EPÍSTOLA
Mgrilo
Mãe,
Sei que você vai achar estranho eu te escrever nesta sexta-feira, em vez de telefonar como sempre faço. E que você injustamente se intitula “ mãe das sextas”, apelido cretino que sua única filha inventou para me acusar e ganhar um pouco mais de amor. Mais do que eu ganho, sejamos claros. Ela diz que eu nunca vou à sua casa como se você não existisse. O que é uma mentira, pois tive por aí no Natal, só não pude ir na Páscoa e no dia das Mães. E ela me disse no telefone que só vou na sua casa por que você sempre faz bife à milanesa para mim, e que você ficou magoada por que eu disse que para esses casos prefiro o vício do que o amor. Outra mentira daquela bostinha da minha irmã que não entendeu nada do que eu disse para ela. E quando for implantado o Islã em nossa família, se por lá eles cortam a mão de quem rouba, por aqui vai ser cortada a língua de quem fala muito. Mas eu soube da Jandiara, a sua velha faxineira que faleceu. Acho que você sentiu bastante. Não tenho muitas lembranças dela, só de uma confusão de alguns anos atrás quando ela queimou seu xale indiano no dia do jantar no casarão da Dona Beth. Depois da berraria você ficou resmungando durante dias. Mas me lembro pouco, por que naquela época estava mais preocupado com a minha juventude. Espero que você a tenha perdoado, por que sempre achei ela uma boa pessoa. Muito trabalhadora. Você ficava fascinada com o jeito dela consertar o ferro elétrico e o varal de roupas. Ela conseguiu criar um filho com dificuldade e isso é bastante coisa. Mas afinal o que foi feito do xale esburacado? Virou lenço de cabelo da minha ex-irmã?
do seu filho com amor
***
VARAL INSPIRADO
Gilda Niemeyer
— Alô, é Dona Dora?
— Sim, sou eu, quem fala?
— É a Dalva, amiga da Rosa.
— Hum, responde Dora, angustiada e sentindo que chegava mais um problema.
— A senhora se lembra que eu trabalhei na sua casa de Ipanema, substituindo a Rosa? Deve lembrar que um dia resolvi fazer um bolo e, pra surpresa de todos, o bolo solou?
— Lembro bem, responde Dora, antecipando o que viria, disfarçando a ansiedade que tomava conta dela.
— A Rosa está muito mal desde que foi despedida, só faz chorar! Estamos todos preocupados com a situação dela. Ela gostava tanto da casa, da família e se dedicou tanto!...
Lá vem bomba!, pensa Dora, que responde sem demora:
—Você sabia que ela queimou o meu xale de seda lindo de morrer, trazido da viagem que fiz à India e que eu precisava de usar naquela noite pra festa de amigos, e sem me dizer nada me entregou o xale queimado embrulhadinho? Onde vou achar outro igual?
Dalva responde antes de Dora terminar a frase, ofegante, a voz imperiosa:
— Eu não sei, Dona Dora, é onde a senhora vai encontrar outra Rosa. E segue enumerando os fatos heróicos da amiga, a dedicação de anos, a guerreira que ela é , e com que valentia serviu a todos da família.
Dora começa a se mexer na cadeira, sentindo-se irritada e ansiosa, doida para desligar o telefone e fazer a Dalva se calar. Caramba, e ela ainda me liga às sete horas da manhã! Suas palavras são finais: — Vou pensar, encontraremos uma solução justa, mas agora preciso desligar.
Ela vive um conflito. Como encontrar a chave perdida? De fato, como fazer justiça a esse ser desolado por uma injustiça que diz ter sofrido? Dora caminha pela casa buscando inspiração para o enigma, desiste, insiste, até que se dirigindo para a área de serviço e olhando para o teto, verifica que aquele varal de roupas que por séculos ficou desprezado, pendurado nos ares e que ninguém sabia consertar porque não davam conta de estruturar as cordinhas, estava lá no seu lugarzinho de sempre, bonitinho, dizendo: oi! estou aqui cheio de fraldinhas, cuequinhas, blusinhas esticadas, bem colocadinhas, porque a Rosa, aquela craque em quase tudo, de pastéis à moquecas, a que conserta máquinas e geladeiras, guerreira, madeira de dar em doido, como bem classificou a amiga Dalva, teve a sabedoria de me colocar a serviço, pôs os neurônios pra funcionar. Chama ela de volta.
Dora liga de novo para Dalva.
— Diz para Rosa que eu quero ela de volta, me faz muita falta, não podemos ficar nem mais um dia sem a presença dela. Espero-a na segunda-feira.
E foi assim que a visão do varal de roupas, embandeirado, redimiu a ambas, patroa e funcionária, aproximando-as, fazendo-as amigas inseparáveis até hoje.
— A senhora se lembra que eu trabalhei na sua casa de Ipanema, substituindo a Rosa? Deve lembrar que um dia resolvi fazer um bolo e, pra surpresa de todos, o bolo solou?
— Lembro bem, responde Dora, antecipando o que viria, disfarçando a ansiedade que tomava conta dela.
— A Rosa está muito mal desde que foi despedida, só faz chorar! Estamos todos preocupados com a situação dela. Ela gostava tanto da casa, da família e se dedicou tanto!...
Lá vem bomba!, pensa Dora, que responde sem demora:
—Você sabia que ela queimou o meu xale de seda lindo de morrer, trazido da viagem que fiz à India e que eu precisava de usar naquela noite pra festa de amigos, e sem me dizer nada me entregou o xale queimado embrulhadinho? Onde vou achar outro igual?
Dalva responde antes de Dora terminar a frase, ofegante, a voz imperiosa:
— Eu não sei, Dona Dora, é onde a senhora vai encontrar outra Rosa. E segue enumerando os fatos heróicos da amiga, a dedicação de anos, a guerreira que ela é , e com que valentia serviu a todos da família.
Dora começa a se mexer na cadeira, sentindo-se irritada e ansiosa, doida para desligar o telefone e fazer a Dalva se calar. Caramba, e ela ainda me liga às sete horas da manhã! Suas palavras são finais: — Vou pensar, encontraremos uma solução justa, mas agora preciso desligar.
Ela vive um conflito. Como encontrar a chave perdida? De fato, como fazer justiça a esse ser desolado por uma injustiça que diz ter sofrido? Dora caminha pela casa buscando inspiração para o enigma, desiste, insiste, até que se dirigindo para a área de serviço e olhando para o teto, verifica que aquele varal de roupas que por séculos ficou desprezado, pendurado nos ares e que ninguém sabia consertar porque não davam conta de estruturar as cordinhas, estava lá no seu lugarzinho de sempre, bonitinho, dizendo: oi! estou aqui cheio de fraldinhas, cuequinhas, blusinhas esticadas, bem colocadinhas, porque a Rosa, aquela craque em quase tudo, de pastéis à moquecas, a que conserta máquinas e geladeiras, guerreira, madeira de dar em doido, como bem classificou a amiga Dalva, teve a sabedoria de me colocar a serviço, pôs os neurônios pra funcionar. Chama ela de volta.
Dora liga de novo para Dalva.
— Diz para Rosa que eu quero ela de volta, me faz muita falta, não podemos ficar nem mais um dia sem a presença dela. Espero-a na segunda-feira.
E foi assim que a visão do varal de roupas, embandeirado, redimiu a ambas, patroa e funcionária, aproximando-as, fazendo-as amigas inseparáveis até hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário