24 de abril de 2019

Imaginação primária e secundária, segundo Coleridge, de acordo com Auden*

A única preocupação da imaginação primária são os seres sagrados e acontecimentos sagrados. O profano é conhecido de outras faculdades da mente, mas não da imaginação primária. Não se pode escolher um ser sacro, é preciso encontrá-lo. No encontro, a imaginação não tem outra escolha a não ser reagir. A impressão que qualquer ser sagrado deixa na imaginação é de suprema importância, mas indefinível – uma qualidade imutável, uma “identidade”, como disse Keats. Sou o que sou, é o que todo ser sagrado parece dizer. Em seu livro Witchcraft, o sr. Charles Wiliams a descreveu assim:
Tem-se a consciência de que um fenômeno, específico, está carregado de significado universal. A mão que acende um cigarro é a explicação de tudo; o pé que desce do trem é o pilar de toda a existência... Dois leves passos de dança de uma menina parecem traduzir tudo o que já se tentou expressar... mas dois silenciosos passos de velho são a linguagem do próprio inferno. Ou o inverso.
A reação da imaginação a tal presença ou significado é um sentimento de temor e reverência. Esse temor pode variar imensamente de intensidade e numa escala que vai de encantamento e êxtase a pavor e pânico. O ser sagrado pode ser atraente ou repulsivo – cisne ou polvo, bonito ou feio – bruxa desdentada ou linda criancinha, bom ou mau – Beatrice ou Belle Dame sans Merci, fato histórico ou ficção – um transeunte ou uma imagem de estória ou sonho; pode ser nobre ou algo impossível de se mencionar num salão, pode ser o que quiser, com a condição absoluta de despertar temor e reverência. O reino da imaginação primária não tem liberdade ou senso de tempo.
Alguns seres sacros parecem serem sagrados para todas as imaginações em todas as épocas. Por exemplo, a lua, fogo, cobras e aqueles quatro importantes seres que só se pode definir em termos de não ser – a escuridão, o silêncio, o nada e a morte. A imaginação pode adquirir novos seres sagrados e perder antigos para o profano. Os seres sacros podem ser adquiridos por contágio social, mas inconscientemente. Não se pode ensinar alguém a reconhecer um ser sagrado, a pessoa tem de se converter. Em regra, com a idade, talvez, os eventos sagrados passam a ter mais importância que os seres sagrados.
O ser sagrado também pode ser um objeto de desejo, mas a imaginação não o deseja. Um desejo pode ser um ser sagrado, mas a imaginação não tem desejo. Na presença do sacro, ela se esquece de si; na sua ausência, torna-se o próprio profano, “a menos poética de todas as criaturas de Deus”. Um ser sagrado pode também exigir ser amado ou obedecido, recompensar ou punir, mas a imaginação não se afeta. Para ela, o ser sacro é auto-suficiente, não necessita de amigos.

A imaginação secundária é ativa, não passiva, e suas categorias não são o sacro e o profano, mas o belo e o feio. Nossos sonhos são plenos de seres e eventos sacros – de fato é bem possível que não contenham outra coisa, mas nos sonhos não podemos distinguir – ou assim me aparece, embora possa estar errado – entre bonito e feio. Beleza e feiúra pertencem à forma, não ao ser. Para a imaginação primária, o ser sagrado é o que é. Para a secundária, a forma bonita é como ela deveria ser,  a feia como não deveria ser. Não deseja o belo, mas a forma feia desperta nela o desejo de que sua feiúra seja quem sabe transformada a fim de se tornar bela. Pode-se dizer que a imaginação secundária tem uma natureza burguesa. Aprova a regularidade, a simetria, a ordem; desaprova o mau acabamento, a insignificância, a confusão.
Enfim, a imaginação secundária é social e solicita o acordo de outros intelectos. Se para mim um forma é bonita e para o senhor, feia, não podemos deixar de concordar que um de nós deve estar errado, enquanto que se alguma coisa para mim é sagrada e para o senhor, profana, nenhum de nós sonhará discutir o assunto.

Os dois tipos de imaginação são essenciais à saúde do intelecto. Sem a inspiração do medo sacro, suas belas formas logo se tornariam banais e seus ritmos mecânicos; sem a atividade da imaginação secundária, a passividade da primária seria a anulação da mente. Mais cedo ou mais tarde seus seres sacros a possuiriam; ela viria a considerar-se sagrada, excluir o mundo exterior como profano, e assim enlouquecer.
Certas pessoas sentem impulso para criar uma obra de arte quando o medo passivo provocado por eventos ou seres sagrados é transformado no desejo de expressá-lo em um rito de adoração ou homenagem. Para uma homenagem adequada, o rito deve ser belo. Esse rito não tem intenção mágica ou idólatra; nada se espera em troca. Nem é, no sentido religioso, um ato de devoção. Se louva o Criador, o faz indiretamente, ao louvar suas criaturas – entre as quais pode haver noções da natureza divina.
Na poesia, o rito é verbal; rende-se homenagem, nomeando. Suspeito que a predisposição da mente ao medium poético talvez se origine de um engano. Imaginemos uma babá que diz a uma criança: “olha a lua!”. A criança olha e, para ela, esse é um encontro sagrado. Em sua mente, a palavra lua não é o nome de um objeto sagrado, mas uma de suas propriedades. A ideia de escrever poesia não pode ocorrer à criança, é claro, enquanto ela não se der conta de que nomes e coisas não são idênticos e de que não pode haver uma linguagem sagrada inteligível. No entanto, ao descobrir a natureza social da linguagem, é possível que a importância ao ato de nomear só aconteça porque previamente houve aquela falsa identificação entre nome e coisa.
Um poema é um rito; daí seu caráter formal ritualístico. Seu uso da língua é deliberada e ostensivamente diferente da conversa. Mesmo quando emprega a dicção e os ritmos da conversação, emprega-os com informalidade deliberada, pressupondo a norma com a qual tem a intenção de contrastar.
A forma do rito deve ser bonita, exibindo, por exemplo, equilíbrio, proximidade e equivalência com aquilo de que é forma. É essa última qualidade, de equivalência, que provoca a maior parte de nossos debates estéticos, sempre que nossos mundos sagrado e profano se choquem.
Aos olhos de um avarento uma moeda é de longe mais bonita que o sol & uma bolsa de dinheiro gasta pelo uso tem proporções mais belas que um vinhedo carregado de uva. Pode-se notar que Blake não acusa o miserável de falta de imaginação.
O valor da coisa profana está no que faz de útil, o valor da sagrada, no que é. O nome apropriado para o ser profano, portanto, é a palavra, ou são as palavras que descrevem acuradamente _ Sr. SmithSr. Weaver. O nome apropriado para o ser sagrado é a palavra, ou palavras que exprimem devidamente sua importância – Son of ThunderThe Well-Wishing One.
As grandes mudanças de estilo na arte refletem sempre uma alteração na fronteira entre o sacro e o profano na imaginação da sociedade. Assim, tomando um exemplo da arquitetura, o monarca do século XVII tinha a mesma função do chefe de estado moderno – governar. Mas ao projetar seu palácio, o arquiteto barroco não aspirou, como aspira o arquiteto moderno, a criar um escritório no qual o rei pudesse governar fácil e eficientemente. Procurou fazer uma habitação à altura do representante de Deus na terra. Se é que pensou no que faria o rei dentro dela como governante, pensou apenas em suas atividades cerimoniais, não nas práticas.
Graças à natureza social da linguagem, o poeta pode relacionar qualquer ser ou evento sacro a qualquer outro. A relação pode ser de harmonia, contraste irônico ou contradição trágica. Pode relacioná-los a qualquer outro assunto da mente, às exigências do desejo, da razão e da consciência, e pode trazê-los ao contato e contraste com o profano. Mais uma vez, as conseqüências podem ser felizes, irônicas, trágicas e, em relação ao profano, cômicas. Quantos poemas não foram escritos, por exemplo, sobre um desses três temas:

Isto foi sagrado, mas agora é profano. Graças a Deus!

Isto é sagrado, mas deveria ser?

Isto é sagrado, mas será isso tão importante?

Mas é dos encontros sagrados da imaginação do poeta que desperta o impulso para escrever poemas. Graças à língua, ele não precisa nomeá-los diretamente, a não ser que o deseje: pode descrever um em termos de outro, e traduzir os que são privados, irracionais ou socialmente inaceitáveis de tal forma que a razão e a sociedade os aceitem. Alguns poemas são diretamente sobre os seres sagrados para os quais foram escritos, outros não, e nesse caso, nenhum leitor saberá qual o foi o encontro que originou o impulso para o poema.  Nem, provavelmente, o propria poeta. Todo poema que um poeta escreve envolve todo seu passado. Todo poema de amor, por exemplo, está ligado a troféus de amantes passados, entre os quais pode haver alguns objetos realmente peculiares. A linda mulher do presente pode contar, entre suas predecessoras, uma roda de moinho movida a água. Mas para que possa escrever um poema genuíno, o poeta tem de sofrer o encontro, seja ele ficção ou renovação de recordações do passado.
Qualquer que seja seu conteúdo real e sentido aparente, todo poema enraiza-se no medo da imaginação. A poesia pode fazer cento e uma coisas: dar prazer, entristecer, perturbar, divertir, instruir – pode expressar toda nuance possível de emoção e descrever qualquer tipo concebível de evento. Mas há apenas uma coisa que toda poesia tem de fazer: louvar o quanto possa o fato de existir, de acontecer.
Como ilustração, um poema porque ele é tão simplesmente um rito de homenagem aos objetos sagrados que não são deuses nem objetos de desejo:


Depois


Quando o presente tiver trancado a sua porta após a minha trêmula estadia,
E o mês de maio abanar suas alegres folhas verdes como asas,
Névoa delicada feito a seda acabada de fiar, irão os vizinhos dizer:
“Ele era um homem que costumava notar tais coisas.”

Se for na penumbra quando, como um piscar sem som de uma pálpebra
O falcão da queda do orvalho vier cruzando as sombras para iluminar
O espinheiro do planalto torcido de vento, um observador pode pensar:
“Para ele essa deve ter sido uma visão familiar.”

Se eu passar durante algum negrume noturno, roído de insetos e morno,
Quando o ouriço-cacheiro viaja furtivamente pelo gramado,
Podem dizer: “Ele lutou para que a essas inocentes criaturas não sobreviesse nenhum mal,
Mas pouco pôde fazer por elas, e agora foi-se.”

Se, ao saber que aquietei-me afinal, eles estiverem de pé à porta,
Acompanhando os céus inteiramente estrelados que o inverno vê,
Irá esse pensamento despertar naqueles que não mais encontrarão meu rosto:
“Ele foi alguém que tinha olhos para tais mistérios.”

E irá alguém dizer quando o sino da minha despedida for ouvido ao escurecer,
E a brisa que passa cortar uma pausa em seus desenrolares
Enquanto não tornam a levantar-se como se fossem um novo repicar de sino:
“Ele já não ouve mas costumava notar tais coisas.”

Thomas Hardy, 1840 - 1928
Afterwards
When the Present has latched its postern behind my tremulous stay,
     And the May month flaps its glad green leaves like wings,
Delicate-filmed as new-spun silk, will the neighbours say,
     "He was a man who used to notice such things"? 

If it be in the dusk when, like an eyelid's soundless blink,
     The dewfall-hawk comes crossing the shades to alight
Upon the wind-warped upland thorn, a gazer may think,
     "To him this must have been a familiar sight."

If I pass during some nocturnal blackness, mothy and warm,
     When the hedgehog travels furtively over the lawn,
One may say, "He strove that such innocent creatures should come to no harm,
     But he could do little for them; and now he is gone."

If, when hearing that I have been stilled at last, they stand at the door,
     Watching the full-starred heavens that winter sees,
Will this thought rise on those who will meet my face no more,
     "He was one who had an eye for such mysteries"?

And will any say when my bell of quittance is heard in the gloom,
     And a crossing breeze cuts a pause in its outrollings,
Till they rise again, as they were a new bell's boom,
     "He hears it not now, but used to notice such things?"
*Do livro Saber, fazer e julgar, de W.H. AUDEN, trad. de Angela Melim, Ed. Noa Noa, Florianópolis, 1981.