1 de julho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (5)

SUA VEZ
Renata Figueiredo
           Sentada num banco duro de madeira no posto do INSS, no canto, no final de um grande salão, ela confere os vários guichês à sua frente e, no alto, um painel em que se lê o número 125.  Olha para a senha amassadinha em sua mão. Seu número é o 250. Está na metade do caminho, longa espera.
          Mas ela suaviza o tempo ouvindo seu ipod e lendo um livro, uma linda história de amor, presenteados pela sua antiga patroa. Era agradecida por ter tido a sorte de conviver durante 23 anos com uma família que prezava muito a educação e a cultura. E por ter sido sempre tratada com muito respeito, carinho e, ela até podia dizer, com amor.
          Totalmente entretida em sua leitura, nem percebe quando apita no painel o seu número. Uma moça ao seu lado lhe cutuca: guichê 7.
          Agitada  se atola, mexendo na bolsa à procura dos documentos. Incomoda-se por não ter ficado atenta à sua vez, e fica preocupada em atrasar mais ainda as outras pessoas que estão, como ela, à espera. Acha e  entrega todos os seus documentos à atendente. Seu objetivo é solicitar auxílio-doença, por ter desenvolvido uma diabetes emocional decorrente do seu alto nível de estresse após a demissão.

          Uma frustração enorme depois de anos de dedicação, trabalho, trocas, cuidados com uma família que, pelo simples fato de – num triste dia – ela ter tido a infelicidade de se distrair e queimar a pashimina francesa da patroa, lhe despediu. Do ponto de vista deles, esse motivo era suficiente para destruir tudo que tinha sido construído. Foi até perdoada, disseram, mas optaram por dispensar seus serviços. Não teve nem tempo, nem oportunidade de tentar reverter a situação. Sua ex-patroa foi bem enfática. Não relevou. Sabia que ela estava passando por problemas sérios de saúde em sua família e que não era seu costume errar em serviço, pelo contrário, sabia que era uma ótima profissional.
          Analisando com calma depois de quase um mês longe daquela casa, percebeu que na verdade sua patroa já devia achar que a relação estava desgastada e que o acidente tinha servido como uma desculpa para que ela pudesse se livrar da secretária, como era chamada, nunca de empregada.  Foi o basta que faltava.
          Nada mais a fazer, apenas esperar, acreditar que dias melhores viriam e que, depois de recuperada da saúde, voltaria a trabalhar no que sempre havia desejado. Quem sabe realizar seu sonho de conseguir trabalhar numa escola? Mas nesse momento tinha que se cuidar para que ficasse cem por cento para sua nova empreitada.

          Ela sonha acordada quando, para sua surpresa, a atendente lhe informa que durante os últimos três anos de serviços, seu INSS não tinha sido pago.
          Naquele momento seu mundo cai. E agora? O que vou fazer? Terei a mesma atitude imediatista e impulsiva da minha ex-patroa e ligo já soltando os cachorros nela? Ou serei sensata para ligar e, conversando, tentar resolver esse problema, da melhor forma possível?
***
"O diário de uma criada de quarto", romance de Octave Mirbeau, publicado em 1900, teve edição em Portugal, mas parece que no Brasil não. Foi adaptado para o cinema por Renoir em 1946, com Paulette Godard; e por Buñuel em 1964, com Jeanne Moreau. A história gira em torno de Célestine que olha o mundo pelo buraco da fechadura, sem deixar escapar as derrapagens morais de seus patrões. Mas, como bem disse Nathalie, em seu blog Page a page, o livro não cai na armadilha de opor simploriamente os burgueses malvados aos gentis empregados explorados pois uns ou outros podem ser fracos ou fortes. Uma ótima dica, para quem quer treinar seu francês é baixar o audiolivro. É de graça pois já caiu em domínio público. E o site Literature audio.com tem muitas outras opções. 

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