22 de abril de 2010

A Demora

Ruth Lifschits

        No dia em que completei sete anos, fui morar numa vila no Engenho de Dentro.  Foi quando conheci Seu Zezinho. Quer dizer, primeiro eu vi uma cadeirinha de balanço e só depois eu o vi. É que, ao entrarmos na vila, eu só conseguia enxergar uma pequena cadeira de balanço na porta de uma das casas. Meus olhos se arregalaram, até respirei pra dentro. Nunca tinha visto nada igual. Só depois é que veio a figura de um homem pequeno e magrinho enfiado numa cadeirinha de criança.
        Era uma vila com uma rua central e quatro casas de cada lado. A nossa era a segunda do lado ímpar, bem em frente à de Seu Zezinho. Nem entrei na nova casa. Larguei meu casaco em cima de umas caixas de papelão e fui ver a cadeirinha de perto. Ao me aproximar, ele levantou os olhos, levou um dos indicadores aos lábios num pedido de silêncio e disse baixinho, “esperando, esperando”.   Aquela foi a única vez que Seu Zezinho falou comigo.
        Ele passava os dias na cadeirinha. Olhos soltos no espaço, se balançando suavemente.  Cochilava na cadeira, olhava pro céu na cadeira, suspirava na cadeira, mas não falava com ninguém. Era levado para dentro para almoçar, para dormir e creio que para ir ao banheiro pois nunca o vi fazer xixi na rua. Eu ia para o colégio de manhã e na volta lá estavam os dois no lugar de sempre. 
        Ele mora com o irmão e a cunhada, nos disse uma vizinha. Quis saber mais, mas minha mãe me cortou dizendo que não me metesse em assuntos de adulto. Tempos depois, soube que seu Zezinho era o dono da padaria da praça e que tinha perdido a mulher e a filha num incêndio causado por vazamento de gás em um dos fornos.  
        Depois dos enterros, missas e o recolhimento inicial do luto, seu Zezinho passou a ficar na cadeirinha na porta de sua casa. O irmão e a cunhada foram morar com ele. A cunhada, muito paciente, conseguia fazê-lo entrar para ir dormir e para se abrigar das chuvas ou mau tempo. Sussurrava coisas em seu ouvido, ele ia cedendo e se deixava levar. Todos os dias era a mesma coisa. Não sei que idade seu Zezinho tinha. Para mim, todos os adultos eram velhos.
        Aquele homem me intrigou desde o primeiro momento. Queria conversar com ele, fazer perguntas, ouvir respostas. Não conseguia entender uma pessoa inteiramente calada. Tratei logo de levar meus brinquedos para perto dele, queria atrair sua atenção. Nada. Mas não desisti. Seu Zezinho e a cadeirinha viraram personagens de minhas fantasias. Brincava com eles. Imaginava-os fazendo parte de tudo. Lia livros infantis em voz alta, como se eles fossem meus alunos e passava lições para fazerem. Ele distante, encerrado em seu próprio mundo.
        E fui crescendo, incapaz de passar por ele sem falar alguma coisa. Se eu estava excitada com alguma novidade, ia logo lhe contar: ganhei uma bicicleta, fui ao cinema ver um filme maravilhoso, vamos passar as férias num hotel fazenda.
        No final da minha adolescência, fiz do seu Zezinho meu confidente. Contava coisas, repassava fatos, analisava tudo com ele. Sempre gostei de falar sozinha, mas tinha de me conter pra não pensarem que eu era maluca e para não ficarem sabendo  o que se passava na minha cabeça. Com Seu Zezinho era diferente. Eu podia dizer tudo sem que houvesse censuras, críticas ou interrupções. Quando comecei a namorar o Pedro, fui correndo lhe contar: encontrei o meu companheiro, a minha metade. 
        Morei na vila dos sete aos vinte e cinco anos. Nunca vi ninguém puxar conversa com seu Zezinho. Quando muito soltavam uns bom-dia e boa-tarde no ar, sem diminuírem o passo ou lhe darem a menor olhadela. Eu não conseguia passar sem parar e mostrar que sabia que ele estava ali. Eu acho que Seu Zezinho me seguia com os olhos, por pouco tempo, mas seguia.  As crianças da vizinhança tentavam implicar com ele, mas como ele não reagia, desistiam.
        No dia da minha formatura, parei bem em frente à cadeirinha com um Seu Zezinho muito mais magro, cabeça toda branca e olhar desbotado. Contei, animada, que tinha duas propostas de trabalho. Eu falava e procurava nele alguma reação ao que eu dizia. Acho que vi o começo de um sorriso, mas posso ter imaginado. Tive vontade de lhe dar um beijo, mas me contive. Devia ter seguido meu instinto.
        Uma semana depois, ele morreu.  Naquele dia, eu havia saído cedo para resolver assuntos profissionais e voltei tarde.  Na manhã seguinte, minha mãe me contou como tinha sido. Tudo corria normalmente, quando a cunhada ouviu uma voz alterada de homem.  Ela chegou até a porta e lá estava Seu Zezinho de pé gesticulando e falando alto “demorou muito, demorou muito”. Mas não havia ninguém. Não houve tempo para mais nada. Ele caiu no chão murmurando, “demorou mas chegou, demorou mas chegou”, até parar de todo.
        Chorei muito. Eu gostava dele, da cadeirinha, dos dois na calçada.   
        A cunhada quis que eu ficasse com a cadeirinha. Recusei.  A cadeirinha sem o Seu Zezinho? 
        Vi quando o lixeiro a levou pendurada num gancho na lateral do caminhão. Aos balanços ela se despedia de mim e do que tinha sido.    
        Consegui emprego, eu e Pedro temos três filhos e moramos longe da vila. Meus pais vieram para perto.  
        Nunca mais vi a cunhada e nem ninguém de lá.
        Meu Seu Zezinho e a cadeirinha nunca me deixaram. Ainda conto certas coisas só para ele.
Brejal, 14 de março de 2010

21 de abril de 2010

O caguetinha

mgrilo
... e os seus presentes serão também os meus presentes, e os meus presentes serão só os meus presentes
(fala de irmão mais velho para o menor  fingindo ler a bíblia)
         Quando a pequena mariposa entrou pela janela e se grudou na parede, ele olhou indiferente, mas um impulso o levantou para fechar a janela, encostar a porta e trazer o gato para o quarto; com seus lábios carnudos e proeminentes saudosos da chupeta, apontou a mariposa para o gato e, enquanto a natureza fazia a sua parte, o menino Venio de 11 anos da família Actorides tornava-se um alcagüete. Quando sua mãe perguntou por que tinha feito aquilo, respondeu com sua boquinha muxoxa  “a natureza não pode esperar” e, diferente de todos os outros que faziam essas coisas por interesse ou por prazer, acrescentou uma convicção filosófica  à sua iniciante carreira de caguetagens.
        Não era filho único e nem mau aluno. Quando seu professor de ciências explicou que o homem era também um animal – o apoio cientifico para ampliar suas ações – fez a sua primeira vítima: Nádia bunda-baixa, sua irmã adolescente, que ...tapaf!! levou uma tapona da mãe bem no meio dos beiços, e ele foi muito elogiado por ser tão zeloso com a família.
       Numa seqüência olímpica, os próximos imolados foram Manueli, a faxineira expulsa da casa, e Ciço, o auxiliar da portaria, o mais novo desempregado da cidade. Sendo considerado observador, diligente e cuidadoso pelos pais e vizinhos,  esse sacaninha agora encontrava-se enricado de adjetivos.
       De vez em quando seus pais na cama, antes de anunciarem os desejos, fantasiavam para ele uma carreira sólida no serviço público federal e concursado, como repetia orgulhosa sua mãe, mas como, com as provas da vida não se brinca, a família foi reprovada  – exatamente no dia doze de outubro  e um pouco antes das oito –  na BR-040, com  um acidente de carro em que faleceu esse varão, com o crânio fraturado, salpicando  de neurônios pervertidos a sua alma que voou direto para o nirvana dos corrompidos onde foi recebida com honras e de braços abertos pelo diabo em pessoa que, fazendo biquinho, murmurava baixinho “meu querubim...”

7 de abril de 2010

A arte da crônica 2

Bia Albernaz
Quer saber se o seu texto é bom? Experimente-o em um leitor-cobaia. Se ele sorrir, mesmo que levemente, se franzir rápido as sobrancelhas, alegre-se: você encontrou um caminho, e já conseguiu alguém que o acompanhasse, mesmo que só um pouquinho. Acompanhar ou ser acompanhado? Cronista que é cronista não vai na frente da multidão. Mistura-se a ela e ajusta suas antenas para entrar em sincronia com os acontecimentos, ou melhor, com o acontecimento. Hoje, há tanto para acompanhar que é preciso focar no detalhe, no que parece óbvio, no que só você vê, a partir do seu ângulo particular. Porque, acredite, a crônica, sendo uma arte, não explica, discursa ou generaliza; mas sim mostra, aponta ou expõe, não um ponto de vista, mas a vista, a partir de um determinado ponto.