Daniel Willmer
A cena é tocante, quase grotesca,
irreal: ver o homem tão envelhecido. Choca ver só pele e osso sob a camisola de
hospital aberta nas costas. Em seu leito, tenta levantar o tronco, estica para
fora os braços, para tentar aferrar-se às grades, com seus dedos longos e agora
finos, quase transparentes, que deixam ver sob a pele as veias e capilares como
se fossem pequenas enguias serpenteando. Com as mãos fechadas em volta das
grades, puxa-as para si, quer se levantar, mas parece mudar de ideia, solta-as e
volta a ficar deitado, exausto, exangue, tentando aferrar-se à vida.
Uma vez deitado, geme o esforço a cada expiração, sem dor física
aparente, um pranto por perder seu viver. Apenas refeito, refaz o movimento,
sua vida se resume a isso: deitar, levantar o tronco, abrir os braços e agarrar
as grades para, mais uma vez, perplexo, soltar-se e tombar sobre o leito e gemer. Essa repetição é quase maquinal, cronometrada. Perceber que não há
salvação não altera a sua ação. Ele sempre recomeça os movimentos como
uma máquina extraviada de sua função.
Soltas das grades, quando o tronco se deita e enfim descansa, as mãos voltam a
ficar uma sobre a outra, apertando-se mutuamente, como a se dar força para uma nova
tentativa. São dias e noites que se escorrem desse jeito. Neste embate surdo,
profundo, solitário – isolado do mundo – se isolando do mundo, se afastando
cada dia mais um pouquinho.
Quando ele para de tentar se levantar e se entrega ao futuro, resta apenas
a respiração ritmada e curta que expande e retrai o peito como de um boneco de
molas, que ergue a cabeça do travesseiro num ímpeto para cair logo depois. O
corpo não se mexe, não reage, não se sabe se ele nos escuta ou não, se há
algum registro, ou se é apenas vida que late.
Parece que uma manhã ele quis voltar, mas tropeçou no caminho de volta e
perdeu as forças que restavam.
Terá sido paz o fim da agonia?
5.5.2014
Em 1947, Flavio de Carvalho (1899-1973) desenhou a "Série Trágica" ou "Minha Mãe Morrendo", composta por nove esquetes. Exposta no MASP em 1948, a série foi alardeada pela imprensa e execrada pela sociedade. http://www.macvirtual.usp.br |
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Você acha que eu iria fazer uma coisa que não fosse bonita? Ele era um artista e isto é bonito. É uma coisa certa. Não estou fazendo isto para ninguém. É para mim, que gostava tanto dele.
Glauber Rocha
A tarde nublada e o salão vazio retratavam uma tristeza sem fim ao velório de Di Cavalcanti, no Museu de Arte Moderna [1976]. Eis que surge Glauber Rocha: "Um, dois, três, ..., dez, onze, doze... Corta! Agora, dá um close na cara dele". [...] Surpreendidos pela excêntrica cena, num ambiente de sofrimento, familiares e amigos, espantados, reprovaram a iniciativa de Glauber, que recebeu um compreensível pedido da filha adotiva do pintor, Elizabeth, para interromper aquele mórbido espetáculo. "Não se preocupe. Esta é a minha homenagem a um amigo que morreu. Estou aqui filmando a minha homenagem ao amigo Di Cavalcanti. Agora, dá licença que preciso trabalhar". [...] Finalizou seu filme
e, no ano seguinte, lançou o documentário "Ninguém Assistirá Ao Enterro
Da Tua Última Quimera, Somente A Ingratidão, Aquela Pantera, Foi Sua
Companheira Inseparável!, - Di Cavalcanti di Glauber", uma homenagem
cinematográfica póstuma.
A exibição do filme foi interditada pela justiça no mesmo dia, quando da concessão de uma liminar pela 7a. Vara Cível, ao mandado de segurança impetrado pela filha do pintor, Elizabeth Di Cavalcanti. O documentário recebeu o Prêmio Especial do Júri durante o Festival de Cannes em 1977. (Jornal do Brasil)
A exibição do filme foi interditada pela justiça no mesmo dia, quando da concessão de uma liminar pela 7a. Vara Cível, ao mandado de segurança impetrado pela filha do pintor, Elizabeth Di Cavalcanti. O documentário recebeu o Prêmio Especial do Júri durante o Festival de Cannes em 1977. (Jornal do Brasil)
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