21 de dezembro de 2011

Atropelamentos

          Na semana passada, fui chamada para falar sobre a obra infantil de Clarice Lispector na Biblioteca Municipal de Botafogo. Uma das pessoas que convidei para me dar uma força na platéia foi uma aluna, agora uma amiga. Mas infelizmente ela não pôde comparecer. No dia seguinte, justificando-se, me enviou a seguinte mensagem: “não consegui ir. Fui atropelada na ciclovia por um menininho de skate. Caí da minha bicicleta e fiquei toda machucada. Uma pena... Espero que tenha sido ótimo.”
          Na mesma hora, respondi a ela. Precisava responder a ela:
          Puxa, que susto! Espero que tudo esteja bem agora. Lá na biblioteca deu tudo certo. Mas também fui "atropelada" por uma menininha na praça, enquanto esperava para falar. Cheguei cedo. Dava tempo de descansar sentada num banco do lado de fora, tranquilamente tomando um suco de laranja. Foi então que se aproximou uma menininha pretinha de cabelos cortados rentes como os de um menino, blusa cor de rosa com estampa prateada e calças azul celeste. Ela era um vulto sujinho, sorridente e aberto. Chegou, sentou ao meu lado e de imediato pediu o meu suco de laranja, praticamente o meu último gole. Olhei pra ela, já sentada do meu lado: "você quer meu último gole de suco de laranja?" "Quero. Eu tô com sede." Então começamos a conversar aquela conversa que nós, "seres civilizados", conversamos quando encontramos um serzinho encardido e belo como o de Andreia. 
          Perguntei-lhe onde ela morava. Ela disse que na rua. Olhei-a bem, sem acreditar totalmente e perguntei: “aqui?” “Não, em Copacabana. Estou com meu pai.” E apontou um homem dormindo num banco mais adiante. Quis saber seu nome e, como ela percebeu o meu bloquinho e os meus rabiscos,  disse que iria escrevê-lo para mim. Tirei meu estojo da bolsa. Dei-lhe um lápis e, junto, um pequeno chocolate. Abri o bloco numa página em branco. Eu queria dar  à menina o máximo que podia no pouco tempo que teríamos juntas. Com extremo cuidado, Andreia pegou no lápis. Antes de começar a escrever, afastou um pouco o bloquinho, analisando o espaço da folha em branco e o lugar onde depositaria o seu nome. Escolheu um canto muito à direita. Tentei lhe mostrar que deveria começar a escrever pela outra margem. Não adiantou. Ela voltou ao canto que havia escolhido e ali escreveu seu nome como Leonardo da Vinci o faria: espelhado. Depois me disse o seu nome todo, que eu não me lembro porque era muito grande. Sei que o segundo nome era "Joy". Andreia Joy. Depois, arranquei três folhinhas para ela desenhar. Em seguida, atendi outro pedido seu. Entreguei-lhe uma borracha,  escolhendo a melhor das duas que tinha.
          Esqueci de dizer. Também dei o suco a ela, que o bebericou, deixando-o logo de lado. Empolgada com outras coisas que saíam da minha bolsa, esbarrou no copo e o derramou. 
          Em nossa conversa, também falamos sobre o imprescindível assunto: escola. Ela não ia. Disse que estava esperando uma cirurgia no umbigo. Então levantou a blusinha e me mostrou a protuberância em sua barriga no lugar onde temos o umbigo. E me contou que a professora não queria que ela fosse à escola porque o seu umbigo podia estourar. Contestei: "mas você me disse que nasceu com ele desse jeito, não foi? Não vai estourar de um dia pro outro."
          Andreia olhou pra mim: "ela (a professora) disse que o que eu tenho aí dentro pode pegar nos outros. Pode ser uma doença que 'pega'."
          O que a gente faz com nossa indignação nesse caso? Fiquei ali detestando a tal professora. Mas logo em seguida, vieram me chamar. Estava na hora da palestra. Perguntei a Andreia se queria entrar na Biblioteca. Disse que lá havia um bocado de livros. Mas já era noite. Ela não podia entrar. 
          Enquanto isso, o pai de Andreia dormia. Eu havia dito a ela para lhe pedir permissão para me acompanhar. Não sei se perguntou porque foi até o pai e voltou muito rápido, com um sorrisão, dizendo que ele tinha deixado. Na verdade, não sabia bem o que fazer. Estava preparada para contar uma história infantil da Clarice Lispector para um público de adultos. Antes de iniciar a palestra, compartilhei com algumas pessoas da platéia a minha sensação de inutilidade. Uma delas se ofereceu para tomar conta de Andreia enquanto eu falava, mas mesmo assim acharam melhor ela ficar lá na praça junto ao pai que dormia. Foi muito estranho e inesquecível ver Andreia, do outro lado da porta de vidro do auditório, me encarando com o seu corpo todo, como se ela fosse uma lagartixa pregada fora da janela. Eu falava um monte de coisas e me consolava, dizendo a mim mesma que  talvez assistir uma palestra fosse uma coisa muito chata para a menina. Não sei. 
          Havíamos brincado com nossos dedos. Não me lembro se chegamos a nos dar as mãos. Mesmo sabendo que ela não podia entrar, levei-a para uma área descoberta, do lado de dentro dos muros da biblioteca. Ela quis dar a volta em torno do prédio mas não havia passagem e já não dava mais tempo. 
          Na verdade, a conversa com a platéia estava muito simpática e seguia divertida. Enquanto eu falava, a noite caía. Quando saí não encontrei mais Andreia. Eu tinha dito a ela que, no final, lhe daria um livro. Lembro-me agora de seu rosto, com as palminhas das mãos abertas acima dos olhos, buscando-me, cada vez mais distante. Ela estava se despedindo. Andreia Joy, que a vida não lhe machuque, que o mundo não lhe machuque. Obrigada, Andreia. Desculpe-me, Andreia.
          E a você também, querida amiga. Obrigada, por ler este meu relato até o fim. Este registro estava precisando ser feito. Beijo, e se cuide com a bicicleta, hein? Não se distraia, muito. Aproveito para desejar um feliz natal, com muitos sorrisos inocentes de Andreia Joy pela frente – um verdadeiro atropelamento de borboleta. Reze por Andreia Joy, mesmo que você não costume fazer isso. Ela é um bom motivo pra gente se lembrar de querer um mundo melhor.
          Com o carinho, da Bia

Momento vivido

Ruth Lifschits
          Hoje de manhã, atrasada e pensando no que teria de enfrentar nas próximas horas, uma voz suave me trouxe de volta para onde eu realmente estava e devia estar: em casa e com o neto em apuros.
          — Vó, meu dever de casa está confuso.   
          Pedi a ele que lesse o enunciado da questão. Ele leu em voz alta:  “acrescente uma letra às palavras abaixo e crie novas palavras”. 
          Ele tinha criado bamba ao inserir um ‘m’ entre as duas sílabas de baba e queria saber se essa palavra existia. 
          — Existe sim. 
          — Mas o que é bamba?, ele perguntou. 
          — Já vamos descobrir, disse, enquanto alcançava meu ‘Aurélio’ na estante. 
          Mostrei a ele o dicionário, dizendo:
          — Aqui estão quase todas as palavras da nossa língua. 
          Ele arregalou os olhos: 
          — Que livro grandão! 
          Pediu para segurá-lo, queria ver se era pesado. 
          Juntos, folheamos o dicionário. Mostrei a ele a ordem alfabética na listagem dos verbetes e sugeri que procurássemos a palavra bamba. Deixei que ele virasse as páginas, procurando o grupo das palavras  começadas com b. Ele foi para o começo do livro, passando as páginas com delicadeza e parando os olhos aqui e ali para se orientar. Me mostrou que ban vinha depois de bam, e finalmente achou a palavra. Mostrei a ele que havia explicações sobre o sentido e o uso de bamba — as definições. Lemos todo o verbete e pensamos em exemplos diferentes dos que tínhamos acabado de encontrar. 
          Ele fechou o livro e voltou para a mesa de estudos, já sabendo a frase que escreveria com a palavra que acabara de aprender.                  
          Acariciei  o bom amigo Aurélio e o devolvi à prateleira.
Capa da primeira edição, do designer e ilustrador ítalo-brasileiro Gian Calvi.
Para acessar o Dicionário do Aurélio online clique AQUI.

19 de dezembro de 2011

Em bons lençóis

A cama da vovó
Renata Figueiredo
          Dormir na casa da minha avó sempre foi muito prazeroso. Adorava quando meus pais saíam ou viajavam e me diziam que tinha que dormir ou passar o fim de semana na casa dela. Estar em sua companhia era sempre um novo ensinamento. Aprender a fazer uma cama foi uma das muitas coisas que aprendi com ela. A hora de dormir é um momento nobre, dizia. A hora em que vamos descansar de nosso dia. E a cama é o lugar onde vamos sonhar. Tínhamos então que prepara-la como uma cama de princesa, de rainha, para podermos enfrentar bem o dia seguinte. Primeiro lençóis limpos, cheirosos e bonitos. Segundo, esticá-los bem sobre o colchão. Para finalizar, com uma raquete de ping-pong, fazê-los entrar bem nas beiradas da cama, evitando assim que eles saiam com nossos movimentos quando dormimos. Ela sabia o quanto eu era agitada e me mexia durante a noite. Adorava ver todo esse ritual, e dormia realmente como uma princesa toda vez que dormia com a vovó. Ainda mais quando ao deitar ela vinha com todo amor e carinho me cobrir e me dar um beijo de boa noite, dizendo: temos que dormir cobertas. Dormir sem se cobrir não é a mesma coisa, não descansa. Como não ter uma boa noite assim?!
***
Hábito Antigo 
Arlette Santos
          Não sei por que, cedo adquiri o hábito de arrumar minha cama logo que me levanto. Quando criança, morei em Petrópolis, na região serrana do estado. Por ser uma cidade fria e úmida, deixavam-se as cobertas expostas ao sol para arejar, e só mais tarde faziam-se as arrumações.
          A meu ver, existem dois momentos na preparação de uma cama ao longo do dia: ao acordar – dispondo-a para o longo período em que não será utilizada, e antes de deitar – quando o ninho é feito para o período de repouso.
          Ao me levantar, ajeito o lençol de forrar e coloco o de cobrir à noite com a parte superior dobrada, pronta para dormir. A seguir, cubro com uma colcha ou acolchoado que dê ao quarto uma boa aparência. Por fim, coloco um travesseiro da largura da cama, com fronha que combine com a colcha.
          À noite, tudo fica mais simples: basta retirar a colcha e o travesseiro, substituindo-o pelo que uso para dormir – mais macio e feito de penas de ganso. Caso haja necessidade, acrescento uma colcha ou edredon. E antes de me deitar, já arrumo a colcha e o travesseiro que não serão usados à noite de forma a facilitar o trabalho da manhã. 
          Preocupo-me sobretudo com o conforto e a praticidade. Uma amiga fisioterapeuta me indicou o colchão de futton, que não enruga o lençol e facilita a arrumação. E – principalmente quando se vive só – uma colcha atenua a falta de outras coisas...