24 de abril de 2012

Este mundo em que vivemos 1


Maria Tereza Albernaz
Ilsutração a partir de foto (Voluvia)
          O cheiro forte de peixe e flores velhas provoca náusea quando se entra na Rocinha pela ladeira de cima. As ruas estreitas sujas, pontilhadas de detritos intensificam o cheiro, e caminhar pelos calçamentos irregulares e degraus desalinhados exige atenção redobrada. Por algumas paredes e por pequenos buracos, faça sol ou chuva, escorre uma água escurecida. O emaranhado de fios elétricos sugere que a qualquer momento um forte curto circuito vai acontecer.  
          Entre portas fechadas ou entreabertas, na rua principal, lojinhas de todo o tipo oferecem comida, bebidas, roupas, material de construção e serviços, principalmente de consertos de televisão. Barulho e música alta. Dividindo a rua com passantes, em tabuleiros improvisados, multiplica-se o comércio de DVDs e CDs piratas, picolés, balas, biscoitos e muito mais.
          O trânsito de gente e cachorros é intenso. Mercadorias e sacolas são levadas de um lado para o outro e os carregadores pedem prioridade anunciando a carga pesada. Algumas crianças encontram espaço para brincar e jogar bola. De cócoras, alguns velhos quietos lembram figuras em paisagem rural. Inusitados no ambiente, os grupos de estrangeiros, jovens em sua maioria,  anotam, fotografam e reúnem-se em cantos para escutar o instrutor ou guia.
          Ritmo frenético, quente demais no calor, úmido e frio nos tempos chuvosos. Esta é a primeira impressão que tive da Rocinha e que persiste a cada dia que entro lá. O mesmo espanto, o mesmo mal estar, a mesma tristeza e tantas dúvidas.

16 de abril de 2012

Ira sagrada

                                                                                                                                                                                 Gilda Niemeyer
          Naquele tempo eu desconhecia a raiva, aquele sentimento de revolta, indignação, que nos faz reagir quando feridos, injuriados, ao que nos reduz a pó. Eu a ignorava, mas ansiava por conhecê-la. Me encolhia toda, elaborava as mais sofisticadas estratégias mentais, ensaiava risadas tímidas, envergonhadas, que não convenciam em nada. Tudo, num esforço colossal para atingir o adversário, marcar algum ponto a meu favor na luta inglória contra as forças contrárias, a dos enganadores, os experts da mentira e agressão.
        Ah! Se eu conseguisse apenas me expressar, dizer umas boas, ser ouvida, já me sentiria vitoriosa, repetia à exaustão.
          Os desafios seguiam-me, e eu impotente, dominada. Vencida, num certo dia, inicio uma nova fase em minha vida investindo em técnicas de meditação, preces de poder, mantras, contato com o fogo, respirações conectadas, tudo enfim, que me levasse a aprender a “arte da guerra”. Voando para dentro de mim numa busca incessante, percorro as mais variadas correntes de pensamento, freudianos, lacanianos, xamânicos, transcendentais.
          Meu sonho dourado era ter domínio no manejo da espada, enferrujada há anos. Já sabia que possuir um ideal é modificar a forma de vida completamente, como que pela morte. Me preparei para morrer. Me tornei outra.
           Novos desafios chegaram me convocando à luta. E eu seguia fraca, perdendo-me, lamentando a espada enferrujada por falta de uso. Determinada, com persistência e disciplina tornei-me Mestre. Como desistir de mim mesma?
         Foi então que algo inusitado aconteceu numa quinta-feira quando me sentei para o café da manhã. Edmea, minha funcionária, a quem eu chamava carinhosamente de Edmais, devido à sua competência, entrou na sala e eu perguntei:
           Posso contar contigo, conforme o combinado?
           Lamento, mas meu marido não deu permissão, responde ela.
           Contrariada, reagi. 
          ― Como? Então você não vai honrar o compromisso porque teu marido não quer? E nosso acordo, como fica?, digo.
          Edmais, em minutos transformada em Edmenos, não responde e me serve um pedaço de mamão, como de costume.
          Não quero esse mamão (ou terei eu dito “mamãe”?). Traz outro pedaço.
       Edmenos dá as costas e se dirige para a cozinha. Enquanto isso, a ira, a ignorada, surge e, suntuosa, se apodera de mim como uma febre purificadora, invadindo o prédio todo, atingindo os vizinhos e todos os que por ali passavam.
          O mamão chega. Recuso-o.
       Como posso comer um fruto tão mal cortado? Você não sabe como eu gosto do mamão? Não aprende nada mesmo. Corte outro pedaço, disse eu da forma a mais autoritária que encontrei.
     Foram inúmeras as tentativas feitas por Edmenos, mas a cada novo pedaço trazido minha indignação crescia.
         Eu arrastava uma esteira de ódio recolhido por décadas e aquela era a hora de fazer valer os meus direitos, a minha dignidade ferida, a minha sensibilidade feminina, e tudo mais que se referisse ao meu poder ultrajado por tantos.
       Quando, enfim, transbordei, esparramei toda a fúria, a condenada, pelo chão da sala. Devorei o mamão com prazer desconhecido. Restaurei a força de luta. Agradeci à mãe que surgia, à mão que me servia, e experimentei a paz.
Javier de la Garza. Aparición de la Papaya

2 de abril de 2012

Comissão da verdade

Renata Figueiredo
          Era uma loja de luxo, de grife, no Rio de Janeiro, num shopping de bacanas no bairro de São Conrado. O motivo de ter entrado na loja era um só, comprar uma roupa bem bonita para a festa de aniversário do meu filho que estava fazendo 4 anos. A proposta era comprar algo neutro, básico, porém colorido, sexy e original. Querendo ou não, eu era a mãe do aniversariante, e queria estar bem bonita para comemorar mais um ano de vida de meu filho tão amado.
          Assim que entrei na loja fui abordada pela vendedora que, muito simpática, tentou me ajudar a escolher uma roupa para a ocasião. Ela era jovem, magra, falante. Tinha um jeito bem parecido com o meu. Não demorou muito, e já estávamos nos tratando como se fossemos amigas de longa data. Escolhemos juntas exatamente aquilo que eu procurava. Uma calça rosa básica, discreta, que se destacava pela sua cor e corte alinhado, e uma blusa de tricô, da cor vinho, de manga três quartos, com uma ligeira abertura nas laterais dando um ar levemente ousado e jovem à roupa. Essa foi a primeira compra de muitas outras.
          A loja cresceu e abriu uma filial em Ipanema.  A vendedora que, para mim, já era uma amiga, foi ser gerente da nova loja. Eu, cliente assídua, não tinha uma vez que não fosse recebida de forma amável e carinhosa. Consumidora assumida, sabia que ali existia, além da troca comercial, uma amizade que a cada encontro ia crescendo.
          Vida dura, de ralação, horas e horas de venda e ela me mostrava tudo e mais um pouco. E eu por gostar e poder dispor de horas dentro de uma loja e ter dinheiro mais que o suficiente, acabava comprando tudo o que via na minha frente. Ganhava em roupas e em momentos agradáveis ao seu lado, e ela ganhava em comissão, e também em momentos agradáveis ao meu lado. Plena consciência do que era a nossa relação.
          Passados uns tempos, fui cansando desse consumismo, não precisava mais e, financeiramente, não podia mais. Por isso, deixamos de nos ver com tanta freqüência. Passava rapidamente pela loja e apenas conversávamos sobre amenidades. Até que um dia ela me falou que estava saindo da loja para abrir a sua própria marca.
          Chegada a hora da inauguração, lá estava eu, prestigiando e comprando. Bem menos do que antes. Queria mesmo era poder ter alguma coisa dela, como lembrança, como prestígio e ter uma peça como parte da nossa história, dessa nova história. Literalmente, incorporei o nome  da marca. É coisa delas. Nos entendíamos e isso bastava.
          Depois disso, na grande montanha-russa da vida, aconteceram tombos e vitórias. Mudanças daqui e dali, de endereços, de sócios... mas lá estava ela, sempre dando seu jeito, mexendo seus pauzinhos, na luta. Hoje, o forte da sua loja é a malha, o básico, o confortável, o bom gosto e a beleza. Ela é a modelo que veste e vende seus produtos. Com a mesma simpatia, sorriso, brilho, força e garra de uma boa libriana. Isso mesmo, libriana de carteirinha. Aí deve estar o segredo, o mistério que transformou uma relação entre cliente e vendedora numa de amiga para amiga. O empurra-empurra acabou virando comissão da verdade, e ainda pago da melhor forma possível, com direito a desconto e tudo. E assim continuamos, trocando de roupa a cada encontro, sem deixar de lado a beleza que é o nosso presente, e que nos faz enxergar as verdadeiras e boas aquisições.