20 de maio de 2020

LOVE IS ENOUGH [Basta o amor], William Morris

LOVE IS ENOUGH

Love is enough: though the World be a-waning,
And the woods have no voice but the voice of complaining,
Though the sky be too dark for dim eyes to discover
The gold-cups and daisies fair blooming thereunder,
Though the hills be held shadows, and the sea a dark wonder
And this day draw a veil over all deeds pass'd over,
Yet their hands shall not tremble, their feet shall not falter;
The void shall not weary, the fear shall not alter
These lips and these eyes of the loved and the lover.

- - -
BASTA O AMOR

Basta o amor: embora o mundo esteja minguando,
E a floresta não tenha outra voz senão a das queixas,
Embora esteja o céu escuro demais para olhos fracos perceberem
As trepadeiras e as margaridas florescendo,
Embora as montanhas sejam vultos e o mar um colosso sombrio
E que esse dia desenhe um véu sobre cada fato passado,
Ainda assim, que as mãos não tremam, os pés não vacilem;
O vazio não esgotará, o medo não mudará
Os lábios e os olhos de amados e amantes.

Poema de William Morris (1834-1896), publicado em 1872
Tradução de Maurício Peltier 
(Poeta e designer. Autor de Poemas tribais, 1995 e Magistério Vodu, 2010)
William Morris nasceu em Walthamstow, Gră-Bretanha em 1834, e morreu em Hammersmith, Gră-Bretanha em 1896. Socialista, poeta, artista e arquiteto, fundou a Sociedade para a Proteção de Edifícios Antigos em 1877; a Liga Socialista em 1884, e sua própria editora, a Kelmscott Press em 1893. Sua produção literária inclui poesia narrativa, romances, ensaios e contos. Incorporou elementos da poesia clássica e de romances da Idade Média. 


"Trabalho tanto com a cabeça quanto com as mãos."

10 de maio de 2020

A peste e a pandemia

Introdução
Por força da época em que foi publicada (1947) e pelas próprias motivações explicitadas naquela altura pelo autor, a mais conhecida interpretação de A Peste de Albert Camus é a que aproxima a epidemia que teria devastado a cidade de Oran com a ascensão do nazismo na Europa. As brigadas voluntárias de combate à doença, nesse caso, refletiriam a ação da resistência francesa que Camus conhecia de perto; e outras inúmeras alusões claramente remeteriam ao cenário da guerra, como o negacionismo dos cidadãos, o fechamento da cidade, o contrabando, o tratamento dado aos cadáveres (similar ao que acontecia nos campos de concentração), a separação de familiares, a restrição à circulação, além do uso de um léxico em que abundam expressões como “vida de prisioneiros”, “interminável derrota” etc. Esse inevitável paralelo, no entanto, valeu duras críticas ao autor, feitas por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Roland Barthes, que condenaram a comparação de um problema histórico (o nazismo) com um fenômeno natural (a epidemia). Não é possível, diziam eles, fazer uma analogia entre as questões morais enfrentadas num combate com seres humanos e aquelas na luta contra os avanços de uma doença.
Camus respondeu às críticas. Sua frase mais famosa em sua defesa era a de que A Peste era mais do que uma crônica da resistência, embora certamente não menos. Em seu relato dos acontecimentos na cidade assolada pelo incontrolável alastramento da doença, outras interpretações são possíveis. Uma delas é a religiosa, atribuindo-se à peste a força de um castigo divino. Um dos personagens do relato, o Padre Paneloux, abusa de metáforas que culpabilizam a fraqueza moral da humanidade. A reação ao mérito da punição enviada por Deus, preconizada pelo padre aos devotos da Igreja, no entanto, diante da presença da morte de uma criança inocente, sofre uma mudança, passando da contrição dos pecados à aceitação inconteste, mesmo que não se compreenda os desígnios divinos. Outra interpretação da peste estaria na sua visão, trazida por um outro personagem, Tarrou, também como uma metáfora da culpabilidade humana, porém do ponto de vista laico. Somos todos mais ou menos pestilentos, discursa o personagem. Como réus ou como cúmplices, não conseguimos “recusar tudo aquilo que que, de perto ou à distância, por boas ou más razões, provoca a morte ou justifica que se mate”. Contudo, o autor constitui como interpretação primordial da peste, o mal a que está sujeita a condição humana. A fim de combater a argumentação de Barthes, Camus escreveu que A Peste tem um significado social, mas também um existencial, da luta do ser humano com o absurdo da vida.
A peste demonstraria o absurdo da nossa condição: ter a morte como horizonte, e mesmo assim se recusar a parar de lutar. O relato traria assim à tona o que o autor designaria como o “homem revoltado”, que recusa o suicídio; que aceita a sua condição sem recorrer a um Deus ou a explicações metafísicas; que age no momento presente; e que afirma a solidariedade e a cumplicidade. Camus cumpre, dessa maneira, um ciclo criativo que parte do homem solitário (expresso no romance O estrangeiro e no ensaio O mito de Sísifo) ao homem solidário.  
É a partir desse enorme cabedal de discussões e análises da obra que se introduz aqui uma leitura atual, iluminada pelo advento de uma espécie de peste enfrentada pela humanidade nesse momento. Poderia este romance corroborar para o enfrentamento lúcido do que nos acomete? Pensar sobre tal livro nos ajudaria a refletir sobre a nossa própria reação face ao absurdo da pandemia provocada pelo rápido contágio com o COVID-19? Estando, tal como os habitantes de Oran, cativos do nosso cotidiano e dos nossos hábitos, como reagir? Como nos mover nesse cenário tão obscuro? Também, na crônica de nossos dias, fica patente o absurdo das desigualdades em nossas relações sociais e a irrealidade do nosso governo. Também nesse momento, por falta de imaginação, muitos recusam a ver o que está diante de seus olhos. Vivemos sob um sistema abstrato que nos isenta da responsabilidade diante da pandemia. Camus defende que a resposta ao absurdo se situa na ação, sem expectativa de que se encontre uma solução universal. Respostas individuais possibilitam ações coletivas; a liberdade de cada um permitirá a colaboração de todos pela melhoria da condição humana. Contudo, é preciso sempre reagir à injustiça e ao sofrimento que, aos olhos do revoltado, não cessam nunca de ser um escândalo.
Assim como em Oran, enfrentamos dilemas morais. No curso da atual pandemia, todos precisamos fazer escolhas muito difíceis e aceitar as consequências (inclusiva as fatais) de nossos atos. Ficar em casa, por exemplo, se tornou sinônimo de consciência e solidariedade. Da mesma maneira, é preciso manter o salário dos trabalhadores a fim de que possam permanecer sem trabalhar e em condições dignas. Em nossas atitudes, reside não a eliminação de uma doença simbólica mas a sua limitação real. Com relação ao uso metafórico e a manipulação política nos discursos acerca da pandemia, as considerações de Susan Sontag, em “A doença e suas metáforas”, são de extrema valia. Ainda não temos o devido distanciamento para compreender o grau de profundidade da crise em que estamos metidos. Há inúmeras interpretações que relacionam a presente catástrofe com o modo como a humanidade tem se conduzido, fonte do desequilíbrio ambiental. Mesmo com a melhor das intenções, é preciso cuidado para não incorrer numa manipulação discursiva da horrível situação em que nos encontramos, em detrimento da consciência. 
Em A Peste, o herói da história não é Rieux, o médico, nem mesmo Tarrou, o temerário chefe das Brigadas voluntárias. O que o narrador do relato propõe é que a figura heroica por excelência nessa história seja Grand, um obscuro funcionário, cuja única ambição é realizar digna e honestamente o seu trabalho, além de incansavelmente buscar objetividade e beleza em sua expressão. De fato, este trio de personagens atuam de modo complementar, apresentando de modo contundente a passagem do ser solitário ao solidário. 

A cidade e seu narrador 
Daqui em diante, tudo o que se escreverá se fará pelo método da paráfrase, como se esticássemos um papel transparente sobre o livro e sobrepuséssemos frases e expressões decalcadas em um desenho mais sucinto. Desse modo, tal como o narrador, iniciamos focando a cidade de Oran, que tem um papel crucial nos acontecimentos. Oran, no entanto, poderia ser qualquer outra cidade pois, como diz o narrador; é “um lugar neutro”, onde se percebe a mudança das estações pelo céu e a chegada da primavera pela qualidade do ar e pelas cestas de flores que se vendem no mercado. Oran é assim a nossa cidade. Em sua pequenez, mal consegue abarcar a quantidade de atividades e de desejos. Tudo então tem de ser feito ao mesmo tempo. Todo mundo é muito ocupado, “frenético e distante”. Trabalho, amor e morte transcorrem “aparentemente sem suspeitas”, de modo “inteiramente moderno”. Amar, por exemplo, é devorar, e rápido; ou simplesmente se habituar. Quanto à beleza natural que lá existia, as construções a emparedaram.
Quando a epidemia chega, pega a cidade de surpresa. A ciência procura mostrar o que está acontecendo, mas a imaginação dos cidadãos e dos governantes não permite. É preciso continuar o zumbido, a mistura entre felicidade e tacidurnidade. A certeza do trabalho diário tem de continuar. O essencial é cumprir o dever. Quanto ao “resto”, “prendia-se a fios, a movimentos insignificantes”. Para disfarçar o abatimento, graceja-se. Qualquer semelhança com o que vivemos no contexto da atual pandemia, não é uma coincidência.
Ao narrador da história, o que cabe dizer, a não ser “isso aconteceu”? Os acontecimentos durante a peste interessam “à vida de todo um povo”; “há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade”. O narrador não se revela, a não ser quando tudo passa. Procurando ser mais do que uma voz individual, recolhe depoimentos e se envolve pela força das circunstâncias. Munindo-se de documentos, torna-se historiador. Sem dispensar o seu próprio testemunho, acolhe confidências e textos alheios. 
O narrador busca, portanto, a objetividade. Não quer modificar os acontecimentos pelos “efeitos da arte”. Sua tarefa passa a ser a de dar oportunidade ao acaso que tantas vezes só age quando provocado. Confessa assim que a distração já não lhe é possível. Ao mesmo tempo, segundo “a lei de um coração honesto”, toma deliberadamente o partido da vítima e quer se juntar aos seus concidadãos no que eles têm em comum: o amor, o sofrimento e o exílio.  Decide narrar para “para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência” e “para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”.
Em Oran, a peste começa com a morte de ratos, a céu aberto, num espetáculo que a nós, leitores, à distância, pareceria incontestavelmente intolerável. Mas de início o surgimento de ratos lançando sangue pela boca parece apenas motivo de preocupação. Por distração e pela ignorância geral, as cambalhotas e guinchos dos ratos, ao alcance da vista de todos, nada mais motivaram do que a contemplação. Enquanto apareciam mais e mais ratos, as pessoas circulavam, as mães cuidavam de seus filhos, mas muito lentamente o sentimento se transmutava da curiosidade à irritação. Os acontecimentos tornam-se mais e mais repugnantes: “Nas calçadas também, ocorria a mais de um notívago sentir sob os pés a massa elástica de um cadáver ainda fresco. Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente.”
Enquanto isso, a “municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar”. Quando se anuncia a incineração de 6.231 ratos num só dia, reconhece-se por fim a ameaça que ronda a cidade. E, quando morre o primeiro homem, a surpresa dá lugar ao pânico. Muitas mortes se seguiram, mas como em geral ainda aconteciam em casa, pouco foram noticiadas. As pestes, assim como as guerras, diz o narrador, sempre pegam as pessoas desprevenidas. Muitos negaram o flagelo de modo veemente. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Julgavam-se livres. Os mortos não têm significado se não os vemos, “milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação”. As autoridades não querem espalhar o alarme. Custam a nomear os acontecimentos e a assumir as responsabilidades. Os médicos já podem discernir os sintomas e alertam que “não devemos agir como se metade da cidade não corresse o risco de morrer, porque senão ela morrerá de fato”. As medidas governamentais, porém, são insuficientes. Parece que, por falta imaginação, os governantes são incapazes de interpretar os números. Mas quando o medo bate com força à porta, o prefeito de Oran resolve fechar a cidade.

Quem somos nós, nessa peste?
O cronista narra os acontecimentos enquanto demarca as diferentes escolhas existenciais dos personagens. Em uma leitura catártica, os leitores ora se identificam com um, ora com outro, reconhecendo em si próprios os dilemas morais que os personagens carreiam. Assim, nos perguntamos: Somos como Tarrou, capazes de sentir os gestos cotidianos mais insignificantes em toda a sua extensão? Simpático e modesto, Tarrou almeja ser um “assassino inocente”, consciente de que, pela lógica em que vivemos, não se pode “fazer um gesto neste mundo sem se correr o risco de fazer morrer”. Para ele, “poder ser santo sem Deus é o único problema concreto” que temos hoje.
Somos como o Dr. Rieux, seres cansados e assim mesmo decididos e recusar a “injustiça das concessões”? Distraído e ao mesmo tempo bem informado, o médico sente a realidade do perigo, o “ligeiro temor diante do futuro”. Pressente que, dentre a população, grande parte está impaciente por romper o fio da vida pela realização de movimentos insignificantes. Rieux é um ser mais solidário com os vencidos do que com os santos ou os heróis.  E sua grande ambição é ser humano.
Somos como Grand, frágeis e obscuros funcionários com “um arzinho de mistério”? Com um sorriso melancólico, esse pequeno ser (que, para Rieux, é o grande herói dessa história) assume que resiste e continua a trabalhar, não pela ambição mas pela “perspectiva de uma vida material assegurada por meios honestos”. Tem a coragem de assumir seus bons sentimentos, mas custa-lhe evocar emoções simples por não conseguir encontrar a palavra certa. Ao final, feliz e sobrevivente, consegue eliminar todos os adjetivos da única frase perfeita que pretende escrever na vida.
Somos como Rambert, cuja única ideia era se evadir da prisão que passou a ser para ele a cidade de Oran? Em suas tentativas de voltar à sua cidade de origem, Rambert adquiriu um olhar crítico sobre os governantes da cidade. Havia, segundo ele, os argumentadores ou formalistas;  os bem-falantes, que asseguravam que nada daquilo podia durar; “os importantes, que pediam ao visitante que deixasse uma nota resumindo seu caso, informando que decidiriam sobre o pedido; os fúteis, que lhe propunham vales de alojamento ou endereços de pensões econômicas; os metódicos, que o faziam preencher uma ficha e arquivavam-na em seguida; os exaltados, que levantavam os braços e os aborrecidos, que desviavam os olhos; havia, enfim, os tradicionais, de longe os mais numerosos, que indicavam a Rambert outra repartição ou nova diligência a fazer”. E, depois de tantas tentativas, depois de conseguir uma fuga de modo ilegal, desiste, pois se partisse sentiria vergonha de ser feliz sozinho.
Há ainda o personagem Cottard que, por ser procurado pela polícia antes da peste estourar, sentia-se bem com o sofrimento que agora era geral, aproximando-o dos seus concidadãos, pois “o terror parece-lhe então menos pesado de suportar que se estivesse totalmente só”. Somos como essa figura desprezível e digna de pena, que busca lucrar com a situação? Ou somos como o padre Paneloux, pensando “que a peste tem o seu lado bom, que abre os olhos, que obriga a pensar”, que devemos amar o que não conseguimos compreender? Ou, por fim, somos apenas como o personagem asmático a quem só importava a hora das refeições? 

A peste é a pandemia?
Transformando muito (mas muito) livremente o passado das palavras expressas na narrativa, em A Peste, pelo presente da Pandemia que atravessamos; atualizando certos termos, como “telegramas” por mensagens da internet; substituindo o eles pelo nós; extraindo particularidades do sítio da cidade de Oran para evidenciar o isolamento social e global que o Coronavírus nos impinge; selecionando trechos mais significativos; tendo o cuidado de não pintar o quadro com a tinta da autocomiseração, eis que nos defrontamos com uma compreensão muito arguta do que atualmente estamos passando:

O individual e o coletivo
Já não há destinos individuais, mas uma história coletiva, em que doença e sentimentos são compartilhados por todos.

A comunicação
Alguns se exprimem do fundo de longos dias de ruminação e de sofrimentos, e a imagem que transmitem arde muito tempo no fogo da espera e da paixão. Outros navegam em emoções convencionais que se vendem nos mercados, e que são transmitidas em séries.

Quando o silêncio é insuportável (e já que é muito difícil encontrar a linguagem do coração), resignamo-nos e adotamos também a língua dos mercados e falamos igualmente de maneira convencional. As dores mais verdadeiras adquirem o hábito de se traduzir em fórmulas banais de conversação.

Exílio e emprisionamento
Sabemos que nossa separação está destinada a durar e que devemos tentar nos entender. Nos reintegramos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, reduzidos ao nosso passado e, ainda que busquemos viver no futuro, logo renunciamos, ao experimentar as feridas que a imaginação inflige aos que nela confiam.
Relação com o tempo e o espaço
Pela primeira vez todos nos tornamos sensíveis às cores do céu e aos odores da terra causados pela mudança das estações.

(In)consciência
Com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, a opinião pública toma consciência da verdade. O aumento, pelo menos, é eloquente. Mas não é bastante forte para impedir que concidadãos, em meio à sua inquietação, tenham a impressão de que se trata de um acidente, sem dúvida desagradável, mas, apesar de tudo, temporário.

No auge da doença
E, como não podemos pensar sempre na morte, não pensamos em nada. Estamos de férias.

Só há lugar no nosso coração para uma esperança muito velha e muito taciturna, a mesma que nos impede de nos entregarmos à morte e que não é mais que simples obstinação em viver.

Tem-se a impressão de que a doença se esgotará por si própria ou, talvez, de que se retirará depois de ter alcançado todos os seus objetivos.

Todos nós nos nutrimos do mesmo pão do exílio, esperando sem o saber a mesma reunião e a mesma paz perturbadoras.

Toda a cidade parece uma sala de espera.

Dos sentimentos e do tempo
Nos adaptamos, como se costuma dizer, porque não há outro modo de proceder. Temos ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentimos. O hábito do desespero é pior que o próprio desespero?

Sem memórias e sem esperança, instalamo-nos no presente. Na verdade, tudo se torna presente para nós. A pandemia, é preciso que se diga, tira a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só há instantes.
As desigualdades
A especulação intervém e oferece, a preços fabulosos, os gêneros de primeira necessidade que faltam no mercado habitual. As famílias pobres veem-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não falta praticamente nada. A pandemia, que, pela imparcialidade eficaz com que exerce seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, torna, ao contrário, mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça.

A partir desse momento, na realidade, vê-se sempre a miséria mostrar-se mais forte que o medo, tanto mais que o trabalho é pago na proporção dos riscos.

O final da Pandemia
Na verdade, o nosso mais forte desejo é agir como se nada tivesse mudado e que, portanto, nada, em certo sentido, será mudado, mas, em outro sentido, não se pode esquecer tudo, mesmo com a vontade necessária, e a pandemia deixará vestígios, pelo menos nos corações.

Toda a cidade lança-se às ruas, para festejar esse minuto em que acaba o tempo dos sofrimentos e ainda não começa o tempo do esquecimento.

Sabemos agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana.
Um sopro
A uma certa altura, no auge da doença, Rieux diz a Rambert que “não se pode, ao mesmo tempo, curar e saber”. E que se devotar à cura é o mais urgente. Ao final, ele conclui que “não podendo ser santos e recusando-se a admitir os flagelos, os seres humanos se esforçam no entanto por ser médicos”. Embora tenha consciência que o micróbio não morre, apenas entra em estado de inércia, ou seja, sabedor de que não se elimina o absurdo da vida, também ele sente o estado de suspensão que o final da peste promove. Reflexivo, Rieux assinala então que o que resta a quem passou pela epidemia é a sua lembrança e o fato de ter conhecido a amizade ao combatê-la. O que resta aos sobreviventes, ele pensa, é o conhecimento – o calor da vida e uma imagem de morte –, assim como a memória. Mas, sendo tão duro viver apenas com o que se sabe e com aquilo de que se tem lembrança, não é possível abrir mão de se esperar. Não há paz sem esperança.
Bia Albernaz