe falaria. Com Jaime, à medida que fui ficando íntima, e que o namoro ganhou ares de sério, resolvi contar tudo: minha idade, a viuvez, o filho. Ele não esperava por nada disso. Minha aparência jovem o enganara. Passou dias distante mas voltou e me disse que era judeu, não religioso, nunca praticante, mas que a sua família não veria com bons olhos nosso namoro e muito menos uma união. E concluiu dizendo que tinha 10 anos menos do que eu, mas não via problema nisso. Foi a minha vez de ficar mal. Terminei o namoro. Pedi a ele que não me procurasse mais. 

            Ficamos meses afastados até que ele voltou, decidido a enfrentar tudo. Eu tinha sentido falta dele, muita mesmo. Cheia de coragem, aceitei a reaproximação. Ele passou a frequentar a casa, jantando conosco algumas vezes por semana. Danilinho me tranquilizou. Me disse que eu já tinha sofrido muito, queria minha felicidade. Jaime garantiu que meu menino seria um filho para ele. Mas os dois nunca conseguiram se aceitar de fato. O senhor falou bem, padre – dois estranhos. 

            Nos casamos, vida simples com poucos recursos. Jaime era funcionário da Light, ganhava pouco. Após batalhar muito, conseguiu um emprego melhor em São Paulo. Danilinho preferiu continuar no Rio, com a tia e a avó. Jaime fez carreira nessa empresa. Seu crescimento na firma começou quando ele assumiu a gerência de uma filial no Sul. Chegamos a Porto Alegre com um filho de cinco anos e lá moramos por dez anos.            

            Vejo agora que aceitar Danilinho vivendo no Rio, longe de mim, me foi benéfico: a diferença de  idade entre Jaime e eu pôde não existir. Um filho adolescente seria a mesma coisa que ter a verdade escrita na testa. Também foi conveniente para ele que não precisou explicar um enteado, a mulher viúva e mais velha.  Funcionou bem para nós dois – casal jovem com filho pequeno, início de vida, era assim que nos viam. Nenhum preconceito nos ameaçando. Só o dele ser judeu. Não era possível esconder seu sobrenome. Mas, seu carisma dava conta disso com facilidade. Vendedor nato, soube divulgar uma imagem social positiva, vencedora. Em casa já era diferente: exigente com o filho e controlador em relação a tudo. 

            De minha parte, ao deixar de dar carinho e proteção ao meu primeiro filho, não me permiti dar carinho e mostras de amor ao segundo. Vejo isso agora. Um pouco tarde, não é? Atuava como uma governanta incansável, impecável: casa limpa, roupas limpas e bem passadas, comida boa na mesa, doces e bolos sempre ao alcance das vontades fora dos horários rígidos. 

            Como a família dele me tratou? Mal. Em reuniões, ainda bem que raras, muitos não me cumprimentavam, nem falavam comigo. Minha sogra me hostilizava e era muito crítica. Eu não acertava o ponto de nenhuma comida judaica, não fazia nada certo e nem do seu agrado. Riva, irmã de Jaime, me tratava bem, mas sempre desconfiei de suas intenções. Ela queria ficar próxima para me vigiar, ver se eu era boa para o irmão e o sobrinho. 

Quarto em Nova Iorque. Edward Hopper, 1932.

            E assim foi minha vida. Viajamos, fui companheira em eventos sociais, mantendo a pose de porto seguro de meu marido. Meu filho Raul, não foi batizado e nem comemorou Bar Mitzvá. Caberia a ele escolher uma religião, quando quisesse e se quisesse. Mas foi circuncisado. Jaime disse que seria por razões higiênicas, mas convidou os pais e irmãos, fingindo uma celebração judaica. Nunca o perdoei por isso. 

            Aí estão os meus pecados, padre.  Ah, tem mais dois, desculpe.  Dois abortos que fiz antes de Raul nascer. Por quê?! Ora, mal tínhamos como nos sustentar! Claro que me senti culpada, tenho sentimentos!  Era isso ou ver o casamento desabar.  Outro casamento interrompido?! Para mim, não! Me dispus a fazer de tudo para que meu segundo casamento fosse duradouro. E foi. Vivemos juntos 50 anos. Bodas de Ouro que não foram comemoradas porque ele estava bem doente, terminal. Danilinho já tinha falecido, seus filhos pouco me visitavam. Raul, esposa e filhos há anos morando no exterior. Ele veio para o enterro do pai, cuidou dos nossos bens, me instalou nesse lar de idosos e administra minha vida lá de Portugal. Nos falamos por telefone. 

            Sim, distantes. Conveniente, não é?

            Algo de curioso, não serve para nada mas acho interessante: Danilinho faleceu no dia do aniversário do padrasto e Jaime se foi no dia do nascimento de Danilinho. 

            Mereço perdão?

Brejal, 12/06/20

1 de agosto de 2020

A arte da ficção – Entrevista com Raymond Carver

por Mona Simpson e Lewis Buzbee

Trechos extraídos de “The Art of fiction nº76”.

In: The Paris Review No. 88. Summer 1983*

Traducão de Daniel Willmer
Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive

Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive


ENTREVISTADORES – Então, de onde vêm suas histórias? Estou perguntando especialmente sobre as histórias que tem algo que ver com beber.

CARVER - A ficção que mais me interessa tem referência no mundo real. Nenhuma das minhas histórias aconteceu realmente, claro. Mas sempre há alguma coisa, algum elemento, algo que me dizem ou que testemunhei, que pode ser o início. Um exemplo: – Esse é o último Natal que você irá arruinar! Eu estava bêbado quando ouvi isso, mas lembrei. E mais tarde, muito depois, quando estava sóbrio, usando apenas aquela única linha e outras coisas que imaginei, imaginei tão precisamente que elas poderiam ter acontecido, fiz uma história – A Serious Talk [“Um papo sério”]. Mas a ficção que mais me interessa, a ficção de Tolstoy, Chekhov, Barry Hannah, Richard Ford, Hemingway, Isaac Babel, Ann Beattie e Anne Tyler, me parece autobiográfica até certo ponto. No mínimo, são referenciais. Histórias longas ou curtas não aparecem do nada. Isso me lembra uma conversa envolvendo John Cheever. Estávamos sentados em volta de uma mesa em Iowa City com algumas pessoas e ele ressaltou que, depois de uma briga familiar em sua casa uma noite, na manhã seguinte ele levantou e foi ao banheiro e encontrou algo que sua filha havia escrito com batom no espelho do banheiro: – Q-u-e-r-i-d-o papai, não nos deixe. Alguém à mesa então tomou a palavra e disse, – Reconheço isso de uma de suas histórias. Cheever disse, – provavelmente. Tudo que escrevo é autobiográfico. Agora, claro que não é verdade, literalmente. Mas tudo que escrevemos é, de algum modo, autobiográfico. Eu não me incomodo nem um pouco com ficção autobiográfica. Ao contrário. On The Road. Céline. Roth. Lawrence Durrell no Quarteto de Alexandria. Hemingway nas histórias de Nick Adams. Updike também pode apostar. Jim McConkey. Clark Blaise, um escritor contemporâneo cuja ficção é de fora-a-fora autobiográfica. Claro, você tem que saber o que está fazendo quando transforma suas histórias de vida em ficção. Você tem que ser imensamente ousado, muito habilidoso e imaginativo, e disposto a contar tudo sobre você.  Uma e outra vez é dito a você quando jovem que você deve escrever sobre o que conhece, e o que você conhece melhor do que seus próprios segredos? Mas, a não ser que você seja um tipo especial de escritor, e muito talentoso, é perigoso tentar escrever, tomo sobre tomo, a “História da minha vida”. Um grande perigo, ou ao menos uma grande tentação, para muitos escritores é se tornarem autobiográficos demais na abordagem de sua ficção.  Um pouco de autobiografia e muita imaginação são o melhor.

ENTREVISTADORES - Os seus personagens estão tentando fazer algo importante?

CARVER - Acho que estão tentando. Mas tentar e ter sucesso são duas coisas diferentes. Em algumas vidas, as pessoas sempre têm sucesso. E acho ótimo quando acontece. Em outras, as pessoas não têm sucesso no que tentam fazer, nas coisas que mais querem fazer, as grandes e pequenas coisas que dão suporte à vida. Essas vidas são, é claro, válidas para se escrever, as vidas das pessoas mal sucedidas. A maior parte da minha experiência, direta ou indireta, tem a ver com a última situação. Penso que a maior parte de meus personagens gostaria que suas ações valessem para alguma coisa.  Mas, ao mesmo tempo, chegaram ao ponto – como muita gente chega – de compreenderem que não é assim. Não dá mais certo. As coisas que alguma vez acharam importantes ou mesmo que valessem a pena não valem mais um centavo. É com suas vidas que estão desconfortáveis, vidas que veem se quebrando. Gostariam de acertar as coisas, mas não conseguem. E de modo geral sabem disso, eu acho, e depois disso, fazem o melhor que podem.

ENTREVISTADORES - Poderia dizer algo sobre um dos meus contos favoritos da sua última coleção? De onde veio a ideia original de “Por que não dançam?” [Why Don’t You Dance?]?1

CARVER - Estava visitando uns amigos escritores em Missoula no meio dos anos 1970. Estávamos todos sentados bebendo e alguém contou uma história sobre uma barmaid chamada Linda que uma noite se embebedou com seu namorado e decidiu colocar toda sua mobília de quarto no quintal. E o fizeram, até o tapete e o abajur, a cama, a mesinha de cabeceira, tudo. Havia quatro ou cinco escritores na sala, e depois que o sujeito terminou de contar a história, alguém disse, – Bem, quem vai escrevê-la?  Não sei quem mais possa tê-la escrito, mas eu escrevi. Não então, mas depois. Quatro ou cinco anos depois, acho. Mudei e acrescentei coisas, claro. Na verdade, foi a primeira história que escrevi depois de parar de beber.

ENTREVISTADORES - Como são seus hábitos de escrita? Você está sempre trabalhando numa história?

CARVER - Quando escrevo, é todo dia. É lindo quando isso acontece. Um dia se mesclando com o próximo. Às vezes nem sei o dia da semana. “A cantareira dos dias” [paddle-wheel of days}, como chamou John Ashbery. Quando não estou escrevendo, como agora, quando estou amarrado com tarefas de ensino como tenho estado, é como se nunca tivesse escrito ou tivesse desejo de escrever. Passo a ter maus hábitos. Fico acordado até tarde e durmo demais. Mas tá bem. Aprendi a ser paciente e tomar meu tempo. Tive que aprender isso há muito tempo. Paciência. Se acreditasse em signos, suponho que meu signo seria a tartaruga. Escrevo aos trancos e barrancos.  Mas quando estou escrevendo, fico muitas horas na escrivaninha, dez ou doze horas de cada vez, todos os dias. Adoro quando isso acontece. Muitas dessas horas de trabalho, compreendam, é para revisar e reescrever. Existe pouca coisa de eu goste mais que pegar uma história que estava pela casa por um tempo e retrabalhá-la. É o mesmo com os poemas que escrevo. Nunca tenho pressa em enviar algo logo depois de escrever, e às vezes guardo pela casa por meses fazendo isso ou aquilo, tirando isso e pondo aquilo.  Não leva muito tempo para fazer o primeiro rascunho da história, isso normalmente acontece em uma sentada, mas leva um tempo para as várias versões dela. Já fiz vinte ou trinta rascunhos de uma história. Nunca menos que dez ou doze esboços. É instrutivo e encorajador ver os primeiros rascunhos de grandes escritores.  Estou pensando nas fotos de provas pertencentes a Tolstoi, para nomear um escritor que amava revisar. Quero dizer, não sei se ele amava ou não, mas fazia um bocado disso. Estava sempre revisando, até no momento das provas. Ele revisou e reescreveu Guerra e Paz oito vezes e ainda estava fazendo correções nas provas. Coisas assim devem ser um incentivo a todos os escritores cujas primeiras versões são horríveis, como as minhas.

ENTREVISTADORES - Descreva o que acontece quando você escreve uma história.

CARVER - Escrevo a primeira versão rapidamente, como falei. Isso é frequentemente feito à mão. Simplesmente completo as páginas tão rápido quanto posso. Em alguns casos, existe uma espécie de taquigrafia pessoal, notas para mim mesmo para o que vou fazer depois quando voltar a ele. Algumas cenas deixo inacabadas; não escritas em alguns casos; e que depois carecerão de atenção meticulosa. Quer dizer, tudo requer atenção meticulosa – mas algumas cenas deixo até a segunda ou terceira versão porque, para escrevê-las corretamente levaria muito tempo na primeira versão. Com a primeira versão, alinhavo o esqueleto da história.  Então nas revisões subsequentes faço o resto. Quando termino a versão à mão, datilografo a versão da história e continuo dali. Sempre parece diferente para mim, melhor, claro, depois de datilografar.  Quando estou datilografando a primeira versão, começo a reescrever, somar e eliminar. O trabalho real vem depois, após três ou quatro versões da história.  É o mesmo com os poemas, apenas que os poemas passam por quarenta ou cinquenta versões. Donald Hall me contou uma vez que às vezes escreve cento e poucas versões de seus poemas. Pode imaginar?

ENTREVISTADORES - Como sua forma de trabalhar mudou?

CARVER - As histórias de “Do que falamos quando...” [What We Talk About When We Talk About Lovesão, até certo ponto, diferentes. É um livro muito mais autoconsciente no sentido de quão intencional era cada movimento era, quão calculado. Puxei e empurrei e trabalhei com essas histórias antes que chegasse ao livro de um jeito que nunca tinha feito com qualquer outra história. Quando o livro foi composto e estava nas mãos do meu editor, não escrevi nada por mais de seis meses. E então a primeira história que escrevi foi “Catedral” [Cathedral], que eu sinto ser totalmente diferente na concepção e execução de qualquer história que veio antes. Suponho que reflita uma mudança na minha vida tanto quanto na minha forma de escrever. Quando escrevia “Catedral”, experimentei essa pressa e senti, – É sobre tudo isso, essa é a razão pela qual fazemos isso. Foi diferente das histórias que vieram antes. Havia uma abertura quando escrevi a história. Sabia que tinha ido para o outro lado o mais longe que pude ou queria, cortando tudo até a medula, não apenas até os ossos. Mais longe naquela direção e estaria num beco sem saída – escrevendo coisas e publicando coisas que não gostaria de ler, eu mesmo. Essa é a verdade. Na revisão do último livro, alguém me chamou de escritor minimalista. Para o crítico significava um elogio. Mas não gostei. Existe algo sobre minimalista que denota estreiteza de visão e execução de que não gosto. Mas todas as histórias no novo livro, chamado “Catedral”, foram escritas num período de dezoito meses; e em cada um deles noto essa diferença.

ENTREVISTADORES - Você tem alguma noção de um público? Updike descreveu seu leitor ideal como um rapazinho numa cidade do meio-oeste encontrando um de seus livros na estante de uma biblioteca.

CARVER - É simpático pensar num leitor idealizado por Updike. Excetuando-se as primeiras histórias, não acho que seja um rapazinho numa pequena cidade do meio-oeste que esteja lendo Updike. O que esse rapazinho faria de O Centauro [The Centaur], ou Casais Trocados [Couples], ou Coelho redux [Rabbit Redux] ou O Golpe [The Coup]? Penso que Updike escreve para a mesma audiência que John Cleever disse que escrevia, – homens e mulheres inteligentes, onde quer que vivam. Qualquer escritor que se preze escreve tão bem e tão verdadeiramente quanto pode, e espera um público tão amplo e perspicaz quanto possível. Então você escreve o melhor que pode, e espera ter bons leitores. Mas acho que você está escrevendo para outros escritores até certo ponto – os escritores mortos cujo trabalho você admira, assim como os escritores vivos que você lê. Se eles gostarem, os outros escritores, há uma boa chance que outros – mulheres e homens inteligentes também gostem. Mas não tenho aquele menino que você mencionou em minha mente, ou qualquer outra pessoa, quando estou escrevendo de fato.

ENTREVISTADORES - Quanto do que escreve você finalmente descarta?

CARVER - Muito. Se o primeiro esboço da história tem quarenta páginas, geralmente terá a metade quando eu terminar com ele. E não é só uma questão de cortar, ou diminuir. Tiro muito, mas também somo coisas e depois somo mais e tiro mais. É algo que adoro fazer, por e tirar palavras.

ENTREVISTADORES - O processo de revisão mudou agora que as histórias parecem ser mais longas e mais generosas?

CARVER – “Generosas” é uma boa palavra para elas. Sim, e te digo o porquê. Na escola, há uma datilógrafa que tem umas daquelas máquinas de escrever da era espacial, um processador de texto, e posso dar a ela uma história para digitar, e uma vez que ela o digitou recebo a cópia fiel. Posso marcar até o coração ficar contente e devolver para ela; e no dia seguinte recebo minha história de volta, uma nova cópia fiel. Então posso marcá-lo de novo o quanto quiser, e no dia seguinte terei de volta uma cópia fiel de novo. Adoro isso. Pode parecer uma coisa pequena, realmente, mas aquela mulher e seu processador de texto mudaram a minha vida.

18 de julho de 2020

Tempos imperfeitos

Luiz Roberto Gouvêa
O aprendizado em 2020 me deu forças para enfrentar as pandemias dos últimos anos. Faço parte dos 80% que sobreviveram às ondas sucessivas de flagelo e horror que têm castigado esse planeta miserável. Parece que alguém no Oriente destampou o alçapão do inferno e até agora não conseguiu fechar. Por ele escapa uma fileira de vírus, cada qual mais agressivo que o precedente. Além de dizimar 20% da população mundial, esse ataque legou a alguns sobreviventes sérias complicações de saúde.
No meu caso, a única sequela que tive foi uma estranha dificuldade adquirida de lidar com o tempo. Muitas vezes o ontem, o hoje e o amanhã se misturam ora se fundindo num único e longo dia, ora invertendo a sua sequência temporal. A ordem numérica que deveria reger as horas e os dias em vez de me ajudar me atrapalha.  As poucas pessoas de quem me aproximo se irritam com a pontualidade não garantida e com agendamentos de compromissos improváveis - às vezes marco uma visita ou um exame para uma data que já passou ou relato um fato que me aconteceu no futuro. Não têm a menor paciência com a inaptidão que vez por outra me acomete para controlar a fala e a escrita nos tempos verbais corretos.  Procurarei rever o texto para evitar o caos cronológico de minha narrativa.
Tentei sem sucesso convencer minha família e meus amigos de que os procedimentos que adoto se constituam como um escudo protetor quase perfeito. Somente meu médico, depois de ouvir os pormenores da minha teoria, imediatamente recomendou intensificar profilaticamente a prática diária, uma proteção adicional aos vírus que se avizinham. Estou preparado. Que venga el toro!
Mas o que me deixa mais seguro é a faculdade aprendida para detectar as pessoas, sintomáticas ou não, em estágio de contaminação ativa. Sobre as máscaras de pseudoproteção despontam olhares suspeitos que revelam o perigo de aproximação. Conscientes ou não, ostentam uma assimetria na expressão de cada olho: o direito ligeiramente melancólico, o esquerdo vivamente eufórico. Outra característica do risco de contágio é a forma com que rapidamente movimentam seus polegares em pequenos círculos. Toda vez que me deparo com esses verdadeiros vetores do mal, dou meia volta ou desvio bruscamente a direção. 
O leitor poderá duvidar de minha faculdade de corretamente decifrar os sinais de transmissão da doença pela simples observação dos olhos e dedos da mão, mas a minha sobrevivência num bairro que experimentou uma mortalidade brutal bem acima da média é um fato eloquente que dissipa quaisquer dúvidas.
Frequentemente alerto amigos e vizinhos assintomáticos sobre sua possível contaminação. Obviamente minha “dislexia cronológica” não ajuda a credibilidade de meus avisos. Uns ignoraram, outros correm para fazer exames. Morrerão muitos.
Como praticante de ioga, aprendi a inspirar apenas com uma das narinas sem levar a mão ao rosto. Por duas vezes tive a exata sensação, mais do que sensação, tive a convicção de ter alojado o vírus CV-25 na minha narina esquerda. Minha reação foi interromper a inspiração por aquela narina, passando a inspirar com a narina direita até chegar em casa para uma incômoda operação de desinfecção das narinas pela aplicação de chumaços embebidos em álcool e éter. Felizmente minhas fossas nasais estão treinadas para bloquear a intromissão de qualquer vírus indesejável.
Como proteção adicional, somente circulo nas ruas com roupas impermeáveis de mergulhador. Minha família considera esse meu novo hábito uma esquisitice e uma espécie de hostilidade social. Apesar disso não deixo de tomar essas precauções.
As últimas pandemias nos trouxeram grande sofrimento, contudo nos proporcionaram alguns benefícios. A menor circulação de pessoas nas ruas possibilitou reduzir o número de acidentes, a prática de crimes, o consumo de drogas, o alcoolismo e a poluição.  A própria previdência social conseguiu restaurar seu equilíbrio financeiro à medida que a doença foi geralmente benigna com os jovens e implacável com os mais velhos.  
Lamento que meus amigos se recusem a se tratar com os meus procedimentos, aprender ioga ou sequer atentar para os sinais dos olhos e dos polegares. Isso me deixa triste por ver tantas mortes que poderiam ter sido evitadas.
A história humana é assim. Desprezam-se a experiência, a ciência e o bom senso para favorecer a estupidez, a superstição, a insensibilidade, a discriminação dos desiguais, a exaltação de uma medicina corrompida pelos grandes laboratórios farmacêuticos e a inútil politização de cada vírus que emerge, uns tachados de vassalos do capitalismo, outros como instrumentos comunistas.

maio de 2020
Uma companhia francesa de teatro de rua - Royal De Luxe - representou uma odisseia com gigantes contando histórias. Fonte: gizmodo.com

10 de abril de 2020

Duas ou mais leituras de “Pessoas normais”, de Sally Rooney

A vida humana no mundo é condicionada e dependente. A personalidade, a história pessoal, a formação familiar, a classe social de origem necessariamente reverberam nas relações dos indivíduos. E é a consciência dessa reverberação que promove o autoconhecimento. Tal como afirmou a própria autora irlandesa, Sally Rooney, em entrevistas e palestras de divulgação do livro, é esse o foco narrativo do romance: a relação, e não um ou outro personagem, como se pudessem viver isoladamente. O trecho abaixo ilustra bem essa visão:
Parecia achar que Marianne tinha acesso a um leque de personalidades diferentes, nas quais entrava sem fazer esforço. Isso a surpreendeu, pois em geral se sentia confinada em uma única personalidade, sempre a mesma, não importando o que fizesse ou dissesse. No passado, tentara ser diferente, como um experimento, mas nunca deu certo. Se era diferente com Connell, a diferença não estava acontecendo dentro dela, na sua personalidade, mas entre eles, na dinâmica.
O livro tem início com o rompimento do isolamento, o entrecruzamento de impressões entre Marianne e Connell, dois adolescentes, sobre a vida escolar em comum. Mas um garoto popular não poderia namorar a garota esquisita da turma. E uma garota da alta burguesia não poderia ficar com o filho da faxineira da sua casa. O casal então começa a se relacionar em segredo. Em meio à pluralidade de atividades e da pressa típica da adolescência, o segredo lhes ajuda a preservarem suas vidas interiores. [Marianne] carregava o segredo como se fosse algo grande e quente, como uma bandeja cheia de bebidas quentes que tinha que levar para todo lado e nunca derramar.
A falta de coragem de assumir a relação, a vivência secreta do namoro (que não ousa nunca se chamar assim) às vezes é tratada ao longo da narração com um tom levemente condenatório. Connell gostaria de saber como as outras pessoas conduziam suas vidas particulares, para que pudesse copiar seus exemplos.
Talvez por conta dessas pequenas “escorregadelas”, alguns leitores consideram os personagens muito estereotipados, considerando que lhes falta vitalidade e profundidade; e o roteiro, pobre e previsível. Mas as situações ambíguas e a complexidade de algumas reações, com a explicitação de suas dimensões físicas, emocionais e intelectuais, torna possível (e agradável) acompanhar os percursos íntimos dos jovens, levando o leitor à compreensão de que o que os salvou foi o fracasso: os seus erros, a sua entrega a sensações de dor, de abandono, de medo e de vazio. As suas ambiguidades:
Após a arrecadação de fundos da outra noite, Marianne lhe contou um negócio sobre a família. Ele não soube o que falar. Começou a dizer que a amava. Simplesmente aconteceu, assim como afastamos a mão quando a encostamos em algo quente. Ela estava chorando e tal, e ele falou sem pensar. Era verdade? 
Ele apenas a usara como uma espécie de experimento particular, e sua disposição para ser usada provavelmente o chocara.
A mudança de atitude nos dois, o seu crescimento pessoal, se dá na medida em que aceitam que, na existência afinal, há um inegável substrato de tristeza ao qual necessariamente devemos acessar. E essa tristeza talvez se dê pela percepção de que as nossas mudanças de atitude dependem da aceitação social. Com Marianne, acontece um súbito corte quando ingressa na universidade e vai viver em Dublin. De esquisita que era em sua cidade natal, na escola secundária, passa a ser uma estudante popular, com um considerável círculo de amigos. E depois, quando ingressa no mundo do trabalho, a popularidade desvanece e ela começa a transitar anônima, quase solitária, pela vida. De antissocial, é vista como exótica, depois como meio maluquinha, e por fim chega a ser “normal”. Mas esses saltos da personagem não são descritos nem explicados para o leitor. Eles simplesmente acontecem algum tempo depois (os capítulos intitulam-se de acordo com marcações da passagem do tempo, como “Três semanas depois”, “Quatro meses depois” etc.).  A primeira reviravolta talvez possa ser compreendida:  em cidades pequenas, as classes sociais são mais demarcadas, e a fronteira entre casa e escola mais nítida nessa faixa etária. Quando mudou para a Trinity College, uma universidade de elite, Marianne não destoou socialmente e, longe da família, sentiu-se mais livre, ficou mais à vontade para ser quem era.
Isso a faz rir, e é como se tudo estivesse bem entre os dois, como se eles vivessem em um universo ligeiramente diferente em que nada de ruim aconteceu, mas de repente Marianne tem um namorado descolado e Connell é a pessoa solitária e impopular.
Quanto à segunda reviravolta, no mundo adulto, o que se percebe é um movimento natural, todo mundo, quando a maturidade chega, tem de “cair na vida”, e ser mais um na multidão. Talvez a maturidade resida justamente nessa aceitação da “normalidade”. Melancolia e coragem caminham juntas. No final, um dos dois irá embora, com o incentivo do outro, mas essa retirada parece ser vivida não como uma fuga ou abandono, mas como um afastamento, enquanto ainda se tem força e posição para não interromper a construção de si mesmo, ou para não querer consertar aquela “avaria espiritual indizível”. Afinal, o adulto usa mais máscaras e adquire uma dificuldade cada vez maior para romper padrões. Para não ser engolido, para se manter íntegro é preciso ir, e também deixar o outro partir, com a única certeza de que tudo é provisório e oportuno.
Para se fazer ler por sua própria geração (a autora tem 27 anos de idade), formada por uma maioria de não leitores, Sally Rooney evita discussões conceituais, abstrações e outras reflexões, muitas vezes embutidas em romances modernos, correndo o risco de perder leitores mais exigentes. Partindo do princípio de que a literatura sofre pelo excesso de intelectualidade, a narrativa mostra o fluxo da vida comum, por meio de muitos diálogos. Esses pululam ao longo de toda a narrativa, imiscuindo-se pelo descarte das convenções literárias tradicionais e repercutindo, de modo não necessariamente explícito, os debates sociopolíticos em pauta. Jogos verbais e um domínio seguro da narrativa tornam a leitura muito fluida, sob o risco de se tornar superficial.
Mas não à toa o livro obteve tamanha receptividade. Ainda que seja possível lê-lo na superfície dos acontecimentos juvenis, também fica patente o seu trabalho de buscar inspiração na impermanência da contemporaneidade, com uma narrativa que reflete bem essa opção pelos sucessivos saltos no espaço e no tempo, em muito condizentes com o nosso modo de vida. Essas quebras são realizadas com grande controle e maestria da autora, o que confere ao livro uma interessante coerência forma-conteúdo. A alguns leitores, esse engajamento, ainda que não explícito, pode parecer forçado, mas é notável como a linguagem literária da autora acontece por força de uma ética pela qual prevalece o bem, quando se explicitam as falhas.
A autora demonstra simpatia e cultiva a receptividade a tudo o que diz respeito aos protagonistas da história. Fica muito claro para o leitor que ela os ama e é assim que os fortalece. Percebe-se na escrita um trabalho aplicado e constante – não há partes tratadas com negligência – a fim de ressaltar o que é relevante, ou seja, os acontecimentos desafortunados, o que é pequeno, sombrio, o que retém e amansa, freia, enfim, tudo o que acontece com uma suave violência, que contém e domestica. 
“Pessoas normais” trata da intimidade no século XXI, com uma linguagem escancaradamente juvenil, sem abrir mão de ser inteligente e perspicaz, ressaltando as injunções do plano social no afetivo. Quem disse que não é complexo ser jovem? A temática de descoberta do mundo é universal. Exemplos interessantes nessa linha são: “O apanhador no campo de centeio”, de John Salinger (ao qual a autora mais de uma vez foi comparada); “Porcos com asas – diário sexo-político de dois adolescentes”, de Marco L. Radice e Lidia Ravera; e “Feliz ano velho”, de Marcelo Rubens Paiva. Diz a autora que ela fala para si e não para uma geração, o que explicaria o interesse que o livro provoca também em adultos.

O modo como o contexto dos acontecimentos – a escola secundária e a universidade – participa da trama possibilita uma discussão a respeito da introjeção da cultura institucional nas relações individuais. Conversas por email ao longo da história quebram a oralidade predominante na escrita, mas também promovem uma mescla dos discursos coloquial e literário. Afinal, o modo como vemos o mundo hoje está estampado nas redes sociais.
Connell não comentou em nenhuma das discussões no Facebook, mas curtiu vários comentários pedindo que o convite fosse retirado, provavelmente o ato político mais estridente que já realizou na vida.
As relações sexuais se destacam como o lugar por excelência das descobertas afetivas, sendo apaziguadoras ou violentas, simultânea ou alternadamente. 
Sempre houve algo dentro dela que os homens quiseram dominar, e o desejo que têm de dominação pode ser muito parecido com a atração, até mesmo com o amor.
Sem julgamento, o livro consegue mostrar, em Marianne, uma mulher forte que, ao mesmo tempo, sente o controvertido desejo que a dominem.  Essa ambiguidade a singulariza, mas também a impede de amar, principalmente a si mesma. Fosse ela respeitada ou desprezada, não fazia muita diferença no final das contas.
De fato, essa atitude de indiferença atravessa o livro e mostra facetas diferentes em personagens diversos, inclusive em Connell. A autora abusa da expressão “dar de ombros” (shrug, em inglês). Será essa uma marca geracional? Talvez haja aí uma questão cultural também, pois em português, não se usa a locução “dar de ombros” coloquialmente. No Brasil, temos a expressão “tô nem aí”, correspondente a “ligar o foda-se”. Mais que uma geração, elas traduzem uma época. O que o livro parece indicar, porém, é que essa atitude se desenvolve como uma defesa. Mostrar-se indiferente é uma maneira de se livrar de compromissos, de evitar sofrimentos e decepções, e também de parecer independente. A indiferença é a máscara que nos torna invisíveis.
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Escrito por Bia Albernaz, a partir de um debate do qual fizeram parte: Ana Maria Albernaz, Daniel Willmer, Flavio Franklin, Luiz Roberto Gouvêa, Maria Tereza Albernaz e Ruth Lifschits.  

5 de agosto de 2019

O ardor de uma escrita

Ruth Lifschits 
O escritor Sandor Márai nasceu na Hungria em 1900, época em que era forte o nacionalismo, sentimento fundado tanto na fidelidade às próprias origens quanto numa lealdade quase absoluta à pátria. Tanto uma quanto a outra estão presentes no General Henrik, personagem principal de seu romance As Brasas, objeto dessa resenha.
Ainda jovem e sem fazer parte de nenhum grupo literário, Márai tornou-se um dos expoentes de destaque da narrativa húngara: a crítica o definia como um mestre do estilo, o público o adorava e seus livros eram sucesso de vendas. Essa época, que vai de 1920 a 1948, aproximadamente, é a única em que Márai conviveu com o sucesso. Em 1948, com a Hungria sob o jugo soviético e a implantação de uma política interna policialesca e persecutória, Márai deixou seu país para sempre. Ele não aceitou viver sem poder se expressar em seu próprio país. Para ele, a liberdade de pensamento era fundamental para que o homem pudesse conquistar respeito e conhecer a felicidade. A maior parte de sua obra (mais de 60 livros) foi escrita entre 1928 e 1948. Ele pagou um alto preço por suas opiniões contrárias às ações ditatoriais do governo, pois, quando já tinha alcançado respeito em seu país e era estimado pelo público como um dos maiores escritores da Hungria e da Europa, toda sua obra foi proibida e ele caiu no esquecimento. Esse desconforto com os rumos tomados por sua terra natal inspirou o longo monólogo de seu personagem desesperado e sincero, o solitário e rancoroso General Henrik.
As Brasas, romance de 1942, fala de amizade, paixão e honra. Seu título original em húngaro é A gyertyák csonkig égnek, que significa “Velas queimam até o fim”, título muito expressivo e que corresponde a uma fala do General Henrik já quase no final do livro.
 A narrativa, em terceira pessoa, se desenvolve em torno de Henrik já idoso e vivendo sozinho no castelo de seus antepassados, cercado de riqueza e mordomias, mas auto-confinado, recluso em uma pequena ala do castelo. Inesperadamente lhe chega às mãos uma carta de seu grande e inseparável amigo da juventude, Konrad. O general o convida para jantar em seu castelo.  Esse amigo, quase um irmão, tinha desaparecido há 41 anos sem explicações ou despedidas. O jantar acaba se tornando um acerto de contas, quase um julgamento no qual o amigo que reaparece é acusado por ter demonstrado graves falhas de caráter no passado.
A escrita de Márai flui com facilidade e elegância. Suas descrições dos locais onde se desenrola a história tem visibilidade fotográfica. Vemos e sentimos o que ele nos passa, pois tudo vem carregado de detalhes, cores, comportamentos e metáforas, mas sem frieza e sim com muito sentimento. Seguem exemplos da fluência narrativa de Márai, em As Brasas:

A ama se sentou. Envelhecera naquele último ano. Depois dos noventa, a pessoa envelhece de forma diferente do que ocorre depois dos cinquenta ou dos sessenta. Envelhece sem rancores. O rosto de Nini era rosado e enrugado – assim envelhecem os tecidos de grande valor, as sedas que têm séculos de vida, nas quais uma família inteira gastou suas habilidades manuais, trançando junto com os fios todos os seus sonhos. No ano anterior ela adoecera, passando a sofrer de catarata num dos olhos, que ficou cinza e apagado. O outro olho permaneceu azul, com esse azul dos lagos das altas montanhas sob o sol de agosto. E esse olho sorria.

O castelo, era um mundo em si, como aqueles grandes e pomposos mausoléus de pedra onde definham os ossos de gerações inteiras e se esfarelam as mortalhas de seda cinza ou pano preto de homens e mulheres que viveram em outros tempos. Guardava o silêncio dentro de si, qual um prisioneiro que vegeta exangue na palha apodrecida de um subterrâneo, de barba comprida, vestido de trapos e coberto de mofo.

As longas falas do General na presença do amigo durante o jantar são na verdade um diálogo com ele mesmo. Expressam a necessidade que ele próprio tem de tentar chegar a conclusões sobre fatos marcantes de sua vida e sobre os quais, ele bem sabe, nada poderá fazer. Destaco um trecho expressivo desse monólogo interior:

Não acredita que o significado da vida é simplesmente a paixão que um dia invade nosso coração, nossa alma e nosso corpo e que, aconteça o que acontecer, continua a queimar eternamente, até a morte? [...] É aí que me pergunto: a paixão é de fato tão profunda, tão má, tão grandiosa, tão desumana?

Somente depois de muitos anos, com a implantação de um sistema político pluripartidário e a retirada as tropas soviéticas da Hungria,  a obra de Márai pôde ser novamente apreciada em seu país e ficou cada vez mais conhecida em todo o mundo.
Mas a Guerra Fria já o tinha levado a escolher viver nos Estados Unidos, onde, em 1989, pouco depois da morte de sua mulher, Sandor Márai se suicidou. 
           Em 1990, em uma homenagem póstuma, lhe foi concedido o prestigiado Prêmio Kossuth da Hungria, por sua significativa contribuição à Literatura. 
***
O romance foi adaptado para o teatro por Duca Rachid e Julio Fischer.
Na peça, Herson Capri e Genézio de Barros interpretam os dois homens que vivem a amizade intensa, que passa por duas guerras e se projeta como amor à mesma mulher.

26 de setembro de 2018

Sinais de partida


Luiz Roberto Gouvêa
 
       Naquela manhã acordei com a percepção de que algo falhava em meu pensamento: sentia uma lacuna, um esvaziamento na cabeça. Como se um empuxo se opusesse à força da gravidade, me reduzisse o peso e entorpecesse os sentidos. No início não me dei conta das perdas. Mas no decorrer do dia notei que me escaparam da memória os adjetivos, impedindo-me de qualificar, medir, comparar, criticar ou enaltecer as sensações, ideias, pessoas e coisas.
          Percebi que um apagão fulminou os domínios da escrita e da fala. Conseguiu me desadjetivar sem, em contrapartida, agregar substantivos ou verbos no meu repertório de palavras. Restaram-me substantivos sem substância. Um despojamento que me doía.
       O diabo é que na época eu trabalhava numa empresa de publicidade e para complementar o salário escrevia discursos para o deputado X. Sem a exuberância dos adjetivos, perdi musculatura e eficiência nas peças que rascunhava. O discurso debilitou-se, exauriu-se com a escassez de meu vocabulário.
     Minha mulher estranhou a secura de minhas palavras, interpretou como desinteresse, ou mesmo desprezo. E o esforço para compensar a deficiência causava mais estragos.
         Consultei médicos e terapeutas. Ninguém pôde me ajudar. Houve quem sugerisse consultar um gramático; um professor de português; experimentar um método para expandir o vocabulário. Tudo em vão.
         Pedi uma licença no trabalho. Inventei que precisava de tempo para recuperar da afasia, voltar a enfeitar as ideias, ornar as coisas, colorir as imagens. A benevolência do meu chefe felizmente superou a sua perplexidade – acabou concordando.
         Peguei uma passagem para visitar minha filha em Montreal e ao conversar com o funcionário da migração percebi que os adjetivos fluíam em francês sem dificuldade. Aí abusei dos superlativos, exaltei a beleza do dia e as qualidades de Quebec, numa tentativa de extravasar os adjetivos que se represavam num esconderijo da mente.
         Com a filha tentei diálogos em inglês e espanhol, e arranhar algumas conversas em ídiche que recordava. Os adjetivos brotavam, abundavam a fala.
         Que síndrome seria essa que não atravessava os idiomas e somente atingia aquele com o qual cresci?
         Ao retornar ao Brasil, recorri ao recurso de rechear a conversa com expressões em inglês e francês: What wonderful day! You are so pretty! Mon cher amour! Travail parfait! Ce trafic est irritant!
        Minhas falas passaram a irritar ainda mais as pessoas, e eu passei a conversar cada vez menos. As pessoas fugiam de mim. Fiquei sem adjetivos e amigos.

Hoje pela manhã senti a deficiência agravar-se.  Durante o sonho esvaiu-se o reservatório de conjunções. Todas foram para o esgoto. A desconexão das orações agravou-me ainda mais a capacidade de comunicação. Não há mais coordenação entre as ideias. Não consigo mais externar o pensamento. Não adianta consultar especialistas. A inépcia deles me expôs a essa penúria. Penso em partir, emigrar. Deixarei aqui idioma, família, amigos, trabalho. Na bagagem meu inglês, meu francês, minhas esperanças. Adieu!
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Literatura = contenção
Isaak Bábel en 1933. Foto: Georgii Petrusov
"Se eu escrever minha autobiografia, eu a chamarei de A História de um Adjetivo", disse Isaak Bábel em uma entrevista, em 1937, publicada em 1964, vinte e quatro anos após seu assassinato pelo regime de Stalin. Quando jovem, Bábel pensou que tudo suntuoso deveria ser transmitido por meios suntuosos. Até que se corrigiu. Empenhado em dizer tudo em um número reduzido de páginas forçou-se a restringir o uso das palavras, dando relevo àquelas que fossem "em primeiro lugar, significativas; em segundo, simples;e em terceiro, belas". https://enlenguapropia.wordpress.com/2014/04/01/el-escritor-que-fumaba-para-buscar-adjetivos/ 

"... a grande lição de Borges não era uma aula temática, nem de conteúdo, nem de técnica, era uma aula de escrita: a atitude de um homem que, diante de cada frase, pensava com cuidado, não em qual adjetivo colocar, mas em qual adjetivo retirar, caindo depois em um certo excesso que era colocar um único adjetivo de maneira a deixar a gente de queixo caído, o que às vezes pode ser um defeito." ("Cita 4", Revista La Maga, edição especial Homenaje a Cortázar, nov1994).
Nem a escrita apressada e ofegante de algumas fragmentárias percepções nem os circunlóquios autobiográficos arrancados da totalidade dos estados de consciência e mal copiados merecem ser poesias. Com essa vontade oportunista de aproveitar o menor ápice vital, com essa comichão contínua de encadernar o universo e encaixá-lo numa estante, só se chega a uma sempiterna espionagem da própria alma, que talvez fragmenta e histrioniza o homem que a exerce. (Jorge Luís Borges, 1921)

14 de março de 2017

O Duplo3: Esaú e Jacó, de Machado de Assis - a costura pelas ruínas da literatura

               O romance fora-de-lugar de Machado de Assis, Esaú e Jacó, possui 121 capítulos e mais uma "Advertência", espécie de prefácio.
Sem pretensão de abarcar tudo, nos ateremos apenas a algumas dessas partes, em duas outras postagens, posteriores a esta.
Por ora, apresenta-se a seguir um resumo dos critérios que guiaram a escolha dos capítulos estudados.
          A escolha resultou de um levantamento dos capítulos citados em vários trabalhos acadêmicos e ensaísticos, mas sobretudo em um: Bem-aventurados os que leem: formas simples em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, de Rodrigo Silva Trindade. Dissertação de Mestrado, USP, 2013, no qual o autor toma André Jolles como referência para a pesquisa da ocorrência das formas ditas simples na obra de Machado de Assis.
Texto integral do livro, em espanhol, aqui.
           Dentre os trabalhos consultados estão também: o artigo Dança de parâmetros, de Roberto Schwarz, sobre a "Advertência" do livro; a comunicação de Alexandre Eulálio sobre a relação entre o capítulo “Terpsícore” e um painel pictórico realizado por Aurélio Figueiredo, após a leitura da obra de Machado; e os artigos de Renato Oliveira Rocha, O jogo entre ficção e história em Esaú e Jacó; e de Sílvia Maria Azevedo, Esaú e Jacó: de rivalidades e progenitura.
           Nesses textos, faz-se referências a questões a serem abordadas nas postagens a seguir, com comentários aos capítulos selecionados: a figura do narrador; a presença do mito; o aproveitamento de “ruínas literárias”, pela expressão frequente de locuções proverbiais, aforismos, paródias, casos e anedotas; de apólogos e outras alegorias que transmitem a tensão entre atemporalidade e datamento na obra; de formas simples, jogos verbais, desenhos de cenas teatrais; e a mescla de reflexões morfológicas, estéticas e históricas ao longo do romance.
           Leve-se em consideração que, em Esaú e Jacó: 1) o tempo histórico não é o tempo da narração; e 2) a escrita é em mosaico, i.é, a linguagem é fragmentada, cabendo a costura ao narrador, por meio de comentários e interlocuções com o leitor.
           A lógica narrativa é eminentemente apologal; em vários capítulos, o narrador apresenta um conceito, e o ilustra. Em muitos capítulos, há resumos irônicos, satíricos e didáticos, pelos quais o narrador expõe uma tese ao leitor, junto a uma “demonstração”, uma pequena alegoria. Revelam-se assim explicitamente as emendas do texto, em detrimento de uma noção do romance como obra acabada, pela qual se apreende uma beleza também acabada. E intencionalmente o narrador projeta um ardil, uma quebra da unidade da obra, provocando o leitor, principalmente o típico ou a típica leitora de romances folhetinescos.

"Um apólogo" (Vários escritos), de Machado de Assis, contado por Graciela Simoni

13 de março de 2017

O Duplo2: Esaú e Jacó: romance histórico?



Sobre romance histórico
Surgiu no início do século XIX (cf. Lukács, O romance histórico, 1936-37), na efervescência das revoluções sociais, e com o surgimento de um novo tipo de consciência: um novo sentido de história e uma nova experiência de historicidade.
Dentre as personagens, encontram-se e interagem entre si figuras históricas e protagonistas típicos, que seguem os padrões da época tratada, podendo eles estar no centro ou à margem dos acontecimentos, revelando sempre as forças sociais em disputa.
De modo geral, a perspectiva nesse tipo de romance é a do cotidiano, no qual indivíduos das camadas médias da população encarnam os conflitos em curso em suas vidas práticas, sendo o herói um sujeito fortemente vinculado ao seu grupo social. Importante ainda que a ação ocorra em um período anterior ao do escritor; esteja resolvida, por assim dizer; e que paralelamente se desenvolva uma trama amorosa, muitas vezes finalizada de forma trágica.
Considere-se os três planos ontológicos indicados por Ricoeur (cf.Tempo e narrativa, 1983), a saber: o existencial, da vida individual; o histórico, de caráter transindividual; e o dos momentos axiais, quando determinados eventos funcionam como uma espécie de marco zero, a partir do qual um novo tempo se inaugura. O romance histórico se definiria sobretudo por ser uma narrativa desse evento primordial, na qualidade de uma irrupção coletiva (cf. Jameson,"O romance histórico ainda é possível?", 2007).
Em um contexto romântico, dentre os primeiros romances do gênero, estão: Waverley (1814) e Ivanhoé (1819), de Walter Scott; I promessi sposi (1825-27), de Alessandri Manzoni; O último dos moicanos (1826), de James Cooper; Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; Eurico, o presbítero (1844), de Alexandre Herculano. Gradativamente, porém, o romance histórico assume uma dicção condizente com os movimentos naturalista e realista, como se nota em Salambó (1862), de Gustave Flaubert; e Guerra e Paz (1865-69), de Leon Tolstói.[1]

Homem de seu tempo, das múltiplas perspectivas
Em Esaú e Jacó, os acontecimentos externos tornam-se internos e necessários para o desenvolvimento da trama. Para Machado de Assis, um escritor deve ser um homem de seu tempo, “ainda quando se trate de assuntos remotos no tempo” (cf. “Notícia atual da literatura brasileira, Instinto de Nacionalidade”, 1873). Mas suas obras já vivenciam a expressão do romance histórico, num momento em que o recuo da perspectiva a um passado distante, tal como fora modelado pelo romantismo, entrava em declínio. Sua ficção procura romper com o isolamento entre presente e passado.
Miguel Real (escritor português, pseudônimo literário de Luís Martins [1953]) um decálogo do Romance Histórico, sendo possível compreender a construção da narrativa em Esaú e Jacó à luz de um dos seus estatutos:
O romance histórico não reinterpreta ou reconstrói a história segundo um ditame de verdade [...]. A sua função consiste em abrir um horizonte estético e lúdico às possibilidades contidas na História, fazendo eco das múltiplas verdades e das múltiplas perspectivas por que se desenrolam os fatos históricos, algumas delas nunca acontecidas.
Várias capas desde a 1a. edição_diversas perspectivas do romance
Sobre a historicidade do romance
Luiz Costa Lima chama atenção para um outro dado importante no que se refere ao distanciamento, por Machado de Assis, da tradição do romance. No artigo Sob a face de um bruxo (escrito em 1980, revisto em 2009), Lima discorre sobre a recepção de Tristam Shandy no romance machadiano em sua maturidade, e a recepção de Machado entre seus contemporâneos e na contemporaneidade.
"Obra prima" (Luiz Rufatto)
Ainda vivo, o escritor viu-se alvo de críticos que sublinhavam a repetitividade de temas e a esqualidez em seus enredos e na atuação de certos personagens seus. Entre os críticos, ainda muito se debate sobre o envolvimento de Machado nas questões políticas de sua época. Lima afirma que pensar sobre o mundo que o envolvia não era mesmo uma especificidade do autor. Sua singularidade (não exclusiva) era criar ficcionalmente a partir dessa reflexão. E que ele não devia ser consciente desse jogo, nem tampouco sabia onde ele daria.
A linguagem ficcional supõe que nem sempre as coisas do mundo tem uma finalidade ou ordem. Mesmo sendo mimética, não se cria pela ficção um objeto equivalente à parcela do mundo mimetizado, já que em seu trabalho o autor combina proximidades e diferenças com esse mesmo mundo.
Temporalizar Machado significa, pois, mostrar como as características de sua ficção resultam do esforço reflexivo sobre a sociedade que conheceu. Apreender essa temporalidade significa, por outro lado, que já temos certa distância quanto a seu tempo, mas que essa distância ainda não se converteu em pura diferença. Quando há absoluta coincidência temporal entre o autor e o analista, a apreciação desse tende basicamente a importar como testemunho da recepção de certa obra, i. e., do tipo de expectativa, de resistência e de valores que, positiva ou negativamente, a obra ajudava a verbalmente se atualizar. Quando a episteme do analista é absolutamente outra, o seu esforço se confunde com o do antropólogo, que procura entender com suas categorias um objeto social governado por outras. Quando, por fim, uma nota de diferença se intercala na semelhança que continua a haver entre os tempos do escritor e do analista, temos a possibilidade de entender o que já não somos e uma parcela do que continuamos a ser.
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Nem romântico, nem realista

(dois trechos essenciais de Luiz Costa Lima, em Sob as faces de um bruxo)

Machado se deparava com duas poéticas: a romântica e a realista. O rumo que estabelece para si se contrapunha a ambas. O caminho real da poética romântica era o elogio da subjetividade criadora. Ela punha o autor, mormente em um país sem tradição intelectual, em uma posição de gozosa passividade diante de seu contexto e de suas vivências. Dentro destas condições, tal poética no máximo permitia a consciência do material linguístico, constatável em Gonçalves Dias ou José de Alencar. Por via diversa, o mesmo limite afetava a poética do realismo. Sua palavra-chave, estar atento à observação, punha o autor na prisão do mundo perceptualmente tematizado. Com isso, ele tendia a confundir a “consciência imaginante” (SARTRE, O imaginário, 1940) com o mero exercício da fantasia compensatória. Por certo, hoje sabemos que não basta ter acesso ao mundo da imaginação, tematizar imaginariamente o mundo, para ter-se acesso ao mundo da ficção. De qualquer modo, o fato é que fechar-se no campo dos percepta impõe um encargo negativo ao ficcionista.

Ao descartar-se das duas poéticas vigentes no Brasil de sua época, Machado libertou-se de localizar sua empresa ficcional fosse sob o ângulo do eu que se conta a si mesmo, fosse sob o do eu que conta seus arredores. Nem seu umbigo, nem seu contorno, nem a nem a fantasia, nem a percepção é o termo privilegiado. A reflexão mimética que pratica não lhe permite a fantasia compensatória porque o próprio dessa é efetuar um deslocamento no espaço para que se afaste a consciência de seu agora. Controlada pela reflexão, a fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre o tempo histórico sem a procura de dominá-lo conceitualmente. Ampliada pela reflexão, a observação assume em Machado o tom alegórico. Exemplo do primeiro processo é apresentado no capítulo “O Delírio” das Memórias póstumas; exemplo do segundo, o “Tabuleta velha” do Esaú e Jacó. Pretendemos, em suma, que a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade. Não se pretende que essa seja a regra geral para todo grande criador, pois desde logo se objetaria estar-se indevidamente empregando o termo “criador” como se fosse uma entidade sempre igual. A melhor maneira de escaparmos de generalizações impróprias consiste, no momento, em mostrar-se como uma determinada influência é acolhida e como as modificações a que se sujeita decorrem do reajuste a que ela é submetido, para dar conta do outro solo social a que agora visa.

[1] Há ainda um outro tipo de designação, o “romance de época”, comumente considerado como um subgênero do romance histórico. Sem preocupação em precisar datas ou eventos axiais, o foco em um romance de época estaria voltado para a realização de um painel no qual se perceba o modo de vida em uma determinada fase da história de um país. A relação com a história por parte do escritor, nesse caso, é menos comprometida, embora possa advir da leitura do romance um certo interesse e curiosidade acerca da época em questão.