26 de setembro de 2018

Sinais de partida


Luiz Roberto Gouvêa
 
       Naquela manhã acordei com a percepção de que algo falhava em meu pensamento: sentia uma lacuna, um esvaziamento na cabeça. Como se um empuxo se opusesse à força da gravidade, me reduzisse o peso e entorpecesse os sentidos. No início não me dei conta das perdas. Mas no decorrer do dia notei que me escaparam da memória os adjetivos, impedindo-me de qualificar, medir, comparar, criticar ou enaltecer as sensações, ideias, pessoas e coisas.
          Percebi que um apagão fulminou os domínios da escrita e da fala. Conseguiu me desadjetivar sem, em contrapartida, agregar substantivos ou verbos no meu repertório de palavras. Restaram-me substantivos sem substância. Um despojamento que me doía.
       O diabo é que na época eu trabalhava numa empresa de publicidade e para complementar o salário escrevia discursos para o deputado X. Sem a exuberância dos adjetivos, perdi musculatura e eficiência nas peças que rascunhava. O discurso debilitou-se, exauriu-se com a escassez de meu vocabulário.
     Minha mulher estranhou a secura de minhas palavras, interpretou como desinteresse, ou mesmo desprezo. E o esforço para compensar a deficiência causava mais estragos.
         Consultei médicos e terapeutas. Ninguém pôde me ajudar. Houve quem sugerisse consultar um gramático; um professor de português; experimentar um método para expandir o vocabulário. Tudo em vão.
         Pedi uma licença no trabalho. Inventei que precisava de tempo para recuperar da afasia, voltar a enfeitar as ideias, ornar as coisas, colorir as imagens. A benevolência do meu chefe felizmente superou a sua perplexidade – acabou concordando.
         Peguei uma passagem para visitar minha filha em Montreal e ao conversar com o funcionário da migração percebi que os adjetivos fluíam em francês sem dificuldade. Aí abusei dos superlativos, exaltei a beleza do dia e as qualidades de Quebec, numa tentativa de extravasar os adjetivos que se represavam num esconderijo da mente.
         Com a filha tentei diálogos em inglês e espanhol, e arranhar algumas conversas em ídiche que recordava. Os adjetivos brotavam, abundavam a fala.
         Que síndrome seria essa que não atravessava os idiomas e somente atingia aquele com o qual cresci?
         Ao retornar ao Brasil, recorri ao recurso de rechear a conversa com expressões em inglês e francês: What wonderful day! You are so pretty! Mon cher amour! Travail parfait! Ce trafic est irritant!
        Minhas falas passaram a irritar ainda mais as pessoas, e eu passei a conversar cada vez menos. As pessoas fugiam de mim. Fiquei sem adjetivos e amigos.

Hoje pela manhã senti a deficiência agravar-se.  Durante o sonho esvaiu-se o reservatório de conjunções. Todas foram para o esgoto. A desconexão das orações agravou-me ainda mais a capacidade de comunicação. Não há mais coordenação entre as ideias. Não consigo mais externar o pensamento. Não adianta consultar especialistas. A inépcia deles me expôs a essa penúria. Penso em partir, emigrar. Deixarei aqui idioma, família, amigos, trabalho. Na bagagem meu inglês, meu francês, minhas esperanças. Adieu!
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Literatura = contenção
Isaak Bábel en 1933. Foto: Georgii Petrusov
"Se eu escrever minha autobiografia, eu a chamarei de A História de um Adjetivo", disse Isaak Bábel em uma entrevista, em 1937, publicada em 1964, vinte e quatro anos após seu assassinato pelo regime de Stalin. Quando jovem, Bábel pensou que tudo suntuoso deveria ser transmitido por meios suntuosos. Até que se corrigiu. Empenhado em dizer tudo em um número reduzido de páginas forçou-se a restringir o uso das palavras, dando relevo àquelas que fossem "em primeiro lugar, significativas; em segundo, simples;e em terceiro, belas". https://enlenguapropia.wordpress.com/2014/04/01/el-escritor-que-fumaba-para-buscar-adjetivos/ 

"... a grande lição de Borges não era uma aula temática, nem de conteúdo, nem de técnica, era uma aula de escrita: a atitude de um homem que, diante de cada frase, pensava com cuidado, não em qual adjetivo colocar, mas em qual adjetivo retirar, caindo depois em um certo excesso que era colocar um único adjetivo de maneira a deixar a gente de queixo caído, o que às vezes pode ser um defeito." ("Cita 4", Revista La Maga, edição especial Homenaje a Cortázar, nov1994).
Nem a escrita apressada e ofegante de algumas fragmentárias percepções nem os circunlóquios autobiográficos arrancados da totalidade dos estados de consciência e mal copiados merecem ser poesias. Com essa vontade oportunista de aproveitar o menor ápice vital, com essa comichão contínua de encadernar o universo e encaixá-lo numa estante, só se chega a uma sempiterna espionagem da própria alma, que talvez fragmenta e histrioniza o homem que a exerce. (Jorge Luís Borges, 1921)