26 de abril de 2011

Poemas para roteirizar - exercício

Escolher um poema para “roteirizar”.
Separar a página em 2 colunas:
de um lado, colocar trechos do poema (divididos livremente, segundo critério do roteirista); do outro, descrever imagens correspondentes, literais ou frutos da combinação da interpretação e das associações afetivas e intelectuais.
É interessante que as imagens também formem um sentido, ou seja,
criem uma visão própria do poema.


DONA DOIDA
Adélia Prado
Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso,
com trovoada e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus fihos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
***

ENCOMENDA
Cecília Meireles
Desejo uma fotografia
como esta – o senhor vê? – como esta:
em que para sempre me ria
com um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixa esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não ... Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

***
Manoel de Barros 
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

***
HISTÓRIA NATURAL
Carlos Drummond de Andrade
Cobras cegas são notívagas.
O orangotango é profundamente solitário.
Macacos também preferem o isolamento.
Certas árvores só frutificam de 25 em 25 anos.
Andorinhas copulam no vôo.
O mundo não é o que pensamos.
***

Rainer Maria Rilke (trad. Emmanuel Carneiro Leão) 
Eis o animal que não existe!
Eles não sabiam, mas em todo caso
O amaram – suas andanças, sua postura,
Seu pescoço, até a luz de seu olhar tranqüilo.

Certamente não existiu. Mas porque o amaram,
Tornou-se puro animal. Deixaram sempre espaço.
E, no espaço, levantou ligeiramente a cabeça,
Claro e contido, mal necessitava

Ser. Eles não o nutriram de grão
Apenas, para sempre, da possibilidade de ser.
O que deu tamanha força ao animal

Que lhe fez brotar de sua testa um corno. Unicórnio.
Passou por uma virgem, todo branco –
E nela existiu, e no espelho de prata.

***
AUSÊNCIA
Carlos Drummond de Andrade
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta da ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Os tucanos voltaram

Ruth Liftschits
            Os tucanos voltaram.
            É quase noite, gritam na mata em frente.
            De desespero, de agonia?
            Atucanando e atucanados.
            Costumam vir de manhã,
            Me acordam, me atordoam.
            Gritos que pesam e oprimem.
            É o peso de estar só.
            Quero gritar minha solidão.
            Mas a quem chamar?
            Com gritos ninguém da minha espécie virá.
            Não para ajudar.
            Sim para calar, prender, levar.
            Gritos não me trarão companhia.
            Os tucanos voltaram.
            Eu preciso voltar.
            Fazer. Agir. Não somente pensar.
            Sofro imóvel, pensando, contida.
            Medo da vida, do fazer.
            Sempre a pensar no que poderia ser,
            Mas o tempo se escoa e nada faço.
            Não há mais tempo para todos os livros,
            Não há mais tempo para todas as coisas.
            Gritar não adianta.
            Meu espaço seguro  exclui o fazer.
            Só sei pensar, imaginar e deixar tudo morrer.
            Como transformar em realidade o que foi pensado?
            Como dar vida ao imaginado?
            Os tucanos voltaram.
            E eles, o que fazem?
            Comem insetos, frutas, roubam ovos de ninhos.
            Voam livremente.
            Tucanos não pensam, mas fazem.
            Eu penso e não faço.
            Os tucanos voltaram.

21 de abril de 2011

Maravilhoso exemplo de cenário

          NAVIO NAUFRAGADO

          Vinha dum mundo
          Sonoro, nítido e denso.
          E agora o mar o guarda no seu fundo
          Silencioso e suspenso.

          É um esqueleto branco o capitão,
          Branco como as areias,
          Tem duas conchas na mão
          Tem algas em vez de veias
          E uma medusa em vez de coração.

          Em seu redor as grutas de mil cores
          Tomam formas incertas quase ausentes
          E a cor das águas toma a cor das flores
          E os animais são mudos, transparentes.

          E os corpos espalhados nas areias
          Tremem à passagem das sereias,
          Que têm olhos vagos e ausentes
          E verdes como os olhos dos videntes.

Sophia de Mello Breyner Andresen (em "Dia do Mar")

19 de abril de 2011

Lembrança selvagem

Mgrilo
             Acordei com vermelhidão em um olho. Segundo tia Heleninha, com olho-de-tarado.
             Sim, me lembro de um sujeitinho gesticulando e berrando para um grupo:
                - Não! Vocês tem que entender que não sou gente violenta, só acho que não tem problema  querer consertar as pessoas. Quem mandou ele ficar um tempão conversando com o caixa do banco? Se vai alugar o caixa faça contrato e pague aluguel! Não o conheço e só esfreguei um papel na cara dele como sendo um contrato. Mas fiquei gritando com educação, está bem? Gostariam que eu ocupasse a orelha do caixa contando com detalhes a operação de vesícula da tia Heleninha?
                - Que história é essa de tia Heleninha? Ela é a minha tia e não a sua.   
                - Trabalho para você, respondeu em tom alto o tipinho.
              Nesse momento, uma jovem ruiva com um decote escandaloso gritou em minha direção:
             - Evite os pecados mortais. E já que sexo não é pecado, como um justo faça SÓ sexo na sua vida  que irá garantir a vida eterna.            
                Percebi que os dois eram esboços de personagens meus, quando  aquele desqualificado voltou a falar alto comigo:
             - Estou à sua disposição faz tempo, e agora quero receber meus atrasados.
             Surpreso, mas disfarçando a minha preocupação tentei controlar a situação.
             - Pessoal, vocês sabem que personagens não tem salário, e existem ainda aqueles que fazem a má fama de seus autores! Eles por um acaso pagam indenização para seus criadores? 
             - Ele se faz de besta, gritaram a ruiva e os peitões.             
             - PAGA! A pequena multidão voltou-se para mim vindo em minha direção. Tentei correr e não consegui sair do lugar.
             E foi assim que acordei, com esse olho-de-tarado.

18 de abril de 2011

Prêmio OFF FLIP de Literatura abre inscrições (recado)

Estão abertas até 30 de abril as inscrições para a sexta edição do Prêmio OFF FLIP de Literatura.
Criado em 2006 como parte da programação literária da OFF FLIP, o Prêmio oferecerá aos poetas e contistas vencedores R$ 12 mil no total, além de estadia em Paraty e ingressos para mesas de debate da FLIP. Há também outras formas de premiação, como cota de livros da editora Record e passeio de escuna pela baía de Paraty.
Os textos serão avaliados por escritores de expressão no cenário literário brasileiro e os 30 finalistas serão publicados em uma coletânea pelo Selo OFF FLIP. A premiação acontecerá entre 6 e 10 de julho paralelamente à Festa Literária Internacional de Paraty.
O regulamento pode ser lido no site do Prêmio [www.premio-offflip.net].

Narrativa, explicação e fluência - as fichas como método

          Segundo Benjamin, foi preciso que passassem centenas de anos, desde os seus primórdios, para o romance encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Os jornais contribuíram para a divulgação do gênero, através dos folhetins, mas a imprensa  baseia-se em uma linguagem cuja tônica comunicativa distancia-se da forma épica: a linguagem forjada pela e para a transmissão de informações, ameaçadora ao próprio romance. A informação aspira à verificação imediata; precisa ser compreensível “em si e para si”; é plausível, mesmo que inexata; só tem valor quando nova; entrega-se e explica o momento. 
O texto "O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov" encontra-se no livro acima (trad. de Sergio Paulo Rouanet). Também está, com uma outra tradução (José Lino Grünnnewald et alli), na coleção "Os pensadores".
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          Tire as explicações 
         Quando publiquei minha primeira plaqueta de poemas ("Ponta do mistério"), pela Coleção Ladrões do Fogo me disseram que meus poemas explicavam demais. Também ouvi muito dizer que a explicação é prosaica e compreendo que a sonoridade na poesia, que a singularidade e a poeticidade do instante são prejudicadas diante do excesso de conectores explicativos. Não sei se veio daí a retirada sistemática de elementos explicativos como marca de minha poesia.
           Mas a questão que me ocorre agora é correlata a esta necessidade, de buscar um outro modo de dizer as coisas, sem explicações. Trata-se de compreender as passagens que fazem possível a prosa. Ora, são justamente os conectores que transmitem a sensação de passagem do tempo, fazendo assim que a narrativa aconteça. Como realizar as passagens na escrita, sem que ela dê um salto grande demais? Como instituir uma ordenação diante da não linearidade da memória e do pensamento de um modo geral. Há quem goste de ler pulando degraus mas às vezes faz falta um desenvolvimento, a ligação ou fluência nas passagens de uma cena  à outra, para que nós, leitores, possamos mergulhar na história como um todo único. Escrevo isso porque admiro a fluência, mesmo sem descartar a verdade dos fragmentos. Na era do twitter, falar em desenvolvimento parece extemporâneo. No entanto, Benjamin, em sua comparação da arte narrativa com a crônica jornalística, destaca, na primeira, a mesma necessidade que experimentei com a poesia - a de evitar explicações. Diz ele:
Cada manhã recebemos notícias de todo mundo.
E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes.
Fatos já nos chegam acompanhados de explicações.
Quase nada do que acontece está a serviço da narrativa e quase tudo a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.
          Esta colocação dá o que pensar. Somos pobres em histórias surpreendentes? A vida nos encarrega de criar acontecimentos suficientemente fortes a todo momento para compreendermos a nossa impossibilidade de dar explicações sobre tudo. Ainda assim, no sistema escolar todo o ensino baseia-se na visão de que a ciência explica e o aluno deve decorar essas explicações. Estimulando  e reforçando esta visão, professores e educadores acreditam contribuir para o progresso  de ambos.  Essa visão estreita, no entanto, extrapola os limites da escola, que apenas a reproduz um modo de compreensão geral fundado na ânsia de controlar os acontecimentos, e - escolarizadas ou não - muitas pessoas procuram o tempo todo se assegurar de que está tudo bem, segurando-se em qualquer arremedo explicativo mesmo e principalmente em relação aos acontecimentos fortes que nos surpreendem a cada momento. Por isso, a colocação de Benjamin continua provocante e remete quem se dedica à arte narrativa à questão: mas então como faço para descrever as passagens de um acontecimento para outro? Como trazer sentido ao narrado? Como conectar, ou melhor, como fazer a narrativa fluir, sem explicar?
***
          Fichas como método
         Não há resposta satisfatória mas há métodos que os escritores inventam para que consigam criar uma ordem sequencial entre as várias cenas imaginadas de uma história que vão contar. Um deles é pela escrita dessas cenas, assim como de dados que as contextualizam histórica, psicológica ou geograficamente, em fichas. O próprio Benjamin era um aficcionado do método e colecionava suas impressões, pensamentos, descrições em fichas, codificadas por ele, segundo um sistema muito particular de agrupamento em temas.
          Pesquisando na internet, soube ainda que Nabokov ajustava a escrita não linear dos episódios à necessidade da linearidade nos romances desta maneira.

          Mais além, descobri que esse sistema é largamente empregado e discutido. Parece que há os adeptos do caderninho e os que vibram pelas fichas (Index cards). Há variações, com a fixação das fichas em grandes painéis, mais usados na escrita de roteiros. A vantagem das fichas sobre os caderninhos, quando se está em meio a escrita de uma história longa, parece ser a mobilidade que a escrita em fichinhas permite. Podem ser deslocadas, visualizadas ou rejeitadas mais facilmente. Para isso, há toda uma técnica  (a bem da magia!) a ser desenvolvida na escrita das idéias no espaço exíguo de uma ficha. Aqui vão alguns links de textos a respeito do assunto, encontrados em inglês:
How to Use Index Cards to Write a Novel Outline (Stuart Brown - EzineArticles.com)
Writing series - Organizing research with note cards (studygs.net)
Still Saving the Cat (Pooks - guiltyofbeing.blogspot.com)
Hurrah for the Index Card! (Maeve Maddox - dailywritingtips.com)
Using Index Cards to Plot a Novel (Marilynn Byerly - fictionfactor.com)
Searching for a Method to the Madness (tekaranlady.blogspot.com)
Thoughts on Using Index Cards (Jamie Grove - hownottowrite.com) 

More Index Card Love! (doesthispenwrite.wordpress.com)
Nonlinear Nabokov (www.fractalog.com)
Ficha de Nabokov para a escrita de Lolita (lolita-a-study-guide)
This column will change your life - Laugh all you like, says Oliver Burkeman, index cards are pretty cool (guardian.co.uk)

Mais sobre Nabokov: no portal da The New York Public Library, ver o site  Nabokov under the glass

13 de abril de 2011

O arco

Renata Figueiredo
 Aparentemente é uma livraria.  Mas não se limita a isso. Existem também salas de aulas. E nelas acontecem diversos cursos. É diferente de tudo o que eu já havia passado, de todas as outras salas de aula que havia frequentado. Poderia compará-las às dos meus cursos de computação ou até mesmo dos meus cursos de inglês, na minha época escolar, universitária. Por serem pequenas, e as cadeiras arrumadas em círculo. Só que com o privilégio de um público diferente, mais maduro e com uma capacidade incrível de trocas construtivas. Menor, mais familiar, num ambiente mais aconchegante, onde as pessoas vencem sua timidez na marra, não tem para onde fugir. A sensação é a de um homem vindo me estuprar e o cruel ainda ficar com o  bônus maior,  a minha mochila e cadernos que me acompanham por esse meu longo caminho. Cadernos com todos os meus segredos e anotações, com capas escolhidas, que tem a ver com o momento que estou passando, com toda a minha bagagem. Vou..., não tenho como escapar. A lembrança que fica é de uma história colorida. Uma “maldade” que acaba por deixar, um belo arco íris.

11 de abril de 2011

ZOONA – encontro literário de Curitiba (Recado)

 Encontro reúne durante três dias mais de 35 escritores, poetas, performers e artistas, de diferentes localidades, em homenagem às obras dos escritores Valêncio Xavier e Wilson Bueno.


Mesas-redondas, performances, mostra de vídeo, intervenções, lançamento de livros e publicações, leitura de poesia e prosa (poema ao vivo), exposição documental e lançamento do suplemento literário vagau – edição exclusiva do evento. Essas são as atividades que integram a programação do ZOONA literária, que agitará Curitiba nos dias 15, 16 e 17 de abril no Solar do Barão (Rua Carlos Cavalcanti, n. 533) e no Paço da Liberdade (Praça Generoso Marques, 189).


PARA VER A PROGRAMAÇÃO GERAL

8 de abril de 2011

O agregado José Dias - personagem tipicamente brasileiro

Patrícia Fucci
          Apresento a vocês José Dias, personagem criado pelo gênio de Machado de Assis no inesquecível romance Dom Casmurro.
          Nesse caso, acho indispensável a apresentação, pois quando se pensa em Machado, em Dom Casmurro, de imediato pensa-se em Capitu, “cigana oblíqua e dissimulada”, e, no máximo, pode-se pensar em Bentinho, mas José Dias, o agregado...
          José Dias, o agregado, aquele que, com seus superlativos, buscava superlativar sua existência... E  é justamente por existirem nesse mundo mil vezes mais “joses dias” do que “capitus” que reside a eficácia do personagem – carente, solitário, fazendo de tudo para amenizar esses seus sentimentos.
          Em um enfoque sociológico, o personagem ganha importância por representar figura típica da estrutura familiar brasileira, o agregado, alguém que não sendo membro da família, a ela adere, passando a fazer parte do contexto. Um dia, quando o pai de Bentinho ainda estava vivo, José Dias bateu à porta, fingindo ser médico homeopata, e acabou ficando, encostando-se, aos poucos.
          No romance Dom Casmurro, José Dias é o que “amava os superlativos”, “ria largo, se era preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo”. “Nos lances graves, gravíssimo”, “com o tempo adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo”; e  “as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole”.
Rodolfo Arenas foi José Dias em Capitu (1968), de Paulo Cesar Saraceni, roteiro de Paulo Emilio Sales Gomes e Lygia Fagundes Telles

5 de abril de 2011

Reflexões sobre poesia e ética 2

Konstantinos Kaváfis
Um dos talentos dos grandes estilistas é fazer com que, pelo seu modo de empregá-las, palavras obsoletas deixem de parecer obsoletas. Elas ocorrem com a maior naturalidade nos textos deles, ao passo que nos de outros parecem afetadas ou fora de lugar. Isso se deve ao tato & discernimento de tais escritores, que sabem quando - & somente quando - o termo em desuso ode ser empregado & revelar-se artisticamente agradável ou linguisticamente necessário; & então ele só é obsoleto no nome. Trouxeram-no de volta à vida as naturais exigências de um estilo vigoroso ou sutil. Não é um cadáver desenterrado (como no caso de escritores menos capazes) mas um belo corpo despertado de um sono longo & reparador.
Joan Brossa, Cap de Bou, 1969.
RUÍNA
Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.
Manoel de Barros 

***
A POESIA FALA SOBRE O QUE FALTA E EXISTE

O torso arcaico de Apolo
Rainer Maria Rilke / Tradução de Manuel Bandeira
 
Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida. 

2 de abril de 2011

Caro Tigre,

 Luciane Conte
      
          Caro Tigre,
          andando outro dia pela floresta de cimento, nem de longe acolhedora como a sua que tão boas lembranças me traz, deparei-me diante de uma criatura, que no momento assim prefiro denominar e que, mais tarde, bem irás compreender o porquê da minha falta de zelo. Escrevo a ti, pois és desprovido de julgamentos no que diz respeito ao mundo dos homens, e desse modo melhor poderás compreender a minha aflição e quiçá indicar-me um caminho.
           Encantei-me de pronto pelo formato roliço da criatura, talvez cansada das anoréxicas beldades televisivas e, com um quê de rebeldia barata, vasculhei minha bolsa à procura de uns trocados que o libertassem do meio fio. Mal chegando em casa, arrumei-lhe um lar aconchegante perto da planta da felicidade, diga-me onde mais alguém poderia querer viver?  Pois saiba que quase mata seu gentil hospedeiro de tanto chafurdar na lama. Tirei-o rapidamente, lavei-lhe as patas, e o pus onde a ninguém viesse perturbar, na estante, preso entre “A Revolução dos Bichos” e o “O Príncipe” como contraponto.
            Há de se dar de comer à criatura a toda hora, que a fartas bocadas satisfaz sua fome e não preenche sua pança. Pensei levar meses até que o pudesse satisfazer por completo, diria mesmo que está perfeitamente adaptado à vida moderna com esse eterno ar de insatisfação pendendo de seu nariz roliço. As patas, estas sofreram de alguma doença quando criança dada sua pequenez ou então o ventre, tanto cresceu, que as encurtou.
Agora, passados meses, faz-se o dilema: defensora não sou dessa vil criatura, mas treme minha consciência com o que há de vir. Necessito com a maior urgência de tudo o que sob seus cuidados se encontra e para obtê-lo deveria de pronto romper-lhe o ventre, o que em nada me apraz, acaso tivesse essas vontades teria me dedicado a veterinária, onde crê-se, apesar de inúmeras controvérsias, eles sabem o que fazem. Ficamos assim em casa, olhos nos olhos, sem nada a dizer. Faz já uma semana que minha mente se digladia entre o querer e os meios para tanto.
Peço, encarecidamente, que não tardes a vir com teus sempre nobres conselhos e lembre-se que a tua natureza nessa hora muito me convém.
Da igualmente nobre amiga e domadora de porcos,
Marcília.
***
O caçador solitário Paideuma.net

1 de abril de 2011

Eterno retorno

Círculos dentro de círculos, Kandinsky, 1923.
Redondos são seus olhos,
As lentes do telescópio,
O disco voador

Redonda é a terra, a Lua, o Sol e
Todos os planetas

Redonda é a bola, a roda e
A evolução do mundo

O giro da cambalhota,
O botão antes da flor

O arco do teu abraço,
Redonda é a forma do amor.
Patrícia Fucci