4 de setembro de 2011

Odisseia (Cantos V a VIII) - quatro tipos de retórica

Bia Albernaz
Este conjunto de Cantos da Odisseia de Homero tem início com uma Assembleia de deuses e o envio de Hermes à ilha da ninfa Calipso, com uma mensagem enviada por Zeus – que Odisseu seja libertado. Odisseu, o eloquente, aquele que é pelo logos, para o logos e com o logos; ele, que faz o logos aparecer, finalmente vai poder praticar sua arte com outros seres humanos.
Na ilha de Calipso, ele encontrava-se inerte, apático, emudecido; a mensagem trazida por Hermes governa o reinício da viagem por Odisseu. De fato, nestes Cantos presencia-se a retomada do poder retórico de Odisseu, refletido não especificamente em sua fala mas também na variedade de tipos de retórica encontradas neste trecho, das quais apontamos quatro. São eles: a descrição de um modo de fazer; o professar de uma súplica; a intervenção de uma crônica; e a ocorrência de um interlúdio. Historicamente, cada uma dessas formas passou a gerar um tipo de discurso organizado, oral ou escrito, literário ou técnico.

1. A descrição do modo de fazer aparece no Canto V, e mostra o modo como Ulisses faz a sua jangada.

Odisseu pôs-se a cortar os troncos; seu trabalho avançava rápido; derrubou vinte árvores ao todo e desbastou-as com o bronze; aplainou-as com mestria, igualando-as com um cordel. Entretanto, Calipso, augusta deusa, trouxe-lhe trades. Odisseu abriu nela os furos, ajustou umas com as outras e, com cavilhas e encaixes, armou a jangada; deu-lhe Odisseu a mesma largura que dá um carpinteiro competente ao bojo dum espaçoso cargueiro. Assentou nela um estrado, firmando-o com caibros unidos e terminou-a com longas amuradas. Fincou-lhe um mastro, onde fixou uma antena; além disso, naturalmente, construiu um leme para governa-la; guarneceu-a de extremo a extremo com esterias de vime para abrigo das ondas e forrou-a com abundante ramagem. Entretanto, Calipso, augusta deusa, trouxe-lhe panos para que fizesse velas e essas também ele fabricou com habilidade. Atou na jangada escotas, cabos e bolinas e à força de alavancas a lançou no mar divino. (Canto V, p.65)

Na leitura dessas linhas, reconhece-se o parentesco com as instruções que compõem os manuais e transmitem o passo a passo na execução de um saber prático. A formalização desse tipo de descrição desenvolveu-se sobretudo no discurso retórico mais estritamente técnico, presente não só nos Manuais de Instrução que acompanham máquinas e jogos, mas também nas bulas de remédio, nos livros de receita, enfim, nos diversos textos que explicam procedimentos de todo tipo (cirúrgicos, laboratoriais etc.).

2. O segundo tipo de retórica - o professar de uma súplica - difunde-se principalmente no campo religioso, na formulação de orações, e vem a ser uma dentre outras formas que compõem os salmos bíblicos. No Livro dos Salmos, os exegetas definiram uma tipologia das orações dirigidas a Deus, e dentre elas estão os hinos ou salmos de louvor, os penitenciais, assim como os salmos de súplica,  confiança ou ação de graças. Ou seja: aprender a rezar implica o domínio de uma organização verbal específica.

Na Odisseia, no Canto VI, Ulisses – ao encontrar com Nausícaa – profere uma bem formulada súplica e a princesa o acolhe, lhe dando roupas e instruções de como ele deve se comportar para obter obter o apoio dos feácios. A mais importante de suas orientações diz respeito à importância de sua mãe neste processo. Por isso, diante de Aretha, matricarca do reino dos feácios, no Canto VII, Odisseu tem de fazer da súplica uma arte; ele sabe que o desejo da rainha será determinante para a sua sorte. Precisa comove-la. A eloquência de Ulisses é sua arma em tempos de paz:

Areta, filha do divinal Rexenor, após incontáveis fadigas venho como suplicante a teu esposo, aos teus joelhos e igualmente a estes convivas, a quem concedem os deuses venturas nesta vida e possa cada um transmitir aos filhos a opulência em seus palácios e as prendas de honra que o povo lhes deu. A mim, porém, fornecei uma escolta para chegar quanto antes a minha pátria, porque há muito venho penando longe dos meus. (Canto VII, p.82)

3. O terceiro tipo é a intervenção da crônica, no Canto VIII. O trecho apresenta costumes da época e do lugar.

Atenção, caudilhos e conselheiros dos feácios! Temos já o coração satisfeito com as porções iguais do festim e com a lira,  companheira dos jantares opíparos. Agora, saiamos e vamos a uma exibição de todos os jogos atléticos, para que, ao regressar à pátria, o forasteiro conte à sua gente quanto superamos os outros povos no pugilato, na luta, no salto e na corrida. (Canto VIII, p.89)

Os jogos atléticos passam então ser descritos e pelo que se segue toma-se conhecimento de que os jogos se dão na praça, acompanhados por milhares (!) de pessoas. Os atletas são nobres e a enumeração de seus nomes toma várias linhas. Atualmente, a crônica se firmou como um gênero literário independente mas é interessante notar como ela pode figurar no interior de uma história, contextualizando-a. Neste Canto da Odisséia, os jogos atléticos constituem o cenário no qual se confrontam Odissseu e Euríalo, um dos jovens participantes da competição, de modo que o heroi – desafiado e à revelia – vê-se na contigência de demonstrar seu talento como discóbolo.
4. O quarto tipo é o interlúdio, exemplificado na passagem que prepara o final desta etapa da narrativa da Odisséia. O interlúdio caracteriza-se por ser um entreatos, isto é, uma parada no curso dos atos que encenam a história principal, através da apresentação de história secundária, aparentemente independente da narrativa-mestra. No teatro, ocorre sob a forma de uma peça leve,  de curta duração, cuja função é entreter a plateia durante o intervalo de dois atos de uma peça mais longa e complexa. No romance, aproxima-se do que hoje comumente é chamado, sob um tom de crítica, de “barriga”, constituída por cenas adicionais e dispensáveis porque distraem o leitor da trama principal, sem nada a acrescentar de modo a torná-la mais compreensível. No canto VIII da Odisséia (p.93-95), um interlúdio acontece para aliviar a tensão que se instala entre Ulisses e os feácios após o episódio da afronta de Euríalo em relação ao herói e da reação desse último. Percebendo o clima tenso, o rei dos feácios, Alcínoo, manda chamar o aedo, que passa a entoar o reconto dos amores de Ares e Afrodite, em casa de Hefesto – o seu esposo. O interlúdio desempenha a função de deleite e emenda-se à narrativa, retomada paulatinamente, ainda com a apresentação de uma dança, com a oferta de presentes e agrados a Odisseu, isto é, com o apaziguamento que desarma os espíritos, e abre o coração do heroi. Esse, emocionado, novamente ouvirá o aedo, dessa vez a discorrer sobre feitos seus na Guerra de Tróia. Atento às revelações prenunciadas pelas lágrimas de Odisseu, Alcínoo pede que ele finalmente relate quem é, o que dá ensejo aos próximos Cantos (IX a XII) em que, num retrospecto, Odisseu narra parte de suas desventuras.
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Esta pequena descrição de quatro tipos de retórica presentes entre os Cantos V e VIII da Odisseia busca mostrar a diversidade de paradigmas literários contidos nessa obra, ao lado das possibilidades de aprofundamento das questões interpretativas que a permeiam. Não por acaso Hermes, sob as ordens de Zeus, irá iniciar esta série cantos ao quebrar o encanto entorpecedor de Calipso. Sendo ele o deus da intermediação, presta-se à diversidade de emoções que a riqueza retórica irá permitir. Quando Calipso dirige-se a Odisseu libertando-o de seu jugo e ensinando-lhe o modo de sair da ilha, o heroi desconfia que a deusa possa estar escondendo um truque sob tal revelação. Sua desconfiança parece basear-se na própria experiência. Não é ele o homem dos ardis? 
NOTA: A tradução aqui utilizada é a realizada por Jaime Bruna
e editada pela Cultrix-SP, em 1989.

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