19 de agosto de 2014

O presente


Ruth Lifschits
          Noite fria, muito escura. Nós três, os maiores, grudados, bem juntinhos, sentados no primeiro degrau da escada. O menor passava pra lá e pra cá no colo da babá apressada, arrumando coisas, pegando roupas nossas no quarto dos fundos, no andar de cima, pela casa. Não sei bem o que ela fazia, mas estava muito ocupada. Nossa casa cheia e continuando a se encher de pessoas solenes, sérias. Umas conhecidas e muitas outras não. Onde estava minha mãe? Continuava sumida. Tínhamos voltado do colégio e ela não tinha aparecido para nos receber. Eu ouvia  seu choro, mas quando a procurava só via as costas de mulheres encurvadas olhando para algum ponto no meio daquele embolado de gente – de lá vinham os sons de choro, gritos, gemidos. A voz era dela, mas muito diferente do que costumava ouvir. Não sei quanto tempo se passou, ficou escuro e deixamos nossa casa. Não me disseram por quê. Nada
          Fomos levados para a base militar e pensei que papai estivesse lá. Procurei por ele, esperei por ele mas ele não apareceu. Entramos num avião depois de passarmos por homens fardados que nada diziam, só nos olhavam com olhar esquisito, triste. Ninguém dizia nada. Estava com medo. As fardas eram como as do papai. Onde estava ele? Também tinha sumido. Um amigo dele me pegou no colo, me beijou e abraçou. As bochechas dele estavam molhadas. Entramos no avião. Meus irmãos mais velhos de cabeça baixa, também não falavam nada. Eu queria fazer perguntas, mas tinha medo. Estávamos indo embora, para onde? O menor chorou, tossiu, ganhou uma chupeta. A babá disse para ele que logo estaríamos na casa de nossa avó. E a mamãe? Ah, lá na frente, acho que era ela, mas estava escuro, ela de preto, jogada num banco, o rosto enfiado nas mãos. E o papai? Onde? Íamos sem ele?
          Não sei se o voo foi curto ou longo, foi no escuro. Escuro lá fora, escuro dentro. Dormi ou estava no meio de um sonho, não sei. Quando saí do avião, meu padrinho veio me pegar, também sem falar. Passou a mão nos meus cabelos, me puxou para perto dele e ficou me apertando contra ele, um tempão. Me levou para um carro. A babá e o menor vieram atrás de nós. Minha madrinha me beijou. Ela estava chorando. Sentei no banco de trás. E meus outros irmãos? E minha mãe? Tinha me perdido deles. Medo. Mas a babá e o menor estavam ali, e  meus padrinhos também. Nosso carro foi seguindo um outro. Gosto de ver as luzes da cidade. Dormi. Chegamos numa casa toda acesa. Todas as luzes brilhavam. A sala quase sem móveis, com cadeiras e mais cadeiras encostadas ao longo das paredes. E muita gente lá. Estavam falando mas, quando entramos,  se calaram e ficaram olhando, aquele olhar triste e esquisito – igual ao dos homens fardados. Tinha gente chorando. Eu queria chorar, estava com muito medo. Onde estava minha mãe? E a vovó? A casa era dela, diferente mas era a dela. A babá nos levou para a cozinha. Quis que eu tomasse sopa, uma canja. Não queria, queria minha mãe. Fomos para o segundo andar, babá nos banhou e nos pôs para dormir nuns colchões arrumados no chão. O menor chorou, queria a mamãe. Ela não veio. Papai não veio. Mamãe estava ocupada, precisava descansar, a babá dizia, embalando o pequeno. Acho que comemos, fizemos um lanche lá no chão do quarto, não sei. Me sentia num sonho, num pesadelo, não sabia de nada. A cabeça inventa, cria realidades que se confundem. O menor deve ter mamado. Posso estar inventando, está tudo misturado na minha cabeça. Escovei os dentes com o dedo, me lembro muito bem disso. Minha escova tinha ficado na minha casa. Tudo muito diferente. Muito estranho, não era assim que me punham para dormir. Ninguém contou histórias, não falavam nada. E meus outros irmãos? Tinham sumido também.
 

          Eu me deitei pensando no meu aniversário. Papai tinha me prometido a boneca loura. Amanhã vou ganhar presentes, pensei, e me animei um pouco. Mas, a festa ia ser lá em casa  e nós estávamos na casa da vovó, longe. Mamãe tinha feito um vestido novo pra mim, branco com barra de tafetá estampada de verdes e vermelhos. Mudaram a festa para a casa da vovó? Tudo muito estranho.
          Aquele meu aniversário não aconteceu. Acordei numa casa vazia. Todos tinham sumido. Só as empregadas, a babá, as crianças. Brincamos, tinha uma indiazinha de nove anos na casa da vovó, falava diferente. Meninos jogavam bola na rua em frente, meus irmãos também. Ganhei um bolo com uma vela para soprar. Uma vela para seis anos? E chegaram todos para almoçar, solenes e sérios. Mamãe, de óculos escuros dentro de casa, de preto. Me abraçou, me deu um presente – a boneca loura. E papai, quando vem? Hoje não, hoje não era o que diziam. E asma, emplastro quente no peito, respirando com dificuldade fui para o colchão no chão, a boneca junto comigo, linda, linda.
          Acabei usando o vestido novo na missa de sétimo dia do meu pai. Mamãe trocou a barra de tafetá verde e vermelha por uma preta e branca. Não me lembro como fiquei sabendo que papai tinha ido para o céu e eu tinha que ser boazinha porque mamãe estava muito triste, muito cansada. Papai no céu?! Custei a entender que estavam me dizendo que ele tinha morrido. Meu irmão menor também não tinha entendido direito. Ficava olhando para o céu  pedindo para a lua  trazer o papai de volta.
Brejal, 3 de agosto de 2014.

A experiência decisiva que, para quem a tenha feito, se diz ser tão difícil de contar, nem chega a ser uma experiência. Não é mais que o ponto no qual tocamos os limites da linguagem. (Giorgio Agamben)
Fotos: JMGLA

18 de agosto de 2014

Escrita: terceira margem

Foto:JMGLA
Primeira margem: no pra cá pra lá, no meio do rio, no de repente, uma lancha de muitos pés, grande calado: os pés marolam pelas ondas que a lancha faz. Passa rápido mas vi seu nome desenhado – LITERATURA. Atrás rabeava uma corda. Segunda margem: chama-se o MENINO. Menino, você é o Pai: contra o pai, conta o pai, outras primeiras estórias. Terceira margem: a POESIA 
Bia Albernaz
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Vida vivida: falta de chão firme, de segurança, de conforto – tudo ilusão. É a escrita a vida de verdade? É a essência sem aparência, a liberdade de inventar, de criar personagens sem máscaras para outros? Assim deveria ser? É uma fuga? Um esconderijo de obrigações, deveres, compromissos? Escrever sem regras impostas, sem padrão, respeitar somente o querer. É um delírio? Um sonho? É comunicar com quem faz igual? Cada pessoa pode formar com o outro e o outro e o outro – uma forma de sobreviver. Aí, aceita, se expõe e o seu trabalho, suas ideias transformadas em histórias, memórias, graças, dramas. Corre a vida paralela: funções e papéis determinados. Rompe-se aqui e ali, mas o enquadramento sempre amarra. A escrita solta. 
Maria Tereza Albernaz
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Foto:BiaA.
Viver e ter coragem para escrever. Escolher viver criando, se expondo – sem nada, mas com tudo. Desapegada de outros fazeres, na vida com o escolhido, imersa em sentimento e imaginação, sem preocupação com o tempo. Sendo uma, sendo muitas e muitos, aqui e em todos os lugares e tempos. Entregue, sem domínio do externo, dominando o interior. Sem se deslocar, mas em todos os lugares. No fluxo da escrita, sem passado e sem futuro, num imenso aqui-e-agora múltiplo e variado. Seguindo, indo, sendo. 
Ruth Liftschts
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Não é a primeira, segunda ou terceira margem, a literatura é a canoa que nos conduz. Ao se afastar da primeira margem, nos fornece o distanciamento necessário para que possamos vê-la em toda sua extensão e complexidade. O canoeiro do conto de Guimarães Rosa, por exemplo, viu arderem por ele chamas insuspeitas. Da outra beira, a literatura nos descortina o conhecido e o desconhecido. E à terceira margem, nada é melhor do que ela para nos levar. 
Flávio Franklin
Com direção de Nelson Pereira do Santos, a produção de 1994 faz uma adaptação da história, tomando elementos dos outros contos presentes em "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa.
 Para ler o conto de GR ("A terceira margem do rio") e em seguida o do Mia Couto ("Nas águas do tempo"),
cf. circulosdeleitura.org.br

4 de agosto de 2014

PAI


Daniel Willmer
A cena é tocante,  quase grotesca, irreal: ver o homem tão envelhecido. Choca ver só pele e osso sob a camisola de hospital aberta nas costas. Em seu leito, tenta levantar o tronco, estica para fora os braços, para tentar aferrar-se às grades, com seus dedos longos e agora finos, quase transparentes, que deixam ver sob a pele as veias e capilares como se fossem pequenas enguias serpenteando. Com as mãos fechadas em volta das grades, puxa-as para si, quer se levantar, mas parece mudar de ideia, solta-as e volta a ficar deitado, exausto, exangue, tentando aferrar-se à vida.
Uma vez deitado, geme o esforço a cada expiração, sem dor física aparente, um pranto por perder seu viver. Apenas refeito, refaz o movimento, sua vida se resume a isso: deitar, levantar o tronco, abrir os braços e agarrar as grades para, mais uma vez, perplexo, soltar-se e tombar sobre o leito e gemer. Essa repetição é quase maquinal, cronometrada. Perceber que não há salvação não altera a sua ação. Ele sempre recomeça os movimentos como uma máquina extraviada de sua função.
Soltas das grades, quando o tronco se deita e enfim descansa, as mãos voltam a ficar uma sobre a outra, apertando-se mutuamente, como a se dar força para uma nova tentativa. São dias e noites que se escorrem desse jeito. Neste embate surdo, profundo, solitário – isolado do mundo – se isolando do mundo, se afastando cada dia mais um pouquinho.
Quando ele para de tentar se levantar e se entrega ao futuro, resta apenas a respiração ritmada e curta que expande e retrai o peito como de um boneco de molas, que ergue a cabeça do travesseiro num ímpeto para cair logo depois. O corpo não se mexe, não reage, não se sabe se ele nos escuta ou não, se há algum registro, ou se é apenas vida que late.
Parece que uma manhã ele quis voltar, mas tropeçou no caminho de volta e perdeu as forças que restavam.
Terá sido paz o fim da agonia? 
5.5.2014
Em 1947, Flavio de Carvalho (1899-1973) desenhou a "Série Trágica" ou "Minha Mãe Morrendo", composta por nove esquetes. Exposta no MASP em 1948, a série foi alardeada pela imprensa e execrada pela sociedade.
http://www.macvirtual.usp.br


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Você acha que eu iria fazer uma coisa que não fosse bonita? Ele era um artista e isto é bonito. É uma coisa certa. Não estou fazendo isto para ninguém. É para mim, que gostava tanto dele.
 Glauber Rocha

A tarde nublada e o salão vazio retratavam uma tristeza sem fim ao velório de Di Cavalcanti, no Museu de Arte Moderna [1976]. Eis que surge Glauber Rocha: "Um, dois, três, ..., dez, onze, doze... Corta! Agora, dá um close na cara dele". [...] Surpreendidos pela excêntrica cena, num ambiente de sofrimento, familiares e amigos, espantados, reprovaram a iniciativa de Glauber, que recebeu um compreensível pedido da filha adotiva do pintor, Elizabeth, para interromper aquele mórbido espetáculo. "Não se preocupe. Esta é a minha homenagem a um amigo que morreu. Estou aqui filmando a minha homenagem ao amigo Di Cavalcanti. Agora, dá licença que preciso trabalhar". [...] Finalizou seu filme e, no ano seguinte, lançou o documentário "Ninguém Assistirá Ao Enterro Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável!, - Di Cavalcanti di Glauber", uma homenagem cinematográfica póstuma.

A exibição do filme foi interditada pela justiça no mesmo dia, quando da concessão de uma liminar pela 7a. Vara Cível, ao mandado de segurança impetrado pela filha do pintor, Elizabeth Di Cavalcanti. O documentário recebeu o Prêmio Especial do Júri durante o Festival de Cannes em 1977. (Jornal do Brasil)
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Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, ir para o trabalho, quatro horas no escritório ou fábrica, almoço, trabalho, jantar, sono, segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado. Um dia surge o "por quê?" e somos tomados por uma fadiga assombrosa. A fadiga de uma vida maquinal inaugura um movimento da consciência.