17 de dezembro de 2010

Rebeldia dramática

          Onde há dor e prazer, impetuosidade da liberdade, e defesa apaixonada do direito e da verdade, ou do amor e da ambição, há pathos, problema, condições de drama. O arrebatamento patético diferencia-se do êxtase lírico, ainda que muitas vezes um se transforme no outro. Antígona vive de seu objetivo. Não se limita à realidade atual e suas leis, ela antecipa a realidade que virá a ser. Tudo parece inverossímil e ao mesmo tempo está dentro da capacidade de percepção humana. Antígona dirige-se a si mesmo e impetuosamente blasfema (e atua) contra a lei. Em sua atuação, misto de agir e dizer, procura persuadir a si mesma e aos outros da estranha condição de sua existência no mundo.   
Cf. “Conceitos fundamentais da poética” de Staiger
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Impetuosidade nascida da vontade de potência
Antigona - aspirante a atriz em 1953 - Univ. Católica da América em Washington.
ISMENE – Vais enterrá-lo contra a interdição geral?
ANTÍGONA – Ainda que não queiras ele é teu irmão / e meu; e quanto a mim, jamais o trairei.
ISMEME – Atreves-te a enfrentar as ordens de Creonte?
ANTÍGONA – Ele não pode impor que eu abandone os meus.
ISMENE – Pobre de mim! Pensa primeiro em nosso pai, / em seu destino, abominado e desonrado, / cegando os próprios olhos com as frementes mãos / ao descobrir os seus pecados monstruosos; / também, valendo-se de um laço retorcido, / matou-se a mãe e esposa dele – era uma só – / e, num terceiro golpe, nossos dois irmãos / num mesmo dia entremataram-se (coitados!), / fraternas mãos em ato de extinção recíproca. / Agora que restamos eu e tu, sozinhas, / pensa na morte inda pior que nos aguarda / se contra a lei desacatarmos a vontade do rei e a sua força. E não nos esqueçamos / de que somos mulheres e, por conseguinte, / não podemos enfrentar, só nós, os homens. / Enfim, somos mandadas por mais poderosos / e só nos resta obedecer a essas ordens / e até a outras inda mais desoladoras. / peço indulgência aos nossos mortos enterrados / mas obedeço, constrangida, aos governantes; / ter pretensões ao impossível é loucura.
ANTÍGONA – Não mais te exortarei e, mesmo que depois / quisesses me ajudar, não me satisfarias. / Procede como te aprouver; de qualquer modo / hei de enterra-lo e será belo para mim / morrer cumprindo esse dever: repousarei / ao lado dele, amada pro quem tanto amei / e santo é o meu delito, pois terei de amar / aos mortos muito, muito tempo mais que aos vivos. / Eu jazarei eternamente sob a terra / e tu, se queres, foge à lei mais cara aos deuses.
ISMENE – Não fujo a ela; sou assim por natureza; / não quero opor-me a todos os concidadãos.
ANTÍGONA – Alega esses pretextos, mas não deixarei / sem sepultura o meu irmão mais querido.
ISMENE – Ah! Infeliz! Quanto preocupação me causas!
ANTÍGONA – Não deves recear por mim; cuida de ti!
“Antígona”, Sófocles, trad. Mário da Gama Kury.

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    Apenas uma certeza, a situação atual não pode se manter
"Um copo de cólera" (1988). Dir. de Aluízio Abranches, com Alexandre Borges e Julia Lemmertz
E quando cheguei à tarde na minha casa lá no 27, ela já me aguardava andando pelo gramado, veio me abrir o portão pra que eu entrasse com o carro, e logo que saí da garagem subimos juntos a escada pro terraço, e assim que entramos nele abri as cortinas do centro e nos sentamos nas cadeiras de vime, ficando com nossos olhos voltados pro alto do lado oposto, lá onde o sol ia se pondo, e estávamos os dois em silêncio quando ela me perguntou “que que você tem?”, mas eu, muito disperso, continuei distante e quieto, o pensamento solto na vermelhidão lá do poente, e só foi mesmo pela insistência da pergunta que respondi “você já jantou?” e como ela dissesse “mais tarde” eu então me levantei e fui sem pressa pra cozinha (ela veio atrás), tirei um tomate da geladeira, fui até a pia e passei uma água nele, depois fui pegar o saleiro do armário me sentando em seguida ali na mesa (ela do outro lado acompanhava cada movimento que eu fazia, embora eu displicente fingisse que não percebia), e foi sempre na mira dos olhos dela que comecei a comer o tomate, salgando pouco a pouco o que ia me restando na mão, fazendo um empenho simulado na mordida pra mostrar meus dentes fortes como os dentes de um cavalo, sabendo que seus olhos não desgrudavam da minha boca, e sabendo acima de tudo que mais eu lhe apetecia quanto mais indiferente eu lhe parecesse, eu só sei que quando acabei de comer o tomate eu a deixei ali na cozinha e fui pegar o rádio que estava na estante lá da sala, e sem voltar pra cozinha a gente se encontrou de novo no corredor, e sem dizer uma palavra entramos quase juntos na penumbra do quarto. 
“Um copo de cólera”, Raduar Nassar
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A cena como um clarão
Kazuo Ohno em foto de Eikoh Hosoe
        A ação do pathos pressupõe resistência – choque brusco ou simples apatia – que tenta romper com ímpeto. O ritmo complicado no pathos não nos contagia (como na disposição anímica), e sim purifica a atmosfera com pancadas rudes como as de uma tempestade. A comoção patológica não necessita da consciência, nem saber de sua origem ou finalidade. Investe-se contra o status quo, mesmo sem querer, pois sente-se a tensão presente-futuro.
       No texto dramático, palavras e gestos co-atuam; o leitor percebe arte e realidade co-atuantes. O personagem dramático ou herói patético consome-se em sua individualidade, arrebata-se pelo pathos, e o artista dramático deixa que as razões históricas sobreponham-se às estéticas.
Staiger

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