19 de dezembro de 2010

Livro pra escrever (a colagem leitura-escrita)

Bia Albernaz
    A idéia de desenvolver um texto sobre a relação entre a escrita e a leitura surgiu primeiramente pelo desejo de consolidação do meu trabalho como professora de diferentes cursos de redação criativa, mas também especificamente a partir de um outro artigo que redigi sobre bibliotecas escolares. Nele, encontram-se listados sete desafios para os profissionais da área, dentre os quais a necessidade de preparar a biblioteca não só como um lugar de leitura mas também de escrita. Isso porque um leitor faz anotações, escreve enquanto lê. De fato, testemunha-se tal necessidade, mesmo que satisfeita de forma indevida, pela enorme quantidade de livros sublinhados que somos obrigados a consultar. É óbvio portanto que o impulso existe.
No New Yorker há um artigo de Ian Frazer sobre a marginalia em livros que pertenceram a escritores famosos.
Como os métodos de criação e ordenação de notas dá forma a um manuscrito "final", venha ele a ser publicado ou não? Perguntas como esta serviram de base para um curso oferecido pelo Max Planck Institute for the History of Science.
      O leitor-escritor, principalmente o pesquisador ou o estudante, transcreve frases, destaca palavras e rascunha pensamentos, dúvidas e associações com outros autores, absorvendo, pelo processo da escrita, as diversas leituras subjacentes a um texto, direcionando-as desse modo para um texto único. Um texto, tal como diz Michel Schneider, é feito desse modo: por fragmentos, combinações, acidentes, reminiscências, empréstimos[1]. Muitas vezes, escritores escrevem a partir de um vazio, de interrogações e insatisfações deixados por um livro ou uma série deles, o que se coaduna com a imagem da leitura como navegação. Os livros, como guardiões de saberes móveis, melhor sorte não poderiam ter do que poder espalhar tais saberes em novos textos.
    Escrita e leitura não são processos separados. Se assim fossem, estariam condenados a uma existência congelada, coisificada e não alcançariam o ápice de suas vidas – a recriação do leitor e do mundo. De fato, essa vida paralela que gravita ao redor dos textos consiste naquilo que nos acostumamos chamar de “interpretação”, atividade “entre” a leitura e a escrita. Quando lemos-escrevemos, pensamos e saímos do automático, em atenção ao não-dito, ao invisível, ao ainda não pensado. No entanto, Richard Mitchell, autor de “The underground grammarian”, observa o modo como fugimos ou de como somos impedidos de exercer a responsabilidade da verdade no ato da escrita; da coragem de assumir posições ou incertezas por escrito, dirigidas a leitores concretos. Ao invés disso, aprendemos a cultivar uma torrente de eufemismos e generalizações suavizadas que, aos poucos, passamos a identificar com a própria escrita [2].
    Uma vez, ouvi de um advogado: “por escrito? Nem carta para a namorada!” Ora, a escrita compromete porque traduz pensamentos, constituindo-se como símbolo ou celebração dessa atividade essencial para sermos humanos. Mas, a fim de fugir de compromissos, ao longo de nossa formação, aprendemos a obstruir as passagens entre vida interior e exterior, o que transforma a escrita em um tormento, em uma arte de preencher linhas, sem nada dizer nas entrelinhas. Escreve-se para agradar professores ou editores preocupados em atender um mercado no qual leitores padronizados esperam textos tipificados. Felizmente essa regra não consegue deter a produção solitária de escritores criativos que insistem em se comprometer, em provocar nos leitores a felicidade de entrever o novo, de apreender algo nunca antes pensado.
    O solitário traz o singular. A solidão é necessária ao ato da escrita. Tal afirmação choca-se com o esforço socializador empreendido pela escola, pela família, enfim, pelas instituições formadoras. Choque produtivo, contudo, à medida que essas mesmas instituições se dão conta da dificuldade de crianças, jovens ou adultos aprenderem sem desenvolverem a capacidade de estar só. Pela indissolúvel relação entre leitura e escrita, compreendemos: a solidão pode encontrar outra solidão, a diferença possibilita a identidade.
Referências:
[1] Apud JACOB, Christian. “Ler para escrever: navegações alexandrinas”. In: O poder das bibliotecas – a memória dos livros no Ocidente. Trad. Marcela Mortala. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000, p. 67.
[2] Richard Mitchell pôs na rede todos os seus livros. Cf no site http://www.sourcetext.com/grammarian/ (disponível em 17/10/09). 

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