15 de junho de 2016

O mito de Sísifo e as carências


filipe marinheiro
          Gritarei: absurda, suicida, sobre as matérias e substâncias desta obra tão excepcional. Inacabada. Aonde encontro carências e algumas náuseas. De resto uma obra fenomenal. Obra de carácter filosoficamente complexa aonde o paradoxo aparentemente pessimista enquanto entendimento do pensar absoluto é uma outra coisa absurda, ténue ou liquefeita que não aquela que o leitor retirará enquanto estética e ou inutilidade doutro pensamento como um sentido oculto nas palavras entre as palavras submersas nas ideias simples.
           Como perceber, navegar dentro desta obra sem as traves mestras filosóficas que suportam todos os níveis e desníveis do Mito? Sísifo na mitologia grega era considerado o mais astuto de todos os mortais. Mestre da malícia e da felicidade, era considerado um dos maiores ofensores dos deuses, tendo conseguido enganar a morte por duas vezes, fintando os deuses Thanatos e Hades.
          Ao morrer, Sísifo foi considerado um grande rebelde e foi condenado pelos deuses a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra até o cume de uma montanha só para ela rolar montanha abaixo sempre que estava prestes a alcançar o topo, começando o processo maquinal, intelectual de novo. Por este motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada Trabalho de Sísifo. Os deuses tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança ou devoção pela tortura daquele que fragmenta o pensamento. 
          Sísifo é o herói absurdo tanto pelas suas paixões como pelos seus tormentos. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a Paixão pela Vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. Absolutamente: Nada. E o que é o Nada neste contexto? No final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objectivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desmoronar-se em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície. Ei-lo o pretexto sentido, possessivo, primitivo. Pois é concretamente durante esse retorno, nessa preciosa pausa, que Sísifo nos deverá interessar. Um rosto por dentro das inúmeras máscaras evidentes e não tão-só nada evidentes [escondidas das verdades, não da verdade absoluta] a trespassarem de rostos em rostos as camadas que envergam, examinam, planeiam, plagiam os fundamentos de todo aquele esforço. Uma angustiante empreitada levada a cabo por uma figura mitológica desenhada a desenhos de músculos a saltarem da carne suja deste Ser tão límpido. Tão Puro. Condenado a reencontrar sempre o seu fardo.
          Terrível tal rosto assim tão perto das pedras como um espelho de pedra, é já ele próprio uma pedra. Vê-se esse homem a redescer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento sem escapatória imagética ou transcendente, cuja finalidade, jamais conhecerá. Nessa hora é com uma respiração útil que Sísifo ressurge tão certamente quanto a sua infelicidade. É nessa hora portanto que toma a consciência [alguma pelo menos]. A cada um desses momentos, deslizes, movimentos em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, se torna um superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo: a sua jura. A Fidelidade. Quem saberá destas coisas? Um fotógrafo da Alma ou um Pensador da Alma ou um próprio Ser? A eterna busca do homem por um sentido para a vida: eis aí um esforço talvez inútil e talvez útil. Peca aqui a filosofia do fundamento desiludindo-me.
          Parece que a humanidade está até ainda hoje a pagar pela rebeldia de Sísifo. Será isto um facto ou subterfúgio? Todavia o “absurdo” para Albert Camus nasce das nossas infinitas tentativas de dar sentido a um mundo sem sentido, e a sua obra evidencia as angústias e conflitos daquela época em que mergulhou a tinta da caneta sobre o tecido do papel ou viveu heroicamente, mas que nos continuam e continuarão a desafiar na actualidade. Defronte o dilema da futilidade do esforço e da certeza da extinção do homem e do universo, o que nos restaria então? Por que nós, humanidade, não deveríamos cometer suicídio? Nesta matéria ambivalente o autor acaba, por um lado, a condenar, estrangular o sentido da liberdade individual, blasfemando-a como um massacre. Ou, por outro, a anunciar uma leveza da sustentabilidade da vida que se deve viver numa liberdade tangível, orgânica: eis um pecado capital que este ensaio empurra [Camus suicida-se absurdamente – contexto situacional, enquadramento histórico-social e omissão ou mesmo diria esquecimento da abordagem do paradigma transcendental da beleza – e pior não seduz à lucidez] transpondo a vida exclusivamente com as sementes e raízes da lógica “metafórica” até esbater num sentimentalismo carinhoso, amoroso. O que lhe não ocorreu foi que, girando-a com uma completa força invisível que a administra desesperada para o inferno da liberdade intangível, inorgânica. a liberdade também exige os seus tentáculos horríveis, mutantes, disformes, tresloucados. Liberdade terrivelmente fascinante quanto bizarra. 
          Contudo, para Albert Camus, o suicídio não é a solução finita para o absurdo, é antes ao contrário, nessa que é a sua negação, a negação da própria existência humana. Não podemos resolver o problema do absurdo, negando toda a sua existência. Precária ou Odiosa ou Prodigiosa. Perante o absurdo, devemos dalguma maneira alegórica, revoltar-nos instigando os outros para que se meditem nas mortes às derivas entre as suas mãos contra as forças vertiginosas da cabeça à cabeça, batendo com o sangue na tal pedra que sobe e desce em rotação alquímica. Por que essa revolta? Talvez seja a consciência da nossa condição, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. Aceitar o absurdo é aceitar a morte. Recusá-lo é aceitar uma vida no precipício a resvalar escarpas abaixo até rebentar com o corpo todo: destruí-lo.
          Nenhuma meditação absurda, alienante nesta matéria é enunciada ao longo do ensaio. Nessa derradeira destruição, camada por camada, não se pode encontrar o conforto, somente “viver num vertiginoso cume – isso é integridade, o resto é subterfúgio.” O “cume vertiginoso” para A. Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo condenado à eterna repetição. Consciente dela, descobre-se que “a lucidez que devia constituir sua tortura ao mesmo tempo coroa sua vitória”. Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”.
          O filósofo Albert Camus considera que autores da filosofia existencialista como Kierkegaard e Sartre fracassaram em tentar resolver o conflito para as consequências do encontro entre um ser humano racional e um mundo irracional, porque ele é insolúvel justamente por pertencer à existência humana. Ter, por exemplo, a consciência de que liberdade e justiça são relativas é na verdade a condição para não desistir delas, e não o contrário. Também ele se desintegra, fracassa. Desaponta. Sem embargo, «o Mito de Sísifo» deverá ser para os leitores um mero apoio de vida. Ele não arrasta ilusões porém incentiva a coragem humana. Ressuscita aceitável a crença na existência sem os paradigmas religiosos. Até nessa reflexão torna-se condescendente, ao não perscrutar o desconhecido, o da ilusão, se quisermos.
           O segredo sagrado que se esconde por sob as camadas do covil referido anteriormente e justifica, autoriza o lugar prioritário deste ensaio filosófico [onde o autor põe-repõe: escuridão e iluminação não revestindo todas essas camadas sobrepostas numa catadupa catártica de contradições – as máscaras dos rostos e os rostos das máscaras] é que do raciocínio absurdo desagua uma criação do tempo e das memórias, criações palpáveis ou não palpáveis que existem, afectam e metamorfoseiam o universo e a constelação da humanidade. Para perceber e descobrir todo esse grandioso segredo como um oráculo que o autor propõe, é que sorrateiramente vai navegando a nossa mente para esses lugares nada comuns, disfarçando-os doutras coisas mais superficiais. É possível. Atravessando toda esta obra num estado de aparente profunda morosidade, o autor não nos aponta esse trilho, pensará o leitor. Erro crasso. Embora em nada se trata de aparência, pelo contrário, é profunda morosidade que o autor nos apela sem nos dizê-lo directa ou indirectamente. Mas Camus falha, “arruína” o ensaio ao não prever que, através dessa profunda morosidade, o homem pensante deverá atravessar os flagelos da indiferença irrompendo todo um novo sistema de pensamentos; acção que nos leva à criação divina para quem crê e à criação não divina para quem não crê e para quem é agnóstico ou busca a criação no desregulamento dos sentidos sem recorrer a paraísos artificiais. Ao rejeitar a transcendência da fé, abandonando a ambivalência do ascetismo, deixando-o igualmente a flutuar no vácuo das águas por onde velejamos, o sistema de pensamento fortalece-se, reforça-se e enrobustece-se Camus alerta-nos unicamente. Nada mais do que isso. Escorrega-se na lama deste pântano existencial. Flanqueado como Apertado. Não ultrapassa essa barreira sonora, saborosa, emotiva, sensitiva, colorida, ouvida ou vista para uma outra dimensão da percepção humana: imprevista.
          Como ele poderia ter previsto estas carências? Devia ter prestado mais atenção à psicanálise da época. Albert Camus não calculou: em Eros e Thanatos – que significam, entre os gregos, o Amor e a Morte personificados – identificam-se dois princípios vitais: Vida e Morte. Freud utilizou-as para identificar duas categorias de pulsões humanas: instinto de vida (eros) e instinto de morte (thanatos). Estas duas pulsões geram entre si um conflito que dinamiza o psiquismo humano. Neste sentido, a estrutura freudiana do psiquismo humano é atravessada por um conflito que dinamiza o aparelho psíquico. Este conflito tem origem nos obstáculos que o indivíduo encontra na realização das pulsões e reflecte a luta entre várias instâncias no psiquismo humano.
          Mas não interessa agora. Já passou. O ensaio já foi escrito no ano de graça de 1941.Torna então o absurdo, enquanto o dogma do suicídio, incompleto. Por isso mesmo, fazer o certo é mais quantitativo, menos qualitativo e prova essa incompreensão do autor ao não contemplar, exercitar a metafísica, alquímicas ou as forças cósmicas que não se localizam a olho nu. Porém, dessa viagem – que é este curioso ensaio filosófico –, o alerta não é mais do que também por si mesmo baseado, sustentado por um conjunto de contradições e repetições que o autor igualmente rejeita. A viagem não é nem certa ou errada. Mais uma vez o autor coloca uma tónica invisível sobre a existência da causa na própria causa. Que causa, perguntais? Respondo: redesenhando o que faltou a Albert Camus focar neste ensaio, ou seja, o que faltou preencher, penetrar, furando no centro, no cerne, no eixo primacial das forças introspectivas onde tudo é uma outra coisa do que o autor disserta, critica e reflecte: a imprevisibilidade das trincheiras. Mediante uma firme tentativa de conquistar o universo ateu, agnóstico ou não, teve o horizonte do holocausto da segunda grande guerra como labaredas de fundo. Diante dessa tentativa também temos de considerar o desterro longínquo que deveras se manifesta e se propaga, e nele, algures, se encontrará um buraco estreito. Lá no fundo surge-nos o conflito entre o Bem [eros] e o Mal [thanatos] enquanto reflexo um do outro. Jamais se separarão. Amam-se tal como um indivíduo suicida determinado a terminar com a vida da morte ou a morte da vida?
          Essa outra tentativa deverá ser espontânea, genuína. Ela leva-nos e traz-nos ao ponto de partida como ao regresso dessa partida, da experiência universal, e vice-versa. Isto é, ao AQUI. Aqui mesmo. O agora é o ponto-caramelo: o da Descoberta. A Descoberta e a Indiferença ocultamente nos agarram pelo corpo inteiro, sempre como tomada de consciência de cada pessoa. Particular. Divergente. Absurda. Única: Suicida. Por que mesmo não cometer o suicídio físico ou psíquico? Por que não abraçar a vida como ele se nos apresenta, aceitando-a, como Camus coloca neste ensaio. Um tanto ou pouco erróneo é não dar escolhas aos seres humanos. Estancá-los como se estanca um rasgo no meio da cabeça rachada. O sangue poderá esvair-se ou não. Quem tomará a decisão última? Nós. Cada um de nós lidera a liberdade ou quem sabe sem ela também!
          A deformação dos sentimentos e dos desenhos e imagens estão ali, ao virar da esquina côncava, num beco sem saída ou num túnel de esgoto. Seja onde for. Temos todo o direito às escolhas e decisões escuras, mansas, mesmo aquelas incompreensíveis à razão. Camus não previu esse direito inigualável. Expugnável. Suspensa dúvida. Ele resignou-se a mostrar a resistência, o que limita o pensamento, ao entender a vida doutros ângulos de visão mais amplos. Pega-se num machado afiado rodopiando os braços para o ar escaldante e quebram-se cabeças contra o chão torto e íngreme. A asfixiar-se de tanto sangue dos membros cortados. Mortos porque assim o quiseram ou mereciam. Porque sim, porque podiam e poderão. Ou se preferirem, enterrar-se-ão os machados do suicídio debaixo da terra compacta. Não mais se vê desgraças [sarcasmo]. E o que se interpreta desta loucura, delírio, devaneio ou razão? Camus desconfiou da razão mas não nos passa os outros testemunhos anotados, fixados.
          Diria, por fim, que as forças gravitacionais desta obra subdividida em diversas partes permanecem esquecidas num recanto qualquer cheio da poeira do tempo e de memórias, onde o amor e o absurdo existem sim se reinventados, redesenhados dia após dia. Para isso é necessário escavar-se até as profundezas da caverna onírica e real, e revolver o processo completando-o, compreendendo o invencível e o absurdo porque somos nós os causadores do nosso próprio medo. Os acasos deformam tudo o que Camus nos apresenta. Somos demasiado estúpidos inseguros, por isso magoamo-nos, magoamos os próximos, fazemos sofrer e sofremos, temos dor mas também a infligimos. Matamo-nos e matamos tudo o que nos rodeia sem nos apercebermos dessa repetição. Somos criminosos, necessitamos disso para nos procurar e procurar a liberdade. Desperdiçamos a vida absurda num suicídio como um secreto beijo a nós dado pelo autor, mas também como sucessores de nós próprios.
          Os detalhes desfiguram o que Camus nos pede e oferece. A consciência tem tanto de pura como de impura, encharcando-se de sujeira e não pode ser mantida como Camus pretende ou diz ser. De outro modo a transcendência existe e tem um sentido de liberdade nada absurda. Absurdo é um ensaio desta magnitude, potência, escrita pelas mãos deste grandioso filósofo francês, cair frouxo, redondo com o rosto na vertical contra o chão cravejado de cavilhas velhas, e morrer esquecendo-se de evocar as forças/fraquezas, ameaças/oportunidades numa clareza sem traição: o Lázaro, a Libido, o Limbo e a Penitência da beleza Cosmológica. Acrescento: O impossível é que nada é impossível. Arthur Rimbaud avisou-nos:
Que vida! A autêntica vida está ausente. Não estamos no mundo.
A moral é a debilidade do cérebro.
A nossa pálida razão esconde-nos o infinito.
A vida é uma farsa que toda a gente se vê obrigada a representar.
Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.
O ar e o mundo deixado sem procura. A vida. - Era então isto?
Quando somos muito fortes – quem recua? muito alegres – quem cai no ridículo? Quando somos muito maus – que farão de nós?
          ***
Digo-vos: esta é uma perplexa obra que nem é estéril, nem fútil.
Adeus Camus, vou-me embora para o constante desconhecido.

um saco, por exemplo
sei de teres um saco que fala sobre o sono ainda misturado
num copo em brasas
curioso por bater
com a minha sombra diante à criatividade desse saco

nele intercepto mensagens alheias das noites cheias de fins
ou acasos
todos nos dizem para cantar sob o carreiro gélido
onde verdes árvores lá fora se revelam na voz de silicone
por trás das portas a despenhar-se sobre cadeiras retiradas
contra os buracos negros
enquanto mesas se entrançam no ar às voltas
como respiro e interrompo
trepando o fumo trôpego dos garfos e talheres confusos
a romperem os sóbrios guardanapos de tecido diamante
derretendo-se na luz que flutua leve
talheres no princípio
garfos no cume empoleirados no pano rústico preso à jarra
que toca a melodia desaparecida
que esmaga as mesas
que torce a voz contra as portas
que toca a própria mão alastrando o saco
e se bebe na loucura nocturna
o soalho de madeira rubi ressente-se entre os rolos de árvores
e baloiços de folhas afrodisíacas
a amolecerem espantadíssimas nas sobrancelhas queimadas

com imagens panorâmicas do saco
como a rodar nos rodapés que explodem dentro dos vernizes
a espalharem-se p’la poeira das vidraças terríveis
os relógios fumam os céus indignados aceitando-se corajosos
e reles vistos à lupa

o sol de aço corta a vista como os seus raios de fogo cortam
as mãos
o fogo cresce
aumenta o sangue largo
enquanto labareda a roçar no coração
e o coração insufla e inflama o corpo que se ergue
e estanca o lume

manuscritos voam em cima dos pratos
os pratos compostos por tintas em escada finalizam-se à vista
sombrios e tristes
desde a força profunda das mesas
até se coserem às secretas portas
que fervem o trilhado coração do saco aos pedaços
de fibras entranhadas
escorrendo à volta dos corpos
desenhos de luvas
peúgas originais retratos folhas plantas
gaiolas por baixo de alcatifas submersas
cigarros dentro uns nos outros onde a água trabalha
e escalda esse pressagioso ofício

um castanho cavalo gira perto do iminente sofá
e o cavalo cavalga dentro das paredes
a estoirar a ventania obscura
e engole
uma almofada de acre vinho
e no próprio relinchar como desabrocha!

tapeçarias de névoas esvoaçam entre fragilidade e angústias
vi o saco a inundar-se no arame farpado
com que o ergo
até sufocar o amanhecer fusiforme
a saltitar nos nós de sangue
uma breve leveza de ofício
e rasgam-se fissuras na carne como outra carne funda
e ensanguentada
em estado de choque
assim irei aprender também trigonometria astrofísica
dos cometas às galáxias inundadas de gravidade
enquanto o saco é elevado
nós somos elevados
e arrastamos as imagens de uma ponta à outra
devoramo-nos
na engrenagem atómica
em frente aos vertiginosos olhos anda o saco a pensar nas coisas
o saco desmancha a doçura do pescoço
sangra-o nas mãos vagarosamente
à raiva tão veloz
canta nas fracturas da terra na cabeça movida por circunferências
saco chato dorme a alumiar a escuridão
uma chatice mortal!...
mexe-se aquele saco com pensamentos inquietantes
sei-o inquietante
é mestre e eu o aprendiz
com a cabeça no fundo dos meus joelhos a estilhaçar
devassa os astros
explodindo-os de encontro às estrelas
e todas as altas estrelas bailam na ponta dos dedos pretos prata
a deslizar na coxa dissolvida

contra espirais cadentes os astros são a sonoridade
cantam flores e jarras
e as estrelas o ritmo maldito feito de cera luminosa
em que as trevas vagabundam
nos espelhos rápidos
dentro da penumbra pendidas nos aromas megalíticos
que vão de sabor para sabor
pela aragem abaixo
a levitar na sua matéria enlouquecida
e morde a luz
porque os perfumes celestes
se despedem e diluem o espaço e o tempo
como num avanço e recuo doce
estremecendo as distâncias em tempo irreal
deixo-me cair anterior a esse saco entrançado nas veias adentro
e racho as mãos à velocidade de um galho precioso
na dúvida
alastram-se as abas que dançam
enquanto o saco sufoca numa janela contorcida
deambulo
na opacidade dos espelhos e vidros
que nunca mas nunca falam dele ou de mim
       o saco, por exemplo...
 
23 de fevereiro 2016.