31 de maio de 2011

Livros para que te quero (Recado)

Recebi esta postagem e guardo aqui. Para ter leitores, é preciso ser um. Não é uma garantia mas, numa oficina com Raimundo Carrero, uma vez ouvi um comentário (que ele repetiu de um de seus alunos), e que comprovo com a minha própria experiência no Atelier: se não nos tornarmos escritores, na acepção estrita da palavra, isto é, profissionais da escrita, com certeza nos tornaremos leitores muito melhores, mais refinados.

Aliás, creio que a separação entre a leitura e a escrita é uma invenção da didática.

Observação: Não naveguei em todos estes sites. Não sei se todos funcionam bem. E exatamente de que acervos dispõem.
  1. Domínio Público - Do Governo Federal, dispõe de obras que entraram em domínio público, ou seja, que foram cedidas por seus autores ou cujos autores morreram há mais de 70 anos.
  2. Cultura Brasil - Site que distribui livros online, nem todos em domínio público.
  3. Projeto Democratização da Leitura - Site colaborativo. Os usuários enviam links de obras disponíveis na internet. Os responsáveis pelo endereço fazem questão de enfatizar - uma vez que há obras ainda não em domínio público entre as indicadas.
  4. Gutenberg - Hospeda livros de domínio público em diversas línguas, inclusive português.
  5. CultVox - Além de vender, oferece livros em uma seção gratuita. Porém, para fazer download, é preciso se cadastrar.
  6. Biblioteca Nacional - Em sua seção Biblioteca Nacional Digital, a instituição oferece quase 5 mil itens entre livros, mapas, atlas, partituras e documentos históricos.
  7. Google Pesquisa de livros - Você pode encontrar diversos livros em versão integral para serem pesquisados online. Se o livro que você procura não estiver disponível na íntegra, você tem a opção de comprá-lo.
  8. Biblioteca Virtual - Mais uma opção para quem quer livros que estejam em domínio público em língua portuguesa.
  9. BibVirt - Existe desde 1997. Além de ter livros de domínio público, oferece arquivos de som - históricos ou não -, vídeos e outros documentos.
  10. eBookCult - Ênfase na área de educação, mas você pode encontrar coisas como as obras de H.P. Lovecraft.
  11. Virtual Books - Livros grátis em seis línguas diferentes. Também há entrevistas e resumo de jornais.
  12. Pribi - Site pessoal. Possui um bom acervo de livros eletrônicos para serem baixados.

29 de maio de 2011

I Concurso de Poesias Autores S/A (Recado)

Leia o regulamento disponível em:
http://autoressa.blogspot.com/2011/05/i-concurso-de-poesia-autores-sa.html

De passagem

Suitcase, Jefferson Hayman
          Patrícia Fucci
          Adalberto era representante comercial, um caixeiro viajante, sempre perambulando por esse mundo afora, em busca de novos mercados. Era um tipo comum, baixinho, magro e ligeiro. Andava rápido, com passos curtos. Mas mesmo com essa pressa toda, indo de lá pra cá e de cá pra lá, não raro, era acometido pela solidão.
          E de tanto viajar sozinho, acabou desenvolvendo o hábito de levar com ele pessoas queridas, digo, dentro dos seus pensamentos. E assim o fazia, pois se tratando de pessoas bem chegadas quase não precisava adivinhar, já lhes conhecia o gosto, o que lhe conferia o poder de asseverar, sem risco de erro, o que achavam sobre essa ou aquela coisa. Inicialmente, costumava levar um de cada vez, mas com o tempo, passou a carregar dois e, às vezes, três companheiros. Quase não discordavam e, aos poucos, aquilo foi ficando enjoado.
          Foi aí que Adalberto, a fim de espantar a mesmice, passou a levar consigo pessoas menos chegadas. Uma vez carregou seu senhorio, outra, sua gerente de banco. Parecia-lhe mais desafiador, pois destes não conhecia os hábitos, pelo que deveria ter mais atenção, puxaria mais por si, e isso era bom. Não tardou para que passasse a formar grupos com esses semi desconhecidos, o que rapidamente se transformou num caos. Às vezes passavam-se horas até que conseguissem resolver onde comer, sendo quase sempre difícil decidir se descansariam entre uma viagem e outra ou se seguiriam direto. Estava cansado disso também, mas não queria ficar só novamente.
          Então teve uma idéia, passaria a levar consigo pessoas completamente desconhecidas, de preferência as que não tivessem qualquer rumo na vida, pois assim seguiriam seu caminho de bom grado. Buscou então, nos becos, viciados e prostitutas, marginais de toda sorte, na esperança de lhe servirem de companhia. Qual o quê, jamais conseguiu um minuto de paz com eles, traziam questões muito profundas, muito sofridas, e aquilo tudo estava fazendo mal ao nosso viajante, que passou a sentir-se ameaçado. Com todas aquelas vozes dentro da sua cabeça, não agüentaria mais muito tempo, estava exausto.
          Foi quando uma voz de criança, lhe oferecendo pipoca, retirou-o dos seus conturbados pensamentos. Sim, aceitou a pipoca com prazer. Era uma linda menininha de cabelo vermelho, sentada ao seu lado no ônibus. Em poucos segundos, Adalberto já lhe sabia o nome, a idade e a brincadeira predileta. Estava vindo de férias da casa da avó e viajava acompanhada da mãe, que sentava dois bancos atrás. Então, Adalberto virou-se. Localizou a jovem senhora e, selando a recente camaradagem, propôs a troca de lugares.

          Já desembarcado e, embora novamente sozinho na plataforma da rodoviária, Adalberto se percebeu aliviado.
         Ao subir no próximo ônibus que finalmente o levaria para casa, após quinze dias de trabalho ininterruptos, sentia-se realmente cansado. Procurou um lugar na janela e recostou a cabeça. Estava leve, sonolento, as imagens perdendo o foco. Sentia-se muito bem, flutuando. Foi então que sonhou seu melhor sonho. Voava na garupa de um anjo louro que montava um cavalo alado e todo azul, que, em movimentos curvos, sobrevoava o mundo, que ia cada vez ficando mais longe, cada vez menor, até que, aos pouquinhos, foi sumindo, foi sumindo, sumindo.
Spike Gillespie

19 de maio de 2011

O que, pois, é este "Poder terrível" a que Wordsworth chama "Imaginação"?

Na última versão [de O prelúdio], Wordsworth nos dirá que o poder é "assim chamado / Pela triste incompetência da linguagem humana"(6.592-3), mas, é óbvio, o nome está inteiramente correto, pois o poder da visão cresce em intensidade desde a memória, mediante a ênfase, até a oclusão do visível.

A Imaginação pode ser estruturalmente definida como um poder de resistência ao Verbo, e, nesse sentido, ela coincide exatamente com a necessidade psicológica de originalidade.

Porém, uma definição estrutural apenas localiza uma experiência; como uma experiência ou um momento, a Imaginação é uma extrema consciência do ser a tomar vulto no recuo  dialético em face da extinção do ser, imposta por uma iminente identificação com a ordem simbólica. Daí a Imaginação elevar-se "qual emanação bastarda": ela é, a um só tempo, a necessidade do ego e sua tentativa de ser bastardo, de originar-se a si próprio e, desse modo, negar o reconhecimento a um poder superior.

A imaginação não é uma evasão do complexo de Édipo, mas uma rejeição dele. De certo ponto de vista (aquele, por exemplo, implicado pela história da influência poética), essa rejeição é puramente ilusória, uma ficção. Rejeitar o complexo de Édipo não é, afinal de contas, dissipá-lo.

Mas a ficção é necessária e redentora; ela fundamenta o ser e garante a possibilidade - a oportunidade para uma certeza de si mesmo - da originalidade. E, assim, Wordworth pode dirigir-se à sua "alma consciente"(1850) e dizer: "Reconheço tua glória".
O trecho é de autoria de Thomas Weiskel de "O sublime romântico" e foi citado em "Abaixo as verdades sagradas - Poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias", de Harold Bloom. De Wordsworth, não encontramos nenhuma tradução em português. Mas deve haver.

15 de maio de 2011

Oficina de Contação de Histórias "Contar com o Coração" (Recado)

com As Alquimistas da Palavra Sonia Sampaio e Deka Teubl
O Contador de Histórias tem que ter paixão pela palavra pronunciada
e contar a história pelo prazer de dizer. Celso Sisto

Programação
  - O Contador de Histórias
  - Contar com o Coração
  - Narrativas Vivenciais: a memória afetiva e familiar
  - Atividades Lúdicas de Memorização, Improviso, Ritmo e Olhar
  - A importância do Ouvir Histórias
  - O Conto Popular
  - Leitura de Textos Didáticos e Textos Literários
  - A Escolha das Histórias
  - A Formação de Repertório
  - Produção Coletiva de Histórias
  - Contação de Histórias
  - Bibliografia
  - Entrega de Certificados                                        
                                                                                              
Centro Cultural Justiça Federal - RJ
Av. Rio Branco 241 - térreo (centro) / RJ
Dias 11 e 18 de junho de 2011 (dois sábados)
Horário: das 14:00 às 18:00 horas
Carga horária: 8 horas-atividade
Investimento: R$110,00 (com material didático) 
Promoção com 20% de desconto: R$88,00 
Inscrição: até 08/06/2011 (quarta-feira) com
Sonia Sampaio / sonia.sampaio@oi.com.br
Deka Teubl / dekateubl@yahoo.com.br
Vagas Limitadas

Somos Sonia Maria Vianna Moreira Sampaio e Maria Adélia de Assis Moura Teubl (Deka), professoras e Contadoras de Histórias. Juntas, elaboramos Projetos de Oficinas de Contação de Histórias para o público adulto com conteúdos diversificados: "O Contador de Histórias", "Os Contos Maravilhosos", "Os Contos e seus Encantos: de Basile a Lobato", "Saboreando as Palavras", "Brincando com 1001 Histórias" e "Contar com o Coração".

Estas Oficinas vêm sendo ministradas em bibliotecas, escolas, empresas, instituições, universidades, órgãos do governo federal, como Casa Brasil e espaços culturais, como o Centro Cultural Justiça Federal-RJ.
 
Realizamos, também, sessões de contação de histórias para crianças, jovens e adultos, sendo amplo o nosso repertório de narrativas populares: histórias de bichos, fábulas, lendas, mitos, apólogos, contos de fadas e de narrativas autorais como: contos, crônicas e páginas de romances de renomados escritores brasileiros e estrangeiros.

13 de maio de 2011

Poesia e composição

João Cabral de Melo Neto
           A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.
           Não digo isso somente por me lembrar das dificuldades que podem resultar da falta de documentação sobre o trabalho de composição da grande maioria dos poetas. O ato de poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força - é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir.
          No que diz respeito à outra família de poetas, a dos que encontram a poesia, se não é a humildade ou o pudor que os fazem calar, a verdade é que pouco tem a dizer sobre a composição.  Os poemas neles são de iniciativa da poesia. Brotam, caem, mais do que se compõem. E o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os surpreende, é um ato mínimo, rápido, em que o poeta se apaga para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo para que, na captura, não se derrame de todo esse pássaro fluido.
          A dificuldade maior, porém, não está aí. Está em que, dentro das condições da literatura de hoje, é impossível generalizar  apresentar um juízo de valor. É possível propor um tipo de composição que seja perfeitamente representativo do poema moderno e capaz de contribuir para a realização daquilo que exige modernidade de um poema. A dificuldade que existe neste terreno é da mesma natureza de contradição que existe, hoje em dia, na base de toda atividade crítica.
          Na verdade, a ausência de um conceito de literatura, de um gosto universal, determinados pela necessidade - ou da exigência - dos homens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crítica numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente. Isto é, vieram transformá-la no que ela é hoje, antes de tudo - a atividade incompreensiva por excelência. A crítica que insiste em empregar um padrão de julgamento é incapaz de apreciar mais do que um pequeníssimo setor das obras que se publicam - aqueles em que esses padrões possam ter alguma validade. E a crítica que não se quer submeter a nenhum tem que renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Ter de limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e a sua sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la.

(Primeiros parágrafos de "A inspiração e o trabalho de arte", conferência pronunciada na Biblioteca de São Paulo, 1952. Em: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994)

Em "Psicologia da composição", João Cabral publicou poemas de 1946-1947. O livro tinha como epígrafe a expressão Riguroso horizonte., de Jorge Guillén.

***
O Postigo
                              A Theodemiro Tostes,
                              confrade,
                              colega, amigo
1
Agora aos sessenta e muitos anos,
quarenta e três de estar em livro,
peço licença para fechar,
como fizeste meu postigo.

Não há nisso nada de hostil:
poucos foram tão bem tratados
como o escritor dessas plaquetes
que se escreviam sem mercado.

Também, ao fechar o postigo,
não privo de nada ninguém:
não vejo fila em minha frente,
não o estou fechando contra alguém.

2
O que acontece é que escrever
é ofício dos menos tranquilos:
se pode aprender a escrever,
mas não a escrever certo livro.

Escrever jamais é sabido:
o que se escreve tem caminhos;
escrever é sempre estrear-se
e já não serve o antigo ancinho.

Escrever é sempre o inocente
escrever do primeiro livro.
Quem pode usar da experiência
numa recaída de tifo?

3
Aos sessenta, o pulso é pesado:
faz sentir alarmes de dentro.
Se o queremos forçar demais
eles nos corta o suprimento

de ar, de tudo, e até da coragem
para enfrentar o esforço imenso
de escrever, que entretanto lembra
o de dona bordando um lenço.

Aos sessenta, o escrito adota,
para defender-se, saídas:
ou o mudo medo de escrever
ou o escrever como se mija.

4
Voltaria a abrir o postigo,
não a pedido do mercado,
se escrever não fosse de nervos,
fosse coisa de dicionários.
Viver nervos não é higiene
para quem jé entrado em anos:
quem vive nesse território
só pensa em conquistar os quandos:

o tempo para ele é uma vela
que decerto algum subversivo
acendeu pelas duas pontas,
e se acaba em duplo pavio.

(Poema final de "Agrestes", poemas de 1981-1985)

Mas depois disso ainda vieram muitos poemas. Mais sevilhizados do que civilizados?

Sevilhizar o mundo

Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,

infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.

(De "Andando Sevilha", 1987-1989)
Direção de  Bebeto Abrantes, 2009.

8 de maio de 2011

Interpretação e interpretações de Cervantes

Interpretação
Trechos de Manuel Antonio de Castro em Poética e Poiesis: A questão da interpretação (1998)

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. 
(Guimarães Rosa)
A questão é: o que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se?
Interpretar-se é realizar-se.
O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negócio, na discussão dos preços ou do preço, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posições diversas, de onde o inter-pretium. Inter, quando traduzido por “entre” põe em cena o diálogo, o debate em que há posições diferentes. Indica também o lugar no qual e a partir do qual acontece e se desdobra o diálogo, o embate. O preço aparece como algo mutável, que se define no decorrer e como conseqüência do diálogo. É o valor que está em jogo. O diálogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tensão e relação do “entre” como diálogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimensão de toda interpretação: o barganhar, o especular. A interpretação é, pois, um agir que implica: diálogo, ethos, especulação.
***
Interpretações de Cervantes
Trechos de prólogos de Jorge Luís Borges
Quijote, de Salvador Dali,1966
          1. 
          De bom grado, os platônicos poderiam imaginar que existe no Céu (ou na insondável inteligência de Deus) um livro que registra as delicadas emoções de um homem a quem nada, precisamente nada, ocorre, e outro que vai desfiando uma série infinita de atos impessoais, executados por qualquer um ou por ninguém. (...) O primeiro é a meta da novela psicológica; o outro, da novela de aventuras.
          Na literatura dos homens não há esse rigor. A novela mais turbulenta admite infiltrações psicológicas; a mais sedentária, um fato ou outro. Na terceira noite de As noites, um gênio encarcerado por Soliman numa vasilha de cobre e lançado ao fundo do mar jura enriquecer a quem o liberte, mas passam cem anos, e ele jura que o tornará senhor de todos os tesouros do mundo; e passam outros cem anos, e ele jura que lhe concederá três desejos; mas passam os séculos e, ao cabo, desesperado, ele jura matá-lo. Não seria esta uma genuína invenção do tipo psicológico, a um tempo verossímil e assombrosa? Algo semelhante acontece com o Quixote, que é a primeira e mais íntima das novelas de caracteres e o último e melhor dentre os livros de cavalaria.
          O fato é que em Cervantes, como em Jekyll, houve pelo menos dois homens: o duro veterano, ligeiramente miles gloriosus, leitor e amante de sonhos quiméricos, e o homem compreensivo, indulgente, irônico e sem fel. Idêntica discórdia aflora na violência das coisas narradas e na grata demora do narrador. Lugones salientou que os longos períodos de Cervantes não acertam nunca com o fim; a verdade é que quase não o procuram. Cervantes os deixa escorrer sem pressa, para leitores aos quais não se esforça por interessar e aos quais, não obstante, interessa. As duas vaidades opostas do fausto sonoro e da sentença lacônica estão dele muito distantes. Cervantes não ignora que o chamado estilo oral é uma das muitas vertentes do estilo escrito; seus diálogos levam os nomes de discursos. Os interlocutores não se interrompem e deixam que o o outro conclua. As frases truncadas do realismo de nosso tempo lhe teriam soado como torpeza indigna da arte literária.

          Julgado à luz dos preceitos da retórica, não há estilo mais precário que o de Cervantes. Abunda em repetições, em langores, em hiatos, em erros de construção, em ociosos e prejudiciais epítetos, em mudanças de propósito. A todos estes deslizes os anula ou tempera certo encanto essencial. Há escritores – Chesterton, Quevedo, Virgílio – interalmente suscetíveis de análise; nenhum procedimento, nenhuma felicidade há neles que não possa justificar o retórico. Outros – De Quincey, Shakespeare – abrangem zonas refratárias a qualquer exame. Outros, ainda mais misteriosos, não são analiticamente justificáveis. Não há uma única de suas frases, revisadas, que não seja corrigível; qualquer homem de letras pode apontar erros; as observações são lógicas, o texto original talvez não seja; apesar de assim incriminado, o texto é eficientíssimo, embora não saibamos por quê. A essa categoria de escritores que a simples razão não pode explicar pertence Cervantes.
Adaptação cinematográfica de Dom Quixote, direção de Orson Welles, com Francisco Reiguera e Akim Tamiroff,1960.
          2.
          Destino paradoxal o de Cervantes. Num século e num país de vaidosa artesania retórica, atraiu-o o que havia de essencial no homem, seja como tipo, seja como indivíduo. Depois de morto o reverenciaram como ídolo das pessoas que menos se parecem com ele, os gramáticos. Aldeões assombrados o veneraram porque sabia muitos sinônimos e muitos provérbios. Lugones, por volta de 1904, denunciou “os que, não vendo senão na forma a suprema realização do Quixote, permaneceram a roer a casaca cujas rugosidades escondiam a fortaleza e o sabor”; Groussac, anos depois, condenou a aberração de reunir “o milagre da obra-prima no sal grosso de seu estilo jocoso e, a partir daí, nos disparates de Sancho”; Alberto Gerchunoff, agora, nestas pensativas páginas póstumas, medita sobre o lado íntimo do Quixote. Descobre e examina dois paradoxos: o de Voltaire, “que não estimava excessivamente Miguel de Cervantes” e que, todavia, foi quixotesco ao extremo em sua defesa de Calas e de Sirven, vítimas judiciais; e o de Juan Montalvo, devoto de Cervantes, valente e justo, mas que estranhamente, não viu na história de Alonso Quijano outra coisa que um melancólico museu de palavras arcaicas. Montalvo, anota Gerchunoff, “exercitou-se talentosamente num esporte suntuoso da inteligência, sem aproximar-se de Cervantes.” Logo a seguir, numa oração que mereceria tornar-se famosa, fala das vozes forâneas e populares que Cervantes captou, “com ouvido de músico de rua”.
          Stevenson julgava que se falta encanto a um escritor, falta-lhe tudo.
Trad. Ivan Junqueira, edição de 1985.



3 de maio de 2011

Ensaio Trágico

Mgrilo
                   Observando o quadro intitulado “O importuno” do pintor brasileiro Almeida Jr., podemos contemplar um bom desenho, uma técnica de pintura apreciável e uma idéia insólita.
                   A tela é de 1898, o assunto é a modelo com o pintor no atelier do artista surpreendidos por alguém  que bate na porta, enquanto a moça se veste rapidamente. No quadro, reparamos um cavalete com uma tela de um nu artístico inacabado. O pintor atende à porta segurando a palheta e os pincéis. Um ano depois, o artista foi assassinado no meio da rua com uma  punhalada do marido da modelo.
                   Mas onde o poeta errou? Sabemos que poetas devem ter os pés na lama, os olhos no firmamento e uma arma na mão. Errou com sua arma, a palheta e as cores? Errou na falta de contundência dos pincéis de um Caravaggio? Não. Mas errou quando, recusando todas as propostas que teve para ficar no Rio de Janeiro, voltou para se chafurdar no lodaçal da vida pobre e provinciana dos habitantes da cidade de Itu no final do século XIX.
                   Sonhando com as estrelas o artista solteirão de quarenta e poucos anos não percebeu que a porta de seu estúdio era o acesso ao inferno das feiosas que nunca iriam posar para ele, e da maioria dos homens da cidade que não passavam de mal remunerados comerciários e servidores públicos  que nunca iriam perdoar a boa vida que levava.
                   E foram esses invejosos com línguas ferinas, cartas anônimas e indiretas que induziram uma sanguinária lavagem da honra por parte do ignorante esposo traído.
                   Mais uma vez a vida importuna imita a arte, e nos ensina como é difícil ser poeta em qualquer época.

Corpo, alma e literatura

Ernesto Sábato (em "O escritor e seus fantasmas")
          Já mencionei a preeminência que Nietszche conferiu à ciência. Nessa escolha sintetiza-se a revolução antropocêntrica de nosso tempo. O centro não será mais o objeto nem o sujeito transcendental, mas a pessoa concreta, com uma nova consciência do corpo que a sustenta.
          O vitalismo de Nietzsche culmina na fenomenologia existencial, porque supera o mero biologismo sem renunciar à integridade concreta do ser humano. Para Heidegger, com efeito, ser homem é ser no mundo, e isso é possível graças ao corpo; o corpo é que nos individualiza, que nos dá uma perspectiva do mundo, do "eu e aqui". Não mais o observador imparcial e ubíquo da ciência ou da literatura objetivista, mas este eu concreto, encarnado em um corpo. Neste corpo que me converte em "um ser para a morte". Daí a importância metafísica do corpo.
          Essa concretude da nova filosofia sempre caracterizou a literatura, que nunca deixou de ser antropocêntrica, embora muitos de seus teóricos paradoxalmente assim quisessem. Essa concretude restitui ao homem sua autêntica condição trágica. A existência é trágica devido a sua dualidade radical, por pertencer ao mesmo tempo ao reino da natureza e ao reino do espírito: enquanto corpo, somos natureza e, em consequência, perecíeis e relativos; enquanto espírito, participamos do absoluto e da eternidade. A alma, puxada para cima por nossa ânsia de eternidade e condenada à morte por sua encarnação, parece ser a verdadeira representante da condição humana e a autêntica sede de nossa infelicidade. Poderíamos ser felizes como animal ou como espírito puro, mas não como seres humanos.
***
Peter Weller, na adaptação de "O tunel", 1987. Para a coleção completa de capas e adaptações, clique aqui.
 Sentí que una caverna negra se iba agrandando dentro de mi cuerpo.  (El tunel)
***
         
A voz do escritor: a métrica no corpo e na alma
Para falar sobre a voz do escritor, Alvarez passa pela escrita do corpo. Isto já foi dito: "escreve com sangue" é uma imagem que se tornou lugar-comum. Mas o que o autor traz está mais para o aparelho respiratório do que o circulatório. O coração, isolado dos pulmões, faz o órgão parecer menos trabalhador. A respiração é uma função involuntária e ao mesmo tempo controlável. 

No texto acima, Ernesto Sábato fala de alma, sugerindo que, no fazer literário o trabalho implica num enfrentamento entre o ímpeto de tornar a arte uma atividade meramente corpórea, impensada, mesmo que febril e árdua, e a crença de que a Literatura possa elevar o seu criador para além do comum, tornando-o espiritualmente mais próximo ao infinito. Na escrita com alma, coexistem dor e comedimento. 

Nesse sentido, a citação de I.A.Richards sobre o papel da métrica como um recurso para imprimir ritmo na poesia é bem esclarecedora:

Não é algo na estimulação, mas na nossa reação. A métrica acrescenta algo a todas as expectativas, dirigidas para fins variados, que concebem o ritmo como um padrão temporal definido, e seu efeito não é devido à nossa percepção de um padrão que nos é externo, mas a que nos tornemos, nós mesmos, padronizados. Com cada pulsação da métrica, uma onda antecipa dentro de nós voltas e reviravoltas, instalando, como ocorre, reverberações extraordinariamente conjugadas. Jamais entenderemos a métrica enquanto perguntarmos 'Por que o padrão temporal nos excita?' e deixarmos de perceber que o próprio padrão é uma vasta agitação cíclica que se espalha por todo o corpo, uma onda de excitação extravasando pelos canais da mente.