28 de setembro de 2010

Narração X Explicação

Torna-se cada vez mais raro o encontro com pessoas que sabem narrar alguma coisa direito. É cada vez mais freqüente espalhar-se em volta o embaraço quando se anuncia o desejo de ouvir uma história. É como se uma faculdade, que nos parecia inalienável, a mais garantida entre as coisas seguras, nos fosse retirada. Ou seja: a de trocar experiências.

[...] Cada manhã [o jornal] nos informa sobre as novidades do universo. No entanto somos pobres em histórias notáveis. Isso ocorre porque não chega até nós nenhum fato que já não tenha sido impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em proveito da informação. Com efeito, já é metade da arte de narrar, liberar uma história de explicações à medida em que ela é reproduzida.
Walter Benjamin

27 de setembro de 2010

A mensagem desejada

Extraída de “O imaginário cotidiano", de Moacyr Scliar
http://www.fotorescue.com/
           “EVITE E‐MAILS INDESEJADOS.” (INFORMÁTICA, 30 AGO. 2000)

           Brigaram muitas vezes e muitas vezes se reconciliaram, mas depois de uma discussão particularmente azeda, ele decidiu: o rompimento agora seria definitivo. Um anúncio que a deixou desesperada: vamos tentar mais uma vez, só uma vez, implorou, em prantos. Ele, porém, se mostrou irredutível: entre eles estava tudo acabado.
             Se pensava que tal declaração encerrava o assunto, estava enganado. Ele voltou à carga. E o fez, naturalmente, através do e-mail. Naturalmente, porque através do e-mail se tinham conhecido, através do e-mail tinham namorado. Ela agora confiava no poder do correio eletrônico para demovê-lo de seus propósitos. Assim, quando ele viu, estava com a caixa de entrada entupida de ardentes mensagens de amor.
             O que o deixou furioso. Consultando um amigo, contudo, logo descobriu que havia solução para o problema: era possível, sim, bloquear as mensagens de remetentes incômodos. Com uns poucos cliques resolveu o assunto.
              Naquela mesma noite o telefone tocou e era ela. Nem se dignou a ouvi-la: desligou imediatamente. Ela ainda repetiu a manobra umas três ou quatro vezes. Depois, também o telefone silenciou, mas aí ela optou por usar o pager dele. Tórridos recados apareciam ali, evocando as passadas noites de paixão e prometendo repeti-las. Ele simplesmente enfiou o pager numa caixa, junto com vários outros objetos sem uso. Posso muito passar sem essa droga, resmungou.
             Esgotada a fase eletrônica, começaram as cartas. Três ou quarto por dia, em grossos envelopes. Que ele nem abria. Esperava juntar vinte, trinta missivas, colocava tudo em um envelope e mandava de volta para ela. Funcionou: agora o carteiro trazia apenas contas e propagandas, como sempre.
             Mas se pensou que ela tinha desistido, estava enganado. Uma manhã acordou com batidinhas na janela do apartamento. Era um pombo, um grande pombo branco. Surpreendeu-se: o que estava querendo aquela estranha ave? Tão logo aproximou-se da janela, descobriu: era um pombo-correio, trazendo numa das patas uma mensagem.
             Não teve dúvidas: agarrou-o, aparou-lhe as asas. Pombo, sim. Correio, não mais.
             E pronto, não havia mais opções para a coitada. Aparentemente chegara o momento de gozar seu triunfo; mas então, e para seu espanto, notou que sentia falta dela, de seus carinhos, de seus beijos. Mandou-lhe um e-mail, e depois outro, e outro: ela não respondeu. E não atendia ao telefone. E devolveu as cartas dele.
             Agora ele passa os dias na janela, contemplando a distancia o bairro onde ela mora. Espera que dali venha algum tipo de mensagem. Sinais de fumaça, talvez.

Escola de Redação E.U.A. (Parte 4)

Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
            Nossos anúncios especificavam que, quando um candidato nos escrevia manifestando interesse pelo curso, ele deveria mandar uma mostra de seu texto, qualquer tipo de "material", curto ou longo, para submetê-lo a nossa "análise", juntamente com um vale postal no valor de cinco dólares. Enviávamos de volta nossa "análise" e dizíamos ao candidato se ele tinha ou não talento suficiente para se tornar um escritor de sucesso. Todos os candidatos - a menso que fossem analfabetos - tinham talento. Em seguida, o candidato tinha que completar a primeira lição - creio que o nome era "Relato direto" ou então "Prosa descritiva" - e enviá-la a nós num prazo de um mês, juntamente com os trinta e cinco dólares restantes. Esse texto era "analisado" e devolvido juntamente com a segunda lição; e assim o curso prosseguia.
          Já não me lembro de todas as lições, mas uma delas era "Publicidade". pedia-se ao aluno que redigisse anúncios para frutas, pão, bebidas. Não sei por que se dava tanta ênfase a comida e bebida: talvez fosse sinal dos tempos. Uma outra lição era um conto, e havia também um a "Confissão verídica". Quase todos os alunos confundiam esses dois gêneros totalmente. E as ä mostras" enviadas inicialmente tendiam a pertencer ao gênero "Confissão verídica", também. Essa amostra, expandida ou cortada, censurada ou apimentada, juntamente com a primeira carta ao senhor Margolies que a acompanhava, constituía a parte mais interessante do curso para todas as partes envolvidas. Meu trabalho consistia em redigir uma análise de cada lição em quinhentas palavras, se possível, tantas por dia quanto eu conseguisse fazer, utilizando como modelos uma coleção de lições e análises antigas. Cabia a mim também escrever uma pequena resposta pessoal à carta que infalivelmente acompanhava cada lição. Era meu dever incentivar o aluno se ele estivesse desanimado, e convencê-lo com firmeza a mudar de idéia se demonstrasse algum sinal de querer seu dinheiro de volta.
ParkeHarrison
         Henry James afirmou uma vez que todo aquele que aspira tornar-se escritor deve escrever em sua flâmula uma única palavra: "Solidão". No caso de meus alunos, o que eles necessitavam não era excluir-se da sociedade, e sim entrar nela. O problema deles era que "Solidão" havia sido escrito em suas flâmulas sem que eles pedissem, e era por isso que queriam tornar-se escritores. Todas as cartas que chegavam a minhas mãos, sem exceção, vinham de pessoas que sofriam de uma solidão terrível, em todas as suas formas mais conhecidas, e mais algumas formas de cuja existência eu nem sequer desconfiava. Escrever - principalmente escrever para o senhor Margolies - era uma maneira de diminuir a solidão. Ser publicado, tornar-ser "famoso", seria uma solução instantânea para o problema da falta de identidade e uma fuga da solidão, porque desse modo o escritor conheceria outras pessoas, sob a forma de admiradores, amigos, amantes, pretendentes etc.
         Nos formulários que preenchiam, os candidatos especificavam a idade e a profissão. Muitos eram vaqueiros e empregados de fazendas. Um deles escrevia suas lições com letra de imprensa, não do tipo que foi ensinado uma certa época nas escolas de elite, embora semelhante, mas sim com a espécie de letra de imprensa que uma criança faz quando tenta caprichar. Havia um pastor de ovelhas, um pastor de verdade, que chegou mesmo a afirmar que elevava uma vida muito solitária, "por causa da minha profissão". Escrever o animava, porque "as ovelhas não são uma companhia muito interessante para um homem (ha-ha)".  Havia também mulheres de empregados de fazenda. Muitos eram marinheiros; um, negro, era cozinheiro; havia um suboficial servindo num submarino e um faroleiro - um guardador de farol de verdade. Havia muitas "domésticas", algumas das quais se diziam "de cor", e vários estudantes que me escreviam do interior do Sul, que me informavam, como se tivessem obrigação de fazê-lo, que eram negros.
         De todas as cartas e lições que li durante minha passagem pela Escola E.U.A., apenas as de uma aluna indicavam um mínimo de "talento". Era uma "criadora de gado e galinhas", uma "solteirona", como ela própria se identificava, que morava no interior do Kansas. Os contos que ela mandava, qualquer que fosse o gênero de exercício requisitado, eram contos de verdade. os relatos dos outros alunos eram fracassos de cortar o coração - incoerentes, abruptos, atrofiados. As histórias dessa mulher se prolongavam com exuberância, como a narrativa de um bom contador de histórias, e quase chegavam a ser interessantes, com muita cor local e uma abundância de detalhes. Eram cheias de galos, cobras, raposas e gaviões, e tinham enredos dramáticos, talvez verídicos, que giravam em torno de vacas doentes ou moribundas, hipotecas, madrastas, bebês, nevascas desastrosas, tornados. Eram também dez vezes mais compridas que as histórias de todos os outros alunos. Depois que larguei meu emprego, de vez em quando folheava revistas de fazendeiros, como The Country Gentleman, na esperança de que ela tivesse finalmente conseguido publicar, mas nunca vi seu nome.

24 de setembro de 2010

Crônica feminina

Pilar Carvalho
judoepoesia.blogspot.com
           Seu nascimento tinha sido motivo de comemoração: Doninha, apesar de ter engravidado várias vezes, só conseguira parir menino-homem, como se diz. Foi somente quando estes já estavam crescidinhos, que deu à luz uma menina, Gracinha. Uma garotinha mirradinha que cabia na palma da mão do pai, só as duas perninhas fininhas, pendiam para além das bordas dos dedos calosos. Não condizia exatamente com a imagem que aparecia nos seus sonhos, mas isso não importava. Era sua filhinha, sua menina.
          No dia seguinte, Doninha mandou que furassem as orelhas da menina. Não queria que duvidassem do sexo da criança. O par de brincos estava guardado no fundo de um velho baú: tinha sido comprado quando esperava seu primogênito.
          Com dez dias de nascida, a orelha esquerda de Gracinha infeccionou e Doninha foi obrigada a retirar o mimo das orelhas da menina. Doninha teve de esperar dolorosos quarenta dias para poder recolocar os brinquinhos.
          Mais alguns dias se passaram até que as orelhas inflamaram novamente. Para a tristeza de Doninha, a menina teve que ficar sem os brincos outra vez.
          Ao longo dos três primeiros anos de vida, o problema continuou intermitentemente. Doninha decidiu que precisava comprar um par de brincos novos para Gracinha. Ela acreditava que assim resolveria o problema para sempre.
         Apesar dos brincos novos, as orelhas continuaram se inflamando como antes. E, ao final de mais dois anos de sofrimento, Doninha decidiu que Gracinha não precisava mais dos brincos. Com lacinhos nos cachinhos longos ninguém a iria confundir com um menino.
          Parece que a cisma da mãe passou para a filha, pois agora era esta que não se conformava com as orelhas nuas: dia sim, dia não, sonhava que estava usando lindos brincos. Adolescente, Gracinha não se incomodava com o corpo que parecia ter se esquecido de crescer. O que a deixava muito frustrada era não poder usar brincos como todas suas colegas faziam.
         Um dia Gracinha descobriu um artefato que se prendia à orelha por meio de pressão: um pequeno beliscão no lóbulo da orelha e o brinco ficava lá, presinho, igualzinho como o outro.
         É bem verdade que às vezes sentia um grande alívio ao retirá-los, mas Gracinha estava feliz da vida e, finalmente, sentia-se totalmente feminina.
         Os brincos de pressão passaram a ser a mania de Gracinha e ela gastava cada tostão que ganhava na compra de um novo par.
         Casada, Gracinha foi morar na capital e lá acabou por preencher dezenas de caixinhas com sua coleção que, com o tempo, apresentava brincos de todos os tamanhos, cores e formatos.
Gracinha não era como essas mulheres que levam uma hora escolhendo o que vai vestir, mas levava quase uma hora escolhendo o par de brincos que melhor combinava com a roupa e com a ocasião.
          A coleção de Gracinha chegou a ocupar três enormes gavetões de uma cômoda comprada só para guardar todos aqueles brincos. Ali havia dezenas de caixinhas e cada uma abrigava um par de brincos. Ela conhecia todos eles e não se incomodava de emprestá-los, mas só sossegava quando os via de volta ao seu lugar.
          Quando sua netinha caçula, Mariana, completou dez anos, Gracinha decidiu que era hora de parar de gastar com essa mania de comprar brincos. Foi então que fez uma promessa: só voltaria a comprar um novo par de brincos para a ocasião de formatura de sua neta na faculdade. Gracinha era uma mulher de muita fé e adoraria ver a neta realizando o sonho que quando menina sonhara para si: formar-se numa grande universidade, com festa, discursos, beca e capelo.
         Treze anos após o ter feito a promessa, Mariana formou-se na faculdade. Vestida impecavelmente com a beca e o capelo, lá em cima do palco, avistou aquela figura miúda de cabelos encanecidos que sorridente ostentava brincos novos e reluzentes.

21 de setembro de 2010

Retomando o fio da conversa: Livro/Livre

Em Livro – um encontro com Lygia Bojunga Nunes
           Foi quando eu dei pra ruminar o jeito que eu tinha, que eu comecei a namorar a idéia de escrever livro.
           Eu pensava assim, desde que eu me lembro de mim eu vivo de livro ao meu lado; e eu só tinha sete anos quando eu tive meu primeiro caso de amor com um livro.
          Cada vez que eu me mudava, a primeira coisa que eu fazia era arrumar a estante de livros.
          E eu não experimentava escrever livro?
          Quando eu ia viajar, tinha sempre uma hora melhor que as outras: a de ficar escolhendo que livro eu levava comigo.
          Em qualquer lugar, qualquer tempo, fuçar livraria era sempre bom. 
          E se havia solidão, ela não pesava tanto assim: eu tinha sempre um livro à mão.
          E eu não escrevia livro?
          Saindo de casa, muito antes da fruta e da flor no quarto de hotel ou pensão, eram dois ou três livros que eu logo espalhava, pra fazer do quarto provisório a minha nova morada.
         Na praia, esticada na areia, o bom era ficar de barriga pra baixo, e fincar a bochecha na mão pra ler.
         No mato então nem se fala; ainda mais no verão; que coisa gostosa ficar de livro esquecido na mão pra ler; o olho seguindo o vôo da abelha, o balanço da folha, brincando de ver o jogo da luz e o jogo da sombra, mas a mão sempre sentindo o livro bem junto, pra eu ficar sabendo que: não tinha pressa, mas ele estava ali.
         E eu não ia escrever um livro?
        Mesmo um pequenininho, um só? Só pra ver como é que ia ser esse encontro?
        E não era uma coisa a calhar pra mim? Poder ficar bem esquecida num canto, me comunicando direto com quem me lia (sem nem saber quem é que é, já pensou?), sem precisar de intérprete pra me interpretar? 
          Resolvi experimentar.
          O meu primeiro encontro me deixou até confusa.
          Eu estava tão condicionada a comprimir os meus personagens em tantas falas, tantas cenas, tantas laudas, sabendo que era só deixar eles se mostrarem mais um bocadinho que lá vinha o verbo arrepiante: CORTA! Que eu fiquei cheia de dedos pra fazer uso da liberdade que eu sentia o tempo todo me rondando. A liberdade de fazer uma cena, um parágrafo, um capítulo do jeito que a minha imaginação pedia e não do jeito que esperavam de mim.
         Era só eu cismar que eu botava o Maracanã cheinho dentro de uma cena. E ninguém ia me perguntar se era eu que pagava o cachê das duzentas mil pessoas.
          [...]

          O luxo de corrigir e reescrever, somado à sensação da liberdade me rondando, me roçando, me envolvendo, fez uma impressão tão forte dentro de mim, que eu saí desse primeiro encontro pressentindo que fazer literatura ia ser pra mim uma imensa aventura interior*. E desde esse dia eu confundo as palavras livro e livre: me acontece muito querer dizer uma e sair a outra.

* Não me enganei.

Regras para a criação

maquinas de escribir-janpuerta.blogspot.com/
Digam a Arnold Bennett que todas as regras de construção só continuam válidas para os romances que são cópias de outros. Um livro que não seja cópia de outros livros tem uma construção própria; e o que ele, por ser um velho imitador, chama falhas, eu chamo características. 
D.H. Lawrence, cit. por Ernesto Sábato

19 de setembro de 2010

Tradição: conserva&inova

O conceito de tradição é um testemunho vivo do fato de que as duas funções, do inovar e do conservar, só podem ser exercidas conjuntamente, já que continuar sem inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem continuar significa fantasiar no vazio, sem fundamento; e, além disso, exige criatividade e obediência ao mesmo tempo, porque não pertencemos a uma tradição se não a temos em nós, e ela não tem propriamente outra sede a não ser aqueles atos de adesão que a reconhecem na sua eficaz realidade, e não é possível agregar-se a uma tradição sem já modifica-la apenas com esta agregação, nem inova-la sem ter sabido interpreta-la na sua verdadeira natureza e torna-la operante na sua real atividade. Como quer que se teorize o conceito de tradição, encontrar-se-á, no fim, um ato de obediência criadora que a continua e, ao mesmo tempo, a inova.
Luigi Pareyson. Os problemas da estética. Trad. M. Helena Garcez 
***
Ernest Hemingway em seu scriptorium.

O que é uma frase bonita? Uma frase “certa”? Compare.

I.
Considerando quão comum é a doença, quão tremenda a transformação espiritual que ela produz, quão assombrosos, quando as luzes da saúde baixam, os países ignotos que são então expostos, que ermos e desertos da alma um ligeiro ataque de gripe põe à vista, que precipícios e gramados salpicados de flores brilhantes uma pequena elevação da temperatura revela, que antigos e empedernidos carvalhos são desarraigados em nós pelo ato da enfermidade, como descemos ao poço da morte e sentimos as águas da aniquilação pouco acima de nossas cabeças e despertamos pensando nos encontrar na presença dos anjos e dos harpistas quando temos um dente extraído e chegamos à superfície na cadeira do dentista e confundimos seu “Enxágue a boca... Enxágue a boca” com a saudação de Deus curvando-se do piso do Céu para nos dar as boas-vindas – quando pensamos nisso, como somos tão freqüentemente forçados a fazer, torna-se realmente estranho que a doença não tenha tomado o seu lugar ao lado do amor, da batalha e do ciúme entre os temas principais da literatura.
Virginia Woolf, On Being III
II.
Considerando a freqüência com que as pessoas adoecem, é estranho que os escritores não escrevam mais sobre a doença.
Exemplo retirado do livro "Ler como escritor" de Francine Prose.

18 de setembro de 2010

A escola de redação E.U.A (Parte 3)

Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
          O curso que oferecíamos, "Aprenda a escrever", era anunciado nas revistas mais baratas, de agricultura, cinema ou faroeste. Os anúncios eram do tipo que afirma "você também pode ganhar dinheiro escrevendo", anúncios redigidos de modo convincente, porém cuidadoso. Aceitávamos qualquer aluno, qualquer que fosse seu nível de instrução, e o ensinávamos a escrever qualquer tipo de texto - reportagens jornalísticas, anúncios, romances; todo aluno receberia a atenção individual de escritores de sucesso como o senhor Hearn e o senhor Margolies. O curso completo consistia em oito aulas; o pagamento era adiantado, e o preço era quarenta dólares. No tempo em que trabalhei lá, a escola tinha apenas cerca de cento e cinquenta "alunos"; porém num passado bem recente houvera muito, muito mais alunos, e isso voltaria a acontecer assim que o curso passasse por uma "revisão". Pouco antes, tinha havido uma tremenda convulsão na escola, que acarretara a perda da maior parte dos alunos, e por algum motivo tornara-se necessários rever e reimprimir tudo - todas as circulares, todos os formulários de contrato, todas as "lições". Era por isso que havia tantas datilógrafas trabalhando.
          Todas essas revisões, inclusive as oito lições, estavam sendo feitas por Rachel. Sua mesa vivia coberta de pilhas de tiras de papel, presas por clipes, que eram pedaços do "material" antigo do curso. Havia também pilhas de circulares de outros cursos por correspondência, e um que outro manual de composição, dos quais ela extraía as frases mais dogmáticas, por vezes até parágrafos inteiros. Quando resolvia trabalhar, Rachel era rapidíssima. Sua máquina de escrever produzia um ruído equivalente ao de duas ou três máquinas sendo usadas ao mesmo tempo, e as datilógrafas nervosas iam e vinham afobadas da sala grande para nossa saleta, levando e trazendo pilhas de material, como se participassem de uma corrida de revezamento. porém boa parte do tempo Rachel ficava a conversar comigo, ou a contemplar a neve que caía lá fora com uma expressão soturna no rosto. Uma vez perguntou-e: "Por que você não escreve um poema bonito sobre isso?". Uma ou duas vezes, com um cheiro forte de uísque, passou a tarde inteira carrancuda, mergulhada num romance proletário recém-publicado.
          Raramente víamos o senhor Black. Ele recebia muitos visitantes em seu escritório, homens muito parecidos com ele, e lhes servia café instantâneo que preparava num fogãozinho; um cheiro desagradável de metanol atravessava a parede divisória e penetrava nossa sala. De vez e quando trazia café para nós duas, em xícaras de vidro baratas com bordas tão ásperas que cortavam os lábios. Ele perguntava: "E como vai nossa moça de Vassar?". Olhava pro cima de meu ombro para a carta que eu estava lentamente produzindo, batendo à máquina com dois ou três dedos, e então exclamava: "Muito bem! Muito bem! Está se saindo muito bem! Eles vão adorar! Vão adorar!". E apertava o meu ombro com uma força excessiva. Às vezes dizia a Rachel: "Dê uma olhada nisso. Guarde; ponha a cópia carbono no seu arquivo. Vamos usar de novo". Rachel gemia alto.
          Foi ali, naquele lugar malsão, apesar de tudo que eu já lera e aprendera e julgava já saber sobre o assunto, que pela primeira vez me dei conta do poder misterioso e terrível da escrita. Ou melhor - como "escrita" tem tantos significados diferentes - o poder da palavra escrita, ou até mesmo da Palavra com P maiúsculo, ou mesmo do Verbo, com cujo significado antes eu não havia atinado, mas que de repente se revelou a mim com toda a clareza, ainda que de modo intermitente.
http://elperrotendrasudia.blogspot.com/2008_05_01_archive.html
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17 de setembro de 2010

13 de setembro de 2010

A história de Ariadne, por ela mesma (reconto do Minotauro)

Louis Begley - Trad. Rubens Figueiredo ("Folha de São Paulo, Mais!", 22/12/2002)
          No labirinto do Minotauro
          Segundo a mitologia grega, um jovem herói ateniense chamado Teseu, ao saber que sua cidade deveria pagar a Creta um tributo anual composto de sete rapazes e sete moças, para serem entregues ao insaciável Minotauro que se alimentava de carne humana, solicitou ser incúído entre eles. O Minotauro vivia em um labirinto, constituído de salas e passagens intrincadas do palácio de Cnossos, cuja invenção é atribuída ao arquiteto ateniense Dédalo. Ao chegar a Creta, Teseu conhceu Ariadne, resolvida a salvar Teseu, pediu a Dédalo a planta do palácio. Ela acreditava que Teseu poderia matar o Minotauro, mas não saberia sair do labirinto. Ariadne deu então um novelo a Teseu, recomendando que o desenrolasse à medida que entrasse no labirinto onde vivia o Minotauro, de modo a encontrar a saída depois de matar o monstro.
          Teseu usou essa estratégia, matou o Minotauro e, com a ajuda do fio de Ariadne, encontrou o caminho da volta. Retornando a Atenas, o herói levou consigo a princesa. Depois de uma noite de amor, Teseu deixou-a na ilha de Naxos e ela nunca mais o viu.
***

          Ela sabia a história de sua família, o futuro da família e, nela, o seu próprio futuro. Seu pai, o rei Minos, lhe havia contado. Além disso, ultimamente, rápidas visões desse futuro haviam surgido, em lampejos, ante os seus olhos. Sonhos ou revelações? Não tinha certeza. Este saber a deixava triste, envaidecida e envergonhada. Sua irmã Fedra e ela, ambas suicidas, enforcadas pelas próprias mãos! O Minotauro, seu meio-irmão, assassinado! A nau ateniense, com Teseu a bordo, já estava a caminho, vindo de Creta. Saber que a desgraça se desencadearia muito em breve a deixava aflita. Numa tarde dourada, ela se dirigiu à corte onde sabia que encontraria o pai, recostado em seu coxim de ouro e prata, ajoelhou-se a seu lado, chorou e lhe revelou seus temores. Sabia que o pai a consolaria. O rei ouviu com atenção, afagou o cabelo da filha e disse: Coragem, minha Ariadne. Aquilo que há de vir está sempre diante dos olhos de Zeus e não pode mudar; para nós, que somos seus filhos, ele só revela a porção do futuro cuja visão conseguimos suportar; mas nem mesmo ele pode subjugar as leis da Necessidade. O passado vive na mente dos mortais. Aquilo que há de acontecer não é o mesmo que eles irão conhecer ou lembrar.
          Por que é assim, pai – perguntou Ariadne. Como aquilo que aconteceu pode ser desfeito? Minha filha adorada, respondeu Minos, o passado é apenas o que os poetas nos contam. Mentirosos natos, todos eles, como os que cantam em troca de comida na mesa do meu banquete. Inteligência e memória degeneradas; para cada fato ocorrido, eles inventarão, a cada geração, outros dez, que jamais aconteceram, e cada geração acrescentará suas inumeráveis invenções. Muito depois, homens ainda mais inconsequentes, chamados historiadores, continuarão a reescrever o passado, até que fábulas ocupem o seu lugar.
          Ariadne refletiu bastante. Pai, disse ela, o senhor mostrou-me o caminho. Para nós, mortais, o futuro é breve; o passado pode ser eterno. A fim de salvar minha honra, criarei a minha própria história dos infortúnios que estão para se abater sobre mim. Eis aqui como a história há de ser contada: eu. Ariadne, sabia que a nau ateniense de velas negras traria, mais uma vez, para o senhor, meu pai, o tributo anual de Atenas – sete rapazes e sete virgens de grande beleza – destinados a saciar a fome de carne humana e aplacar a sede de sangue humano do meu meio-irmão, o Minotauro. Eu também sabia que o herói Teseu, filho do rei de Atenas, estava entre eles e que jurara matar o Minotauro. Moviam-no a vingança e a aversão à natureza do Minotauro, em parte humano e em parte animal, e à união da qual foi ele o fruto, quando a rainha Pasifae, minha mãe, enlouquecida por Posêidon, deixou que o touro do deus do mar a cobrisse. Escondida dentro de uma vaca de madeira que Dédalo fabricou para ela, Pasifae abaixou-se e entregou-se ao touro. Mais tarde, o senhor mandou Dédalo construir o Labirinto onde, envergonhado, o senhor escondeu o Minotauro. E eu conhecia a profecia que haviam feito a Teseu: que eu haveria de me apaixonar por ele com tanto ardor que trairia o meu país e o meu meio-irmão. Teseu, com a minha ajuda, entraria no labirinto, apanharia o Minotauro de surpresa e mataria o monstro com corpo de touro e um belo rosto de homem, usando uma espada que eu, às escondidas, pusera em suas mãos. Depois, orientado por mim e com a ajuda de um novelo de linha que eu lhe dera, Teseu escaparia do labirinto e embarcaria de volta para a sua terra, tendo a mim como concubina. Nada disso vai acontecer! Eu, pobre de mim, me entregarei a Teseu. Mas, a fim de me humilhar e relembrar a vergonha do touro e de Pasifae, o louco vai me possuir como fazem os cães. O insulto me deixará furiosa e reanimará meu amor pelo Minotauro, como homem e como touro. O senhor sabe que respeito, por igual, todos os seres vivos. Pelo sexo, porém, me entrego ao touro em qualquer momento. Prevenido por mim, o Minotauro vai devorar Teseu e os outros treze atenienenses. Depois, urrando feliz, com uma guirlanda de rosas em volta do pescoço, ele pedirá a minha mão, que o senhor, de bom grado, cederá. E assim, depois que Zeus tiver chamado o senhor para o lado dele, o Minotauro e eu e os nossos filhos, até a décima geração, reinaremos na rica e fértil Atenas.

10 de setembro de 2010

O tóquicico

mgrilo
Se você não consegue o que deseja, é melhor gostar do que consegue. Bernard Shaw
          Com seus cabelos maltratados, longos e esbranquiçados, Rui india-velha estava me explicando por que considera  a maconha um produto natural e uma homeopatia para o espírito.
          Esse vai para o inferno via barca de Caronte, comentei alto depois que me afastei dele. Por que,  pelo contrário, o tratamento do espírito exige diversos atos de coragem e muito trabalho, e corruptores como eles vivem exclamando: Longe de mim, esse trabalho!
          Mas existem outros vícios similares, e uma história de um deles relato a seguir.

Vida de poeta
          Preguiçoso mental em que só considerava a valorização da inspiração sem a transpiração, Moacizinho de vez em quando folheava poemas e prosas daqueles poetas chatos que só se alimentam das palavras pelas palavras e de si mesmos, até que finalmente se achando inspirado pelas musas soltou a seguinte frase no meio de um grupo de pessoas: “Aquele edifício parece um ranário, está cheio de pererecas gostosas!”, e de tanto repeti-la ganhou o apelido de Sophisticated Joe, que passou a usá-lo com algum orgulho.
          E num desses dias, como diz Céline, em que um fio desce das nuvens atravessando a cabeça e saindo pelo traseiro, Sophisticated decidiu apresentar sua frase ao mundo e escolheu nada-mais-nada-menos do que a porta da última cabine de um sanitário popular - murmurando que, pelo menos alguns daqueles caras tem algum momento de reflexão. L - levando uma lixa para preparar o espaço e uma régua para a letra ficar certinha, publicou sua proclama num sábado movimentado às dezessete horas e trinta e um minutos.
          Apesar de ansioso, decidiu aguardar duas semanas para voltar até sua portaeditor e o resultado das reflexões daqueles caras foi a seguinte: duas setinhas com telefones gays, algumas setinhas com epítetos difamatórios como Joe Babacão, Chupa-rola Joe e outros, e uma setinha longa até a parte inferior da porta  obrigando o nosso Joe  a se ajoelhar naquele chão imundo onde ele leu o clássico dos banheiros das escolas:
Triste vida
Triste sina
Ser poeta
de latrina,
          e esse acontecimento pode ser considerado como o término de uma fase de nosso aedo de uma frase.
          Mas com o tempo não se brinca, e muito depois vamos encontrar o nosso ex-Joe trabalhando como advogado de uma empresa e conhecido como Dr. Freitas, e como vício nem sempre é pecado ele acabou fazendo parte de uma punhado de pessoas intituladas DiPoets, vocês sabem, desse tipo de gente que imita as banalidades e as misérias dos estados de espírito deles mesmos.
***
Mike Bidlo. The fountain drawings.  Duchamp's pissoir
http://www.paolocurti.com/bidlo/bidduch.htm

7 de setembro de 2010

A escola de redação E.U.A. (Parte 2)

Elizabeth Bishop em "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
posted by chymes at 12:50 PM on April 14, 2006 em http://www.metafilter.com/
          O senhor Hearn era uma mulher alta, muito corpulenta, bonitona, com cerca de trinta anos de idade, chamada Rachel, que usava óculos pretos de tartaruga e tinha um sinal preto na bochecha. Nossa sala era um pouco pequena para nós duas. Rachel fumava furiosamente o tempo todo, eu fumava moderadamente, e tínhamos que ficar com a porta fechada para que as pobres datilógrafas provisórias, que não tinham permissão para fumar, não nos vissem e entrassem em greve, ou nos denunciassem ao quartel do corpo de bombeiros mais próximo. Com a chuva e a neblina e a neve lá fora e a fumaça dentro, vivíamos num isolamento sufocante, abafado, como se num casulo. O cheiro era o de um vagão de passageiros após uma longa viagem. Trabalhávamos uma de costas para a outra, mas nossas cadeiras eram giratórias, e passávamos boa parte do tempo viradas para trás, nossos joelhos quase se esbarrando, o cigarro de uma debaixo do nariz da outra, conversando.
          No início, ela me tratava mal. Na minha inocência, mais de uma vez, não percebi isso, naturalmente, era por conta de meu passado em Vassar e de minha carreira literária; mas em pouco tempo ela foi se tornando mais educada, e chegamos até a gostar uma da outra, moderadamente. Rachel era quem falava mais. Tinha muito a dizer; queria corrigir todas as falhas da minha formação e, como tantos outros naquele tempo, queria que entrasse para o Partido. Para não ter que ir à sede com ela e tirar minha "carteirinha", coisa que poderíamos fazer com facilidade na hora do almoço, assim que eu parasse com aquela absurda teimosia e me decidisse, resolvi dizer-lhe que eu era anarquista. Mas isso não adiantou muito. Apesar de meus princípios, me vi obrigada a defender o atentado a Berkman contra o sócio de Andrew Carnegie, Henry Frick, e depois disso passei horas na biblioteca da Forty-second Street consultando os livros classificados sob An, numa tentativa desesperada de conseguir fazer Rachel calar-se. Durante algum  tempo mantive contato com uma organização anarquista (descobri que eles são difíceis de contatar) em Nova Jérsei, a qual passou a me enviar panfletos e convites para reuniões, todos os dias, pelo correio.
          Às vezes almoçávamos juntas na imensa Stewart's Cafeteria. Eu nada tinha contra os restaurantes self-service, mas eles causam uma certa indecisão: o que comer, em que mesa sentar-se, em que cadeira da mesa ficar, tirar ou não o prato da bandeja antes de comer, onde colocar a bandeja, tirar ou não o casaco, largar as coisas com os comensais e ir pegar o copo d'água esquecido ou voltar com bandeja e tudo. Mas Rachel me empurrava a sua frente em direção ao balcão dos sanduíches. Era impressionante a variedade de sanduíches que se podia mandar fazer num átimo, e Rachel sempre comia três: salmão com requeijão num pãozinho, carne enlatada com picles num pão de centeio, carne defumada com mostarda em sei-lá-o-quê. Ela fazia seus pedidos aos gritos. Isso não adiantava muito, concluí, após tentar fazer meus três pedidos em voz alta; os sanduíches tinham todos os mesmo gosto. Passei a pedir uma maçãs cozidas. grandes, um tanto irreais, com café. Eu e Rachel, com seus três sanduíches e suas três xícaras de café pedidas ao mesmo tempo, nos sentávamos com nossas capa e galochas encharcadas, nossos almoços se confundindo na mesa, e ela me fazia sermões sobre literatura.
          Ela nunca falava sobre política no almoço, não sei por quê. Tinha lido muito, e para mim, que era formada em letras, seu gosto me parecia patético. Gostava de livros grandes, com muita auto-afirmação e emoção, e seu poeta favorito era Whitman. Gostava das traduções de Merejkovski, tudo que Thomas Wolfe já havia publicado, tudo de Theodore Dreiser, o ciclo Studs Lonigan de James Farrell e, mais do que tudo, Vardis Fisher - ela praticamente sabia de cor tudo ue ele já havia publicado. Uma sensação de pesadelo me domina quando relembro aqueles almoços: o chão úmido e sujo de terra sob meus pés; a multidão molhada, ruidosa, a comer sob as luzes de néon; e a voz possante e inexorável de Rachel, me relatando com todos os detalhes a infindável e insuportável autobiografia de Vardis Fisher. Talvez alguns detalhes fossem acrescentados por ela, não tenho certeza; tomei a firme decisão de jamais ler os livros desse autor, que ela se oferecia para me emprestar, e até hoje não os li. Lembro de uma vez que ela recitou um verso e meio de "Modern love" de onde Fisher havia tirado três títulos consecutivos: "In tragic life. God wot./ No villain need be! Passions spin the plot..." [A vida trágica, Deus sabe,/ Dispensa vilões! São as paixões que movem o enredo], e fiquei a me perguntar, em meio àquela zoeira, por que motivo Fisher não havia explorado as possibilidade de "Deus sabe", ou se um dia chegaria a fazê-lo. Eu havia recentemente empreendido uma análise pormenorizada de The waste land, de Eliot, e aquela colagem literária não cheou a me impressionar.
          A única coisa que impressionava Rachel era o "realismo", apenas o "realismo". Mas eu tentava argumentar, no meu velho tom de sala de aula, que havia realismos e realismos, ou lhe perguntar o que ela queria dizer com "realismo", Rachel voltava uma expressão feroz para mim - seus olhos brilhavam sob as luminárias Stewart's - e em silêncio escancarava a bocarra para acomodar os vários andares de se sanduíche. O sinal sobre a bochecha subia e descia enquanto ela mastigava De início aqueles olhares que pareciam tabefes me inspiravam medo, mas acabei me acostumando. E quando, um dia, em nossa sala no curso, Rachel me pediu para ler uma frase que ela havia escrito para lhe dizer se a sintaxe estava correta, percebi que minha colega estava começando a gostar de mim, apesar de minha decadência burguesa e de minha falta de contato com a realidade que me levavam  buscar refúgio na infantilidade do anarquismo. Percebi também que Rachel já estava desconfiada de que havia algo de estranho nas posições polítcas que eu supostamente defendia.
          Arrogante, desonesta, pouco simpática, orgulhosa de ser "durona", suscetível, insensível, porém capaz de manifestar bondade ou senso de humor quando um gesto conseguia atingi-la, Rachel era uma novidade para mim. Tinha uma característica rara que captava meu interesse: jamais falava sobre si própria. Ganhava vinte e cinco dólares por semana. Andava mal vestida, até mesmo para uma frequentadora da Stewart's naquele tempo, e suja, ainda por cima. A única coisa que fiquei sabendo a seu respeito era que tinha uma irmã, internada num sanatório público para tuberculosos, que ela visitava todos os meses, mas de quem não gostava muito, ao que parece por ela ser doente, e portanto "não servir para nada". Rachel, por sua vez, era uma mulher fortíssima, e não demorou para que me desse conta de que ela inspirava medo, um medo quase físico, em todo mundo naquela pseudo-escola, inclusive o presidente, o senhor Black. Também não demorei para compreender que Rachel era o verdadeiro cérebro do curso, e posteriormente cheguei mesmo a suspeitar que fosse ela a verdadeira dona, e o senhor Black apenas um testa-de-ferro. Essa hipótese era provavelmente falsa, mas nunca descobri a verdade a respeito de nada do que se passava por lá.
          Rachel fumava cigarros que eram roubados para ela por um "homem" que ela conhecia - de que modo eram roubados, e que homem era esse, jamais descobri. De vez em quando apareciam outros objetos - uma bolsa nova, uma caneta-tinteiro, um isqueiro - vindos da mesma fonte, ou talvez de um outro "homem", mas Rachel jamais falou em amor nem em relações amorosas, a não ser as de Vardis Fisher. Era de esperar que ela me odiasse; minha aquiescência tranquila e minhas correções vacilantes deviam ser difíceis de engolir; mas creio que não me odiava. Acho que tínhamos pena uma da outra. Tenho a impressão de que Rachel me via como uma pessoa marcada para morrer; eu desfrutava minha breve existência de cigarra, meu "senso de humor", minha "cultura", enquanto tal era possível, e talvez, num futuro não muito distante, quando "a coisa virasse", ela poderia interceder em meu favor se quisesse. Imagino que mais tarde ela pode perfeitamente ter tido sucesso no mundo dos negócios - provavelmente em algum negócio escuso, como o curso de redação, só que em escala muito maior. Rachel parecia ser atraída por tudo que era escuro e torto, como se por acreditar que as pessoas eram levadas a usar métodos ilícitos pelas circunstâncias econômicas, não ser desonesta fosse uma desonestidade para ela. Um de seus ditos prediletos eram "a propriedade é um roubo".
          Pobre Rachel! Muitas vezes me inspirava antipatia, me dava um frisson, e no entanto ao mesmo tempo eu gostava dela, e sem dúvida não conseguia deixar de ouvir com atenção tudo o que ela dizia. Durante várias semanas Rachel foi para mim uma espécie de oradora pública particular. O fato de não ter um "passado", nenhum contexto definível em que se situasse, a impressão que dava de ter poder, de estar apenas esperando a hora de agir, por mais falsa e ridícula que fosse, me fascinavam. Conversar com Rachel era como olhar contra a luz e ficar imaginando que imagens sairiam daquelas opacidades e transparências quando a foto fosse ampliada. (Continua)
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4 de setembro de 2010

A escola de redação E.U.A. (parte 1)

Elizabeth Bishop em “Esforços do afeto”, trad. Paulo Henriques Brito
          Quando me formei em Vassar, em 1934, durante a grande depressão, ainda era muito difícil encontrar emprego, e os salários eram muito baixos. Talvez exatamente por isso, eu e muitas de minhas colegas nos achávamos na obrigação de arranjar emprego, mesmo que não precisássemos trabalhar. O espírito da época – e, naturalmente, de minha turma – era radical; éramos todas adeptas de um vago e puritano socialismo. Talvez julgássemos haver algo de virtuoso em trabalhar para ganhar muito menos do que nossas famílias haviam gastado com nossa educação. Foi por esse motivo, por precisar de fato de um pouco mais de dinheiro, por simples curiosidade e, creio eu, por puro masoquismo que me interessei por um anúncio publicado no Times de domingo. Era de um curso por correspondência, a Escola de Redação U.S.A.
          Primeiro fui entrevistada pelo dono, ou presidente, como ele se autodenominava, o senhor Black. Sua primeira afirmação foi a de que a “Escola de Redação E.U.A.” queria dizer “Escola de Redação Estados Unidos da América”, e o prazer que me deu essa explicação me prendeu de imediato. mas agora compreendo que eu fora fora feita por encomenda para o senhor Black, e mentalmentalmente ele deve ter esfregado as mãos e lambido os beiços durante nossa peqeuna conversa. Eu não sabia escrever à máquina – quer dizer, não da maneira correta; queria fumar durante o trabalho, o que era contrário à legislação antiincêndio; e não tinha experiência alguma em coisa nenhuma. Mas tinha um diploma de Vassar; e havia publicado um conto e três poemas em revistas. Eu não fazia a menor idéia da minha força; ele provavelmente me teria aceitado mesmo se eu pedisse vinte e cinco dólares por semana em vez dos quinze que me foram oferecidos, mas  é claro que esse pensamento não me ocorreu. Sem dúvida o senhor Black já estava pensando de que modo poderia incorporar minha formação primorosa e minha carreira literária nos prospectos de sua empresa.
          Porém aqui havia um pequeno problema. Ao menos durante algum tempo, eu teria que exercer minhas funções na escola com o nome de Fred G. Margolies, que era o nome não de meu antecessor, e sim do antecessor do antecessor de meu antecessor. Fiquei sabendo que alguns dos alunos do senhor Margolies ainda não havima concluído o curso, e tinham que receber seus trabalhos corrigidos com a assinatura dele, e até que eles se formassem eu teria de ser o senhor Margolies. Depois eu poderia me transformar em mim mesma e orientar novos alunos. Ocorreu-me que talvez eu preferisse continuar sendo o senhor Margolies, se tal fosse possível. Ele também havia publicado alguma coisa, se bem que nunca consegui me aprofundar na história do curso o bastante para descobrir o quê. E ele – melhor, eles – certamente sabiam escrever cartas muito bem, ou então tinham ainda mais curiosidade do que eu, ou talvez apenas pessoas de muito bom coração, a julgar pelo tom das cartas que eu recebia em nosso nome. Na verdade, durante muito tempo depois desse período continuei achando que o lado neuroticamente "bonzinho" da minha personalidade era mesmo o senhor Margolies.
          O curso ficava no quarto andar, o último, de um velho edifício caindo aos pedaços perto do Columbus Circle. Não havia elevador. Eu havia aceitado – se bem que "aceitado" não pode ser a palavra correta – o emprego no final do outono, e agora tenho a impressão de que estava sempre ou chovendo ou nevando quando eu emergia da estação do metrô, de manhã, no Columbus Circle, e que eu estava sempre com um vestido preto de lã, de impermeável, galochas e guarda-chuva. No corredor escuro havia três lances de escada; e a escada sempre cheirava a coisas como ferro quente; charutos, botas de borracha, caroços de pêssego – os últimos estertores das indústrias agonizavam por trás daquelas portas assinaladas por letras.
          A Escola E.U.A. consistia de quatro salas: uma ante-sala minúscula onde ficava uma moça sozinha, datilografando – conforme vim a constatar, batendo à máquina exatamente a mesma coisa que suas colegas estavam datilografando na sala grande a que a ante-sala dava acesso; creio que ela ficava ali para deter algum aluno que resolvesse inesperadamente vir em pessoa à escola. Nessa ante-sala havia algumas fotos na parede: retratos de Sinclair Lewis e outras pessoas que não haviam estudado lá. Depois vinha a sala grande, mal iluminada por diversas clarabóias cobertas de fuligem e neve, com as luzes acesas o dia inteiro; ali trabalhavam de seis a doze moças. O número delas variava de um dia para o outro; usavam máquinas de escrever muito antiquadas para preparar "aulas" do curso. Na outra extremidade dessa sala havia duas saletas bem pequenas, com janelas para a rua: a sala do senhor Black e a dos senhores Margolies e Hearn.
          O senhor Hearn era uma mulher alta, muito corpulenta, bonitona, com cerca de trinta anos de idade, chamada Rachel, que usava óculos pretos de tartaruga e tinha um sinal preto na bochecha. Nossa sala era um pouco pequena para nós duas. Rachel fumava furiosamente o tempo todo, eu fumava moderadamente, e tínhamos que ficar com a porta fechada para que as pobres datilógrafas provisórias, que não tinham permissão para fumar, não nos vissem e entrassem em greve, ou nos denunciassem ao quartel do corpo de bombeiros mais próximo. Com a chuva e a neblina e a neve lá fora e a fumaça dentro, vivíamos num isolamento sufocante, abafado, como se num casulo. O cheiro era o de um vagão de passageiros após uma longa viagem. Trabalhávamos uma de costas para a outra, mas nossas cadeiras eram giratórias, e passávamos boa parte do tempo viradas para trás, nossos joelhos quase se esbarrando, o cigarro de uma debaixo do nariz da outra, conversando.
          No início, ela me tratava muito mal. Na minha inocência, mais  uma vez, não percebi que isso, naturalmente, era por conta de meu passado em Vassar e de minha carreira literária; mas em pouco tempo ela foi se tornando mais educada, e chegamos até a gostar uma da outra, moderadamente. (continua)
A turma de 1934 (um ano depois da formatura de Mary McCarthy) em Vassar (aavc.vassar.edu)
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3 de setembro de 2010

Falsa terceira pessoa e mudança do foco narrativo

Autran Dourado em Poética de romance: matéria de carpintaria
           Falsa terceira pessoa, porque terceira pessoa mesmo, genuína, obriga a onisciência, o saber de Deus, para quem nada é obscuro. Em Kafka, quando a história está na primeira pessoa, o que não é comum em sua obra, reparem como parece que ele usou de recurso inverso, escreveu pensando em termos de terceira, pois o autor está sempre de fora, onisciente. Porque a primeira pessoa é unívoca, ninguém, a não ser o esquizofrênico, se vê de fora; a consciência, o saber humano, ao contrário da onisciência, é cerrada.
          Experimentem uma outra leitura de Kafka e compreenderão o que quero dizer. Tentem uma leitura de “O processo” ou da “Metamorfose” transpondo mentalmente o texto para a primeira pessoa, e vejam como todo o mistério e beleza, todo o absurdo e estranheza, a metafísica e a presença/ausência da Graça, desaparecem. Troquem Gregório Samsa por eu, mudem a desinência do verbo, e vejam como a metade, pelo menos, da maravilha que é a frase inicial com que Kafka abre a Metamorfose, desaparece.
         Venho usando desses recursos conscientemente. Em certos casos, [...] passo uma história escrita originariamente na terceira pessoa para a primeira, e o efeito é sempre surpreendente, quando não desconcertante, para mim.
         Vejam: a técnica é tão interessante que não é uma simples mudança de verbo o que acontece é muito mais. Ao contrario da adjetivo, o verbo é o que há de mais importante na gramática, na linguagem, na narração. Sem o adjetivo não há cor, sem verbo não há movimento na narrativa.

2 de setembro de 2010

Um definição de beleza: adequação ao objetivo.

Ezra Pound em A B C da literatura
A incompetência se manifesta no uso de palavras demasiadas. O primeiro e o mais simples teste a que o leitor deve submeter o autor é verificar as palavras que não funcionam; que não contribuem em nada para o significado ou que distraem do fator mais importante do significado em favor de fatores de menor importância.