3 de março de 2011

Comentar o texto alheio: exercício para chegar a um caminho próprio

          Em uma frase do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de Andrade anuncia: "uma única luta - a luta pelo caminho".
          “Consciência muscular” é uma imagem usada por Bachelard em sua discussão acerca do caminho, no livro A poética do espaço, para designar a consciência exercitada enquanto a gente caminha, e a implicação do corpo na leitura e na escrita. O modo de ser "caminhoso", indicado por Manuel de Barros no poema Sabiá com trevas, parece conversar com a imagem de Bachelard. Assumindo o caminhoso, o poeta apresenta a experiência da alquimia do negativo, que converte treva em sabiá. Partindo do pântano, no último domicílio conhecido,  pode-se chegar à preocupação com as coisas inúteis, a uma língua que é depósito de sombras, com versos cobertos de "hera e sarjetas" que abrem as asas sobre nós.
         
          Tais lembranças surgem, neste momento, por conta de um questionamento sobre a necessidade de releitura de um texto, com o objetivo de comentá-lo. Ler é fruir, sem dúvida mas se buscamos "ler como escritores" (para citar o livro de Francine Prose que traz este título), o fazemos no sentido de estudar as saídas e os impasses, os achados e os pontos que precisariam ser melhor desenvolvidos pelo autor do texto em questão. Focamos na transpiração, buscamos o seu tônus, num esforço de concretização do que comumente chamamos de tom. Este detalhamento só pode acontecer numa releitura. Nesta perspectiva, ao (re)ler o texto alheio a fim de comentá-lo, não se faz crítica mas indicação de caminho que ressalte os achados. Walter Benjamin, em O narrador, diz que narradores sabem dar conselhos, ressaltando, porém, que isto não significa o mesmo que saber dar respostas, mas sim fazer  uma sugestão sobre a continuação de uma história.

          Parafraseando Manoel de Barros, um comentador é apenas um caminhoso, um interessado em ouvir sabiás nas trevas. E, com isso, apura seu ouvido porque ele também está em vias de partir, doido pra se preocupar com coisas inúteis.
Ilustração de Doré para D. Quixote

Nenhum comentário:

Postar um comentário