28 de julho de 2011

Ateliê de Histórias d'Os Tapetes Contadores (Recado)

Conto: desenvolvimento de um teorema / variação de uma estrutura

Extraído de "A oficina do escritor", de Nelson de Oliveira
          Conto vem de contar (do latim computare: fazer conta, calcular, computar), verbo com inúmeros significados, dentre os quais narrar, referir, relatar. Há os que acreditam que todo conto deve apresentar o rigor formal de um teorema dividido em três partes — exposição, desenvolvimento e desenlace — e há os que acreditam que o conto-teorema é apenas uma das formas possíveis do conto. Talvez a menos desejável nos dias atuais.
          Edgar Allan Poe baseava sua teoria do conto na relação entre a extensão da narrativa e o efeito (inquietação, medo, dúvida, encantamento, excitação, perplexidade ou qualquer outro) que o autor deseja que a fruição da narrativa provoque no leitor. O conto-teorema encontrou em Poe seu melhor teórico e defensor. Para o escritor norte-americano (anos mais tarde Anton Tchekhov também adotará esse princípio) o conto só produzirá esse efeito único e fulminante, essa impressão total, se for apreendido de uma só assentada e mantiver o leitor sempre em suspense. Por isso, para exercer o domínio sobre o leitor, o conto não deve exigir mais do que duas horas de leitura atenta. Poe estendeu também ao poema sua filosofia da composição baseada no perfeito e explosivo casamento da extensão do textos com o efeito literário pretendido.
          Vladimir Propp, por outro lado, não se preocupava com a extensão da narrativa. Ele alicerçou sua rigorosa definição do conto folclórico russo, intitulada Morfologia do Conto Maravilhoso (1928), na análise cuidadosa das diferentes ações das personagens. A descrição estruturalista de Propp baseia-se nas trinta e uma ações constantes (ele as chama de funções) que as diferentes categorias de personagens (sete no total) podem executar ao longo da narrativa. Apesar de considerar apenas o conto popular, anedótico, de estrutura simples — manifestação da inventividade do povo —, o sistema de Propp foi posteriormente ampliado pelos seus seguidores europeus para abarcar também o conto literário, muito mais complexo. Porém o altíssimo número de funções nos contos modernos e nos contemporâneos, o desdobramento do caos em tantas ações graúdas e miúdas, em tantas categorias de personagens e de narrador, tudo isso inviabiliza a classificação segundo determinados padrões estruturais.
          Ricardo Piglia, incrementando a teoria do iceberg de Ernest Hemingway (o contista talentoso é sempre econômico: seu narrador revela muito pouco, deixando os fatos importantes apenas subentendidos), nas suas duas teses sobre o conto também mantém o foco no enredo: para ele todo conto sempre narra duas histórias, uma história visível (a ponta do iceberg) e uma secreta (o imenso corpo submerso do iceberg) narrada de forma elíptica e fragmentária. Para Piglia, o talento do contista está em entrelaçar ambas as histórias, de maneira que só no desenlace seja revelada, de modo surpreendente, a história que se construiu abaixo da superfície em que a primeira veio se desenrolando. Ainda estamos no território do conto-teorema, porém outras possibilidades começaram a ser esboçadas a partir desses axiomas.
***
Tchékhov recomendava que, ao terminar de escrever uma história curta, se suprimisse o começo e o fim, reforçando a impressão de que a prosa, perfeita em sua brevidade, só contivesse o miolo.

Estória alegre
          Doze horas de um claro dia de inverno... Neva muito, está um frio de rachar, Nadia dá-me o braço, os caracóis de suas têmporas e o fino pelo de seus lábios estão cobertos de um gelo prateado. Estamos no alto do outeiro. De nosso pés, até lá, em baixo, estende-se em declive regular, no qual o sol se reflete, como em um espelho. Perto de nós, um pequeno trenó, guarnecido de lã vermelha viva.
          Vamos escorregar, Nadia digo, suplicante. Uma só vez! Garanto-lhe que chegaremos sãos e salvos.
          Nadia, porém, tem medo. Todo o espaço que vai de suas pequenas botas até a base do monte de gelo parece-lhe um precipício apavorante, de uma incomensurável profundidade. Desfalece, perde o fôlego, quando olha para baixo ou quando apenas lhe proponho sentar-se no trenó... será um risco, ela poderá cair no abismo! Morrerá, ou perderá a razão.
          Peço-lhe... Não deve ter medo insisto , não compreende que é pusilanimidade, pura covardia?
          Ela acaba por ceder e eu percebo, em seu rosto, que teme perder a vida. Faço-a sentar, lívida, tremula, no trenó: enlaço-a e precipitamo-nos no abismo.
          O trenozinho voa como uma bala. O ar que cortamos fustiga-nos o rosto, uiva, assobia-nos aos ouvidos, faz arder nossa pele, belisca-nos cruelmente, procura arrancar-nos a cabeça do pescoço. A velocidade do vento nos corta a respiração. Dir-se-ia que o diabo em pessoa nos agarrara e, urrando, nos arrastava ao inferno. Em torno, os objetos fundem-se em uma longa faixa que foge, vertiginosamente. Mais um instante e estaremos mortos.
          Amo-a, Nadia – digo, baixinho.
          O trenó começa a diminuir sua marcha, o uivo do vento e o rangido dos patins estão menos assustadores, a respiração não mais nos falta e eis-nos finalmente lá embaixo. Nadia, mais morta do que viva, lívida, mal respira... Ajudo-a a levantar-se.
          Por nada no mundo recomeçaria diz-me fitando com seus grandes olhos, cheios de medo. Por nada no mundo! Quase morri!
          Ao cabo de um instante, recupera-se e olha-me interrogativamente: terei sido eu quem pronunciou aquelas palavras, ou ela imaginou tê-las escutado, no turbilhão? E eu, de pé, diante dela, fumo e examino atentamente minhas luvas.
          Nadia toma-me o braço e caminhamos um pouco, em torno do monte de neve. Visivelmente, o enigma não a deixa repousar. As palavras teriam sido pronunciadas por mim, ou não? Sim, ou não? Sim, ou não? É uma questão de amor próprio, de honra, de vida, de felicidade, uma questão muito grave, a mais grave do mundo. Ela me atira olhares impacientes, tristes, olhares perscrutadores, responde-me vagamente, espera que eu fale. Oh! Que jogo expressivo, nesse palminho de cara! Que jogo expressivo! Vejo-a lutar contra si própria, sinto sua necessidade de falar, de indagar... mas sinto, também, que não encontra as palavras, que está embaraçada, que a felicidade a inibe...
          Sabe...? diz-me, sem me olhar.
          Quê? pergunto.
          Diga... que acha, fazermos uma outra descida?
          Subimos ao alto do monte, pela escada. Novamente, faço-a sentar-se no trenozinho, lívida, trêmula; e mais uma vez nos entregamos ao remoinho assustador, mais uma vez, em pleno ruído, em plena corrida, digo, baixinho:
          Amo-a, Nadia.
          E o enigma continua enigma. Nadia, silenciosa, sonha... Reconduzo-a à casa, ela tenta retardar o andar, arrasta os passos e espera, sempre. Mas eu não vou pronunciar as palavras. Vejo que sofre, que faz enorme esforço para não dizer: “Não pode ter sido o vento... E eu não quero que tenha sido o vento.”
          No dia seguinte recebo este bilhete: “Se vai passear de trenó, hoje, venha a buscar-me. N.”  E desde então vou, diariamente, passear de trenó, com ela, e, a cada descida, repito as palavras de sempre:
          Amo-a, Nadia
          Logo ela se acostumou a essa frase, assim como nos acostumamos ao vinho ou à morfina. Já não pode viver sem ela. É verdade que a descida em trenó a assusta tanto quanto antes, mas agora o medo e o perigo acrescentam um encanto particular às palavras de amor, às palavras que, como antes, constituem um enigma e enlanguescem sua alma. As suspeitas caem sobre os mesmos personagens:  o vento e eu. Qual dos dois confessa seu amor, ela não sabe. Aparentemente, ela já não se importa de onde venha a confissão: que importância tem o frasco, face à embriaguez do perfume?
          Certa vez, ao meio-dia, dirijo-me sozinho ao trenó. No meio da multidão, vejo Nadia aproximar-se do outeiro e procurar-me com os olhos. Depois, sobe timidamente a escada... É terrível descer sozinha. Como é terrível! Está branca como a neve, treme, tem-se a impressão de que está a caminho do suplício... mas caminha olhando à frente, resoluta. Sem dúvida, decidiu-se a fazer uma experiência: ouvirá as doces e maravilhosas palavras sem que eu esteja? Vejo-a sentar-se no trenó, lívida, boca entreaberta de medo, fechar os olhos e lançar-se, depois de atirar um adeus para sempre à terra... Os patins rangem... Estará ouvindo as palavras? Não sei... Vejo-a, depois, sair do trenó esgotada, sem forças. E leio em seu rosto que continua sem saber se ouviu, ou não, alguma coisa. O pavor da descida tirou-lhe a faculdade de ouvir, de distinguir os sons, de compreender...
          E veio março. E a primavera. O sol torna-se mais acariciante, nosso outeiro de gelo escurece, perde seu brilho e termina por fundir-se. Adeus, passeios de trenó! Não mais onde a pobre Nadia possa ouvir palavras de amor, não mais alguém para pronunciá-las, pois já não há mais vento e eu vou partir para São Petersburgo, por muito tempo, talvez para sempre...
          Dois dias antes de minha partida, estava eu sentado em meu jardim, que uma alta paliçada eriçada devido a pontas, separava da casa de Nadia. Fazia ainda bastante frio, ainda havia neve sob o estrume, as árvores dormiam ainda, mas tudo isso anunciava já a primavera; e os corvos que se instalavam para dormir crocitavam ruidosamente. Aproximei-me da paliçada e olhei longamente por uma fenda. Vi Nadia parecer no alto da escadaria e erguer para o céu um olhar triste, dolorido... O vento primaveril, como um chicote, fustigava seu rosto pálido e abatido... lembrava-lhe, talvez, o vento que uivava a nossos ouvidos, no outeiro, quando ouviu as palavras de amor. Seu rosto assumiu uma expressão triste, e uma lágrima deslizou sobre ele. A pobre criança estendeu os braços, como se suplicasse à nortada que lhe trouxesse essas palavras, uma vez mais. Então, aproveitando uma lufada, murmurei:
          Amo-a, Nadia.
          Deus, o que lhe estaria acontecendo? Ela soltou um grito, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Estendeu os braços para o vento, alegre, feliz, arrebatada! Eu fui arrumar minha mala.
          Isso foi há muito tempo. Nadia, agora, está casada: casou-se , ou casaram-na, pouco importa, com o secretário da Câmara da Nobreza e tem três filhos. Jamais esqueceu o tempo em que íamos andar de trenó, quando o vento levava até ela palavras de amor: Amo-a, Nadia. É, no momento, a mais feliz recordação, a mais tocante, a mais bela de sua vida...
          E eu, agora, mais amadurecido, não compreendo por que dizia tais palavras, por que me divertia com aquela brincadeira.
Contos de Tchékhov. Trad. Maria Jacintha. São Paulo: CEDIBRA, 1975.
Fotograma de Cidadão Kane (1941), dirigido por Orson Welles, uma biografia não linear de um magnata da imprensa americana, narrada sob vários pontos de vista. Sua última palavra: Rosebud.
*** 
Será possível aproximar o conto maravilhoso e o moderno? Haverá algum traço remanescente dos personagens tradicionais ou alguma de suas funções na "Estória alegre" de Anton Tchékhov?  Confira abaixo a síntese da morfologia do conto maravilhoso descrita por Vladimir Propp.

I.    Seqüência introdutória

1.    Membro da família deixa a família – herói é introduzido
2.    Interdição – não faça “x”
3.    Interdição é violada – herói faz “x” de qualquer maneira
4.    Vilão – reconhecimento do herói
5.    Vilão consegue informação sobre herói
6.    Vilão tenta derrotar herói com trapaça
7.    Herói submete-se à trapaça – cumplicidade

II.    Corpo da história
8. Vilão causa dano ou injúria através de vilania; vilania faz uma vítima, herói ou objeto mágico desejado, que precisa ser recuperada.
8a. Membro da família do herói precisa algo, ou quer algo. QUALQUER UM DESSES CONSTITUI UMA FALTA.
9. Falta se faz saber pelo herói
10. Herói concorda em fazer ação contrária
11. Herói deixa o lar

III.    Sequência do doador (agente mágico obtido)
12. Herói é testado/questionado
13. Herói reage
14. Herói recebe um objeto/agente mágico que lhe ajuda na missão
15. Transferência ao lugar onde a falta é sentida
16. Combate com vilão
17. Herói é marcado
18. Vilão é derrotado
19. Falta é liquidada – objeto da missão é obtido pelo herói (o conto frequentemente acaba aqui, mas opde continuar para a 4a esfera de ação)

IV.    Retorno do herói
20. Herói toma o caminho de volta
21. Herói é perseguido
22. Resgatado de perseguição (conto muitas vezes termina aqui, mas pode continuar)
23. Herói chega em casa e não é reconhecido
24. Falso herói apresenta reivindicações ao verdadeiro herói
25. Tarefa dificultosa se dá
26. Tarefa é resolvida
27. Verdadeiro herói é reconhecido
28. Falso herói é desmacarado
29. Epifania do novo herói – nova aparência/transfirguração
30. Vilão é punido
31. Casamento e papel do verdadeiro herói

Dramatis Personae
1. Herói (salvador ou vítima)
2. Vilão 
3. Doador (de quem o herói consegue algum objeto mágico)
4. Auxiliar Mágico (personagem que ajuda o herói em sua missão)
5. Despachante (personagem que faz a falta ser conhecida)
6. Falso herói (personagem que rouba os méritos pelas ações do herói)
7. Príncipe/princesa (pessoa com quem o herói/a heroína se casa)
8. Vítima (pessoa ferida pelo vilão, caso o herói não tenha sido o vitimado)
Para dar uma olhadinha no livro todo, clique aqui.

17 de julho de 2011

Toda obra literária pertence a um gênero?

Terão todas as obras relações literárias suficientemente estreitas com outras obras para que o seu estudo seja auxiliado pelo estudo dessas outras? Num dos capítulos do seu livro "Teoria da literatura", Wellek e Warren discorrem sobre gêneros literários. Abaixo, algumas de suas colocações:

Diferenças na fruição das obras clássicas e modernas induzem à revisão, se não abolição das três espécies [lírica, épica e drama]. Um conto pode aspirar à objetividade da peça, à pureza do diálogo. Um romance mistura narração e diálogo, sendo então uma forma composta.
*
Gêneros não são fixos. Com a inclusão de novas obras, as categorias deslocam-se (ver o efeito na teoria do romance de um Tristam Shandy ou de um Ulisses).
*
A maior parte dos gêneros remonta aos clássicos gregos e procura atender aos seguintes tópicos:
- pureza, com a provocação de um prazer peculiar, não acidental;
- hierarquia, obtida por um cálculo que dosa a mistura do social, do moral, do estético, do hedonístico e do tradicional;
- duração, medida pelas dimensões da obra; e
- acréscimo, as novidades inseridas dentro das formas tradicionais, seja pela mistura, seja pela supressão.
*
Gênero é um grupamento baseado na forma
exterior (o metro e a estrutura) e na
interior (atitude, tom, finalidade).
A partir do século XVIII, os esquemas estruturais repetitivos foram desaparecendo; com o alargamento do público, diversificaram-se os gêneros; com a velocidade da difusão, as transições se deram mais rapidamente. A diversificação começou a acontecer no interior de um gênero: o gênero policial no romance, por exemplo. À classificação feita com base na forma, somou-se a classificação baseada em assuntos.
Na teoria clássica, advoga-se a pureza dos gêneros (unidade de tom, simplicidade de estilo, concentração numa emoção, na invocação do que é próprio de cada arte, na distinção dos personagens adequados de cada gênero, no decoro, na compartimentação dos estilos e dicções em elevado, médio e baixo).
Até hoje ecoa uma certa distinção das dicções:
épica e trágica, para a elite intelectual; 
comédia, para a burguesia; farsa, para o povo.
Houve um tempo em que, ao invés de ver numa catedral gótica uma "forma", via-se exatamente uma falta de forma. Isso sem falar nas diferenças culturais. Todas as culturas têm seus gêneros: a chinesa, a árabe e também a literatura medieval...
A moderna teoria dos gêneros é descritiva e não prescritiva.
Admite misturas, construção por acréscimo ou redução. 
Interessa-se em descobrir diferentes processos e objetivos literários.
O prazer de uma obra literária compõe-se de um misto de sensações
de novidade e reconhecimento.
A repetição de fórmulas é monótona;
a forma inteiramente nova, ininteligível.
Ou seja:  o gênero é constituído por um acervo de processos técnicos que o escritor pode lançar mão
e que o leitor já compreende.
Há obras que chamam atenção para o desenvolvimento interno da literatura - a genética literária (no Brasil, o exemplo mais recente é o do escritor Sergio Sant'Anna).
Rebarbarização é renovação:
o conto maravilhoso alimentou grandes obras;
a literatura pop se transformou em séria.
Andre Jolles diz que as formas literárias complexas provêm das mais simples (lendas, sagas, provérbios, rimas etc.). No romance, encontra-se o diário, o livro de viagens, as memórias, o ensaio.

15 de julho de 2011

Prece do sem-gênero

mil e uma noites mal dormidas
geram mil textos mal escritos ou
a maravilha de um conjunto torto?

um silêncio danado reina em volta.

somos os sem-gênero, rogai por nós.
ó caucasianos, pelos bagos de irlanda
carvalhos da pérsia, ó poetas paulistas
rogai por nós, os sem iluminuras.

mil e uma noites mal dormidas
geram milhões de canções de ninar
a furar o colo da santa mãe literária.

por todas as xícaras de chá,
ó mentes cabrais, rogai por nós.
barto-li

10 de julho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (6)

Zulmira e Maria
Arlette Santos
          Maria. Não é assim que as pessoas costumam se referir às domésticas, quando não querem se preocupar com seus nomes? Pois é, Maria iniciara seu dia ansiosa. Morando lá pros lados de Xerém – melhor dizendo, onde Judas perdeu as botas – acordou cedo, antes das cinco da matina, preparou a mamadeira do Zezinho e, ao entregá-la à criança, notou que ela estava com uma pontinha de febre. Se acordasse o Leleo pedindo que observasse o garoto e, se necessário o levasse à UPA, na certa ouviria uma série de desaforos. Melhor entregar pra Jesus: Ele olharia por seu filhote. Para completar, a patroa iria a uma festa à noite, e teria que repassar suas roupas.
          Completara quinze anos no emprego. Não podia se queixar: o pagamento era pouco acima do salário mínimo, recebia o auxílio-transporte, férias e demais direitos trabalhistas. Às vezes, quando se atrasava um pouco devido às dificuldades de transporte por conta da falta de ônibus, a viagem de metrô – afinal, de Xerém a Copacabana não era mole, não – quando se atrasava, Dona Zulmira não falava nada. Mas a maneira dela olhar o relógio incomodava. Embalada por esses pensamentos, chegou ao trabalho. Felizmente, sem atraso.
          Iniciou seus afazeres como sempre. Arruma aqui e ali, coloca jornais, revistas e objetos em seus devidos lugares. Por que as pessoas que têm empregadas costumam achar normal não dar nenhuma colaboração à boa arrumação dos espaços que utilizam? A patroa já saíra para o trabalho e deixara um bilhete reforçando o pedido para passar sua roupa, e que tivesse cuidado especial com o xale de seda chinesa – relíquia de família que daria destaque especial à sua roupa.
          Estava tão acostumada com suas tarefas que se mantinha calma. Qualidade sempre observada pela patroa. Depois de arrumar a cozinha, foi passar as roupas. De vez em quando, lembrava-se do Zezinho. Como estaria? Foi quando o telefone tocou. Desligou o ferro e foi atender. Ouviu quando a porta do quarto bateu. Ao voltar, percebeu – uma rajada de vento deslocara o xale para o lado do ferro. E fez um rombo que não dava para disfarçar. Ficou desesperada. Como justificar? Dobrou-o e foi tomar banho. Poderia sair como costumava fazer, mas teria que se explicar com a patroa. Resolveu aguardá-la.  Êta, vida complicada!
          Estava acabando de se arrumar quando ouviu a voz alterada da patroa. Ela chegara, fora imediatamente ver sua roupa e dera com a tragédia.
          – Maria, não há desculpa para o que você fez. Volte no dia 30, traga seus documentos e acertaremos suas contas.
          Ambas choraram. E lá se foi a Maria repetindo em sentido contrário seu trajeto diário. Rememorou o longo tempo que servira a Dona Zulmira. A gente acaba se acomodando, aí surgem os imprevistos. Ma de repente, sentiu uma grande calma. Afinal, sabia que tinha capacidade e arranjaria outro trabalho. Melhor é não esquentar a cabeça...
          Isso aconteceu com Maria. E Dona Zulmira, como estava? Passado o desabafo, cabeça fria, começou a refletir: será que exagerei? Encontrarei quem substitua Maria a contento? Afinal ela me foi útil durante tantos anos... Quando suas colegas comentavam as agruras por que passavam, trocando toda hora de empregada, sentia-se feliz. Esses problemas não existiam para ela.
          No dia seguinte, ao ir à área de serviço apanhar uma vassoura, observou que o varal, que estava com a corda arrebentada, fora restaurado. Coisas da Maria. Habilidosa, consertava tomadas, trocava lâmpadas... Iria sentir muito sua falta.  Tenho que rever minha decisão.
          Chegou o dia 30 e Maria chegou para acertar as contas. Tinha férias vencidas. Lá estavam as duas, emocionadas e tensas. Dona Zulmira tomou a iniciativa:
          – Maria, vamos esquecer o que houve. Você fica, e tudo volta a ser como era. Peço que dê mais atenção às suas tarefas.
          Para surpresa de Dona Zulmira, Maria, de cabeça baixa, porém com firmeza, respondeu:
          – Não é bem assim. Passei dias difíceis, dormindo mal pensando nos dias que enfrentaria e como a vida não é fácil saí à procura de um novo trabalho. Tive sorte. Alguém que a senhora até conhece me fez uma proposta. O salário é um pouco melhor e não trabalharei aos sábados. Mas mudança de emprego na minha idade assusta um pouco. Preciso de um tempo pra pensar. Entro de férias e dentro de alguns dias dou minha resposta.
***
Filme de Bruno Barreto de 1987, baseado nas obras de Clarice Lispector.
 Carla de Souza Santana escreveu um trabalho que deve ser interessante (veja o resumo, aqui). Chama-se "Sabedoria e humildade: um estudo sobre a presença das empregadas domésticas nas crônicas de Clarice Lispector". Concordo quando ela diz que, em suas crônicas, a autora amplia a compreensão acerca das empregadas, ultrapassando os estereótipos convencionais.
Abaixo um exemplo:

Conversa puxa conversa à-toa
Clarice Lispector
          Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
          Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa -  continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em “milhares de anos à nossa frente”, deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
          Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopéia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um “eu”. Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de “eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um “eu”.
Em: A descoberta do mundo, escrita originalmente para o “Jornal do Brasil” (16 de maio de 1970)

Frases retiradas de A paixão segundo GH
           Na minha casa fresca, aconchegada e úmida, a criada sem me avisar abrira um vazio seco.
*
          A lembrança da empregada ausente me coagia. Quis lembrar-me de seu rosto, e admirada não consegui - de tal modo ela acabara de me excluir de minha própria casa, como se me tivesse fechado a porta e me tivesse deixado remota em relação à minha moradia. A lembrança de sua cara fugia-me, devia ser um lapso temporário.
          Mas seu nome - é claro, é claro, lembrei-me finalmente: Janair. E, olhando o desenho hierático, de repente me ocorria que Janair me odiara. Eu olhava as figuras de homem e mulher que mantinham expostas e abertas as palmas das mãos vigorosas, e que ali pareciam ter sido deixadas por Janair como mensagem bruta para quando eu abrisse a porta.
*
          E havia também o guarda-roupa estreito: era de uma porta só, e da altura de uma pessoa, de minha altura. A madeira continuamente ressecada pelo sol abria-se em gretas e farpas. Aquela Janair nunca, pois, havia fechado a janela? Aproveitara mais do que eu da vista que se tinha da cobertura. O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para entrar nele era como se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de minha doce e isenta ironia: era uma violentação das minhas aspas, das aspas que faziam de mim uma citação de mim. O quarto era o retrato de um estômago vazio.

1 de julho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (5)

SUA VEZ
Renata Figueiredo
           Sentada num banco duro de madeira no posto do INSS, no canto, no final de um grande salão, ela confere os vários guichês à sua frente e, no alto, um painel em que se lê o número 125.  Olha para a senha amassadinha em sua mão. Seu número é o 250. Está na metade do caminho, longa espera.
          Mas ela suaviza o tempo ouvindo seu ipod e lendo um livro, uma linda história de amor, presenteados pela sua antiga patroa. Era agradecida por ter tido a sorte de conviver durante 23 anos com uma família que prezava muito a educação e a cultura. E por ter sido sempre tratada com muito respeito, carinho e, ela até podia dizer, com amor.
          Totalmente entretida em sua leitura, nem percebe quando apita no painel o seu número. Uma moça ao seu lado lhe cutuca: guichê 7.
          Agitada  se atola, mexendo na bolsa à procura dos documentos. Incomoda-se por não ter ficado atenta à sua vez, e fica preocupada em atrasar mais ainda as outras pessoas que estão, como ela, à espera. Acha e  entrega todos os seus documentos à atendente. Seu objetivo é solicitar auxílio-doença, por ter desenvolvido uma diabetes emocional decorrente do seu alto nível de estresse após a demissão.

          Uma frustração enorme depois de anos de dedicação, trabalho, trocas, cuidados com uma família que, pelo simples fato de – num triste dia – ela ter tido a infelicidade de se distrair e queimar a pashimina francesa da patroa, lhe despediu. Do ponto de vista deles, esse motivo era suficiente para destruir tudo que tinha sido construído. Foi até perdoada, disseram, mas optaram por dispensar seus serviços. Não teve nem tempo, nem oportunidade de tentar reverter a situação. Sua ex-patroa foi bem enfática. Não relevou. Sabia que ela estava passando por problemas sérios de saúde em sua família e que não era seu costume errar em serviço, pelo contrário, sabia que era uma ótima profissional.
          Analisando com calma depois de quase um mês longe daquela casa, percebeu que na verdade sua patroa já devia achar que a relação estava desgastada e que o acidente tinha servido como uma desculpa para que ela pudesse se livrar da secretária, como era chamada, nunca de empregada.  Foi o basta que faltava.
          Nada mais a fazer, apenas esperar, acreditar que dias melhores viriam e que, depois de recuperada da saúde, voltaria a trabalhar no que sempre havia desejado. Quem sabe realizar seu sonho de conseguir trabalhar numa escola? Mas nesse momento tinha que se cuidar para que ficasse cem por cento para sua nova empreitada.

          Ela sonha acordada quando, para sua surpresa, a atendente lhe informa que durante os últimos três anos de serviços, seu INSS não tinha sido pago.
          Naquele momento seu mundo cai. E agora? O que vou fazer? Terei a mesma atitude imediatista e impulsiva da minha ex-patroa e ligo já soltando os cachorros nela? Ou serei sensata para ligar e, conversando, tentar resolver esse problema, da melhor forma possível?
***
"O diário de uma criada de quarto", romance de Octave Mirbeau, publicado em 1900, teve edição em Portugal, mas parece que no Brasil não. Foi adaptado para o cinema por Renoir em 1946, com Paulette Godard; e por Buñuel em 1964, com Jeanne Moreau. A história gira em torno de Célestine que olha o mundo pelo buraco da fechadura, sem deixar escapar as derrapagens morais de seus patrões. Mas, como bem disse Nathalie, em seu blog Page a page, o livro não cai na armadilha de opor simploriamente os burgueses malvados aos gentis empregados explorados pois uns ou outros podem ser fracos ou fortes. Uma ótima dica, para quem quer treinar seu francês é baixar o audiolivro. É de graça pois já caiu em domínio público. E o site Literature audio.com tem muitas outras opções.