Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
O curso que oferecíamos, "Aprenda a escrever", era anunciado nas revistas mais baratas, de agricultura, cinema ou faroeste. Os anúncios eram do tipo que afirma "você também pode ganhar dinheiro escrevendo", anúncios redigidos de modo convincente, porém cuidadoso. Aceitávamos qualquer aluno, qualquer que fosse seu nível de instrução, e o ensinávamos a escrever qualquer tipo de texto - reportagens jornalísticas, anúncios, romances; todo aluno receberia a atenção individual de escritores de sucesso como o senhor Hearn e o senhor Margolies. O curso completo consistia em oito aulas; o pagamento era adiantado, e o preço era quarenta dólares. No tempo em que trabalhei lá, a escola tinha apenas cerca de cento e cinquenta "alunos"; porém num passado bem recente houvera muito, muito mais alunos, e isso voltaria a acontecer assim que o curso passasse por uma "revisão". Pouco antes, tinha havido uma tremenda convulsão na escola, que acarretara a perda da maior parte dos alunos, e por algum motivo tornara-se necessários rever e reimprimir tudo - todas as circulares, todos os formulários de contrato, todas as "lições". Era por isso que havia tantas datilógrafas trabalhando.
Todas essas revisões, inclusive as oito lições, estavam sendo feitas por Rachel. Sua mesa vivia coberta de pilhas de tiras de papel, presas por clipes, que eram pedaços do "material" antigo do curso. Havia também pilhas de circulares de outros cursos por correspondência, e um que outro manual de composição, dos quais ela extraía as frases mais dogmáticas, por vezes até parágrafos inteiros. Quando resolvia trabalhar, Rachel era rapidíssima. Sua máquina de escrever produzia um ruído equivalente ao de duas ou três máquinas sendo usadas ao mesmo tempo, e as datilógrafas nervosas iam e vinham afobadas da sala grande para nossa saleta, levando e trazendo pilhas de material, como se participassem de uma corrida de revezamento. porém boa parte do tempo Rachel ficava a conversar comigo, ou a contemplar a neve que caía lá fora com uma expressão soturna no rosto. Uma vez perguntou-e: "Por que você não escreve um poema bonito sobre isso?". Uma ou duas vezes, com um cheiro forte de uísque, passou a tarde inteira carrancuda, mergulhada num romance proletário recém-publicado.
Raramente víamos o senhor Black. Ele recebia muitos visitantes em seu escritório, homens muito parecidos com ele, e lhes servia café instantâneo que preparava num fogãozinho; um cheiro desagradável de metanol atravessava a parede divisória e penetrava nossa sala. De vez e quando trazia café para nós duas, em xícaras de vidro baratas com bordas tão ásperas que cortavam os lábios. Ele perguntava: "E como vai nossa moça de Vassar?". Olhava pro cima de meu ombro para a carta que eu estava lentamente produzindo, batendo à máquina com dois ou três dedos, e então exclamava: "Muito bem! Muito bem! Está se saindo muito bem! Eles vão adorar! Vão adorar!". E apertava o meu ombro com uma força excessiva. Às vezes dizia a Rachel: "Dê uma olhada nisso. Guarde; ponha a cópia carbono no seu arquivo. Vamos usar de novo". Rachel gemia alto.
Foi ali, naquele lugar malsão, apesar de tudo que eu já lera e aprendera e julgava já saber sobre o assunto, que pela primeira vez me dei conta do poder misterioso e terrível da escrita. Ou melhor - como "escrita" tem tantos significados diferentes - o poder da palavra escrita, ou até mesmo da Palavra com P maiúsculo, ou mesmo do Verbo, com cujo significado antes eu não havia atinado, mas que de repente se revelou a mim com toda a clareza, ainda que de modo intermitente.
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