30 de setembro de 2013

Dever, de Armando Freitas Filho ou O horrível dever é ir até o fim.

A segunda parte do título acima refere-se à epígrafe escolhida por Armando para o seu livro Dever. Durante cerca de dez dias, fiz-me acompanhar dele em noites silenciosas e escuras em Mofreita, Trás-os-Montes, Portugal. Ao final, escrevi este texto, num sopro.

Na parte denominada "Numeral", uma sequência que neste livro ressurge com o poema número 101, o tom é reflexivo. A poesia está ali, urdida de um jeito sério, pensada durante dias antes de ser posta no papel como peças maquinadas reloginhos maquinetas pensativas sobre o tempo, os números, influências e outros assuntos tão difíceis que não se pode nem nomeá-los. A poesia de Armando Freitas Filho destaca-se com mais força nesta e na parte inicial, denominada "Suíte", em que o livro Dever começa com lembranças, e então é tudo fácil. Parece um dever escolar, o de escrever sobre a infância, os brinquedos, os pais, a casa, todo mundo tem de escrever sobre isso. Em "Numeral", a parte indagante, cada poema é datado. Os meses estão em algarismos romanos; os dias e os anos, em arábicos. Por que será? E assim se leem os poemas de Armando, com uma sensação de inteligência não completamente captada. Enquanto na primeira parte a linguagem é tão fácil que chega a ser condescendente; na segunda, as construções são enigmáticas e elípticas. Bom, aí está um velho poeta envolto em suas possibilidades, elásticas e recidivas.

Vale a pena relê-lo. Ainda bem que o trouxe de volta. Na segunda leitura, aproximando-me dos poemas com mais familiaridade, minha aposta é que muito do Dever se converterá em Prazer. 
Bia Albernaz


Avaliação
                        para Rita

"Infantil." Quando em voz baixa
a ferida foi nomeada, ela
começou a sangrar, ininterrupta
para quem a sofria sem saber
se era dor ou aprendizado.

A vida da ferida era sua vida
mais castigo do que crime
copiada desde o começo:
dever de caligrafia em caderno
pautado sobre a carteira
que estendeu sua tábua
até a mesa do escritório.

A letra inicial foi se formando
através de sete décadas, e continua
corrigindo o tremor da primeira folha
e chega à de hoje, tremida
por outro motivo e sentimento.


Ida ao porão

Do dia para a noite
a escada começa
a cair, sem recorrência:
os degraus desiguais
de descida são lentos
de repente, rápidos
porque esquecidos
escorregadios, finais
mas sempre arrastados
os passos que chegam
na terra do porão
sob a luz que falta
da noite para o dia.

Da série "Numeral"
105.
O corpo, calçado à força sem saber
é a armadilha: ando para frente
mas o espelho contrário se interpõe
e me rmete, retrovisor, não vidente
para o difícil andamento dos dias
contados  os que foram, os que faltam.

28 VI 2007

136.
O "fim" manuscrito de Drummond
numa folha, depois da morte da filha
difere daquele firmado por Proust
pois foram escritos com diferentes fins:
o primeiro tinha a dicção, o peso
de um bilhete de suicida, o outro
fechava os cinco sentidos, o sexto
e o sétimo volume, para sempre.

18 IX 2009
 

Entre o De Vera e o Deverá - da literatura como chamado

O que foi feito deverá (Milton Nascimento)
O que foi feito, amigo,

De tudo que a gente sonhou

O que foi feito da vida,

O que foi feito do amor

Quisera encontrar aquele verso menino

Que escrevi há tantos anos atrás

Falo assim sem saudade,

Falo assim por saber

Se muito vale o já feito,

Mas vale o que será

Mas vale o que será

E o que foi feito é preciso

Conhecer para melhor prosseguir

Falo assim sem tristeza,

Falo por acreditar

Que é cobrando o que fomos

Que nós iremos crescer

Nós iremos crescer,

Outros outubros virão

Outras manhãs, plenas de sol e de luz

O que foi feito de Vera (Milton Nascimento e Fernando Brant)
Alertem todos alarmas

Que o homem que eu era voltou

A tribo toda reunida

Ração dividida ao sol

De nossa vera cruz

Quando o descanso era luta pelo pão

E aventura sem par

Quando o cansaço era rio

E rio qualquer dava pé

E a cabeça rodava

Num gira-girar de amor

E até mesmo a fé

Não era cega nem nada

Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe

Na palma da minha paixão

De vera nunca se acabe

Abelha fazendo o seu mel

No canto que criei

Nem vá dormir como pedra

E esquecer o que foi feito de nós

          O tempo passado abre para o futuro, na canção Deverá. O tempo passado abre para o presente, na canção De Vera.
          Na primeira, o passado íntimo se abre para o futuro mundano (do eu subjetivo para o self, como presença que participa). A crença funda este dizer. A fala presente só acontece pela escuta do passado ou pela cobrança em relação às suas dívidas e promessas. Esse cobrar possui uma carga de sentimento, de dever não cumprido, como uma missão ou uma destinação que precisa ser realizada. A cobrança do passado, nesse caso, necessita acontecer de modo a abrir perspectivas, a cumprir o desígnio daquilo que somos. A dúvida dá lugar à fé. A fala acontece por conta dessa crença e o “verso menino”, junto com o sonho, não pode mais ser encontrado, nem suspirado, pois transformou-se em desejo. Assim, não se lastima a perda da infância, já que ela dá lugar a um saber e não ao nada. Sabe-se – e a mensagem do autor é dirigida a um amigo também afetado pelo mesmo pensar-sentir – que o valor do ser está em seu devir, no prosseguir que, de qualquer modo irá se realizar, mas que será melhor realizado, intensificado, plenificado, acompanhado de crescimento do mesmo pensar-sentir, caso se cobre o ser passado que fomos, não para pagar dívidas mas para reencontrar esse mesmo menino que se transforma em outro outubro, outra primavera, outra revolução. A canção do Deverá otimiza o sol, crê no sol e na luz que nos torna plenos (ironicamente, pensa-se no superaquecimento).
          A canção de Vera começa com um alerta, não mais a um amigo mas a todos. O sol ainda presente. O passado ainda presente. O passado que sempre retorna. Isto é um dado. Não se pode fugir do que fomos. Mas o que fomos? Todos, habitantes da maiúscula Vera Cruz e da minúscula vera cruz, da pátria antiga e tribal e da verdade esmagada pela exigência e cristalização do sacrifício da tribo que dividia a ração, que descansava enquanto lutava pelo pão, que mergulhava em rios feito na medida do seu corpo. E a visão ainda um pouco romântica deste passado emenda novas visões: aventura, rio, a cabeça a rodar e a fé nada metafísica ou transcendental pois era fé feito nuvem no céu e raiz. Vida puramente imanente que hoje, admite o autor, transforma o eu-lírico em eu-vigilante e desperto, e também num eu-lamentador do presente, que só existe como pathos, como expressão da paixão pela pequena Vera na palma da mão. Essa vida passada e apequenada, para não desaparecer, tornou-se abelha com a ajuda do poeta que, ao lhe aproximar dessa forma, lhe recria. E que aconselha: cuidado para não esquecer, para não dormir e se transformar em pedra. A canção termina assim, com um apelo a todos, não somos pedras a dormir.
***
          O tempo em que descanso e luta se dão ao mesmo tempo é o tempo da narração. Walter Benjamin apresenta assim esta atividade que tem como figuras arcaicas o viajante e o camponês, narradores arquetípicos que, com o passar dos tempos, foram misturados em um só personagem, nas oficinas de artesãos, em trabalhos repetitivos e algo entediantes, mas propiciadores do encontro e do reconto. A arte de narrar é uma experiência em extinção nos alerta Benjamin. Quem era o narrador? Quais as suas qualidades? Agora só o vemos à distância, diz o autor, como um corpo que se vislumbra no alto de um rochedo. Mas sabemos (ou cremos) que, sendo típica do artesão, a arte da narrativa coordena alma, mão e olhar; não é produto exclusivo da voz.
          A mão ou corpo intervém com a materialidade dos gestos aprendidos na lida, e sustenta o fluxo do que é dito. A relação entre o narrador e sua matéria – a vida humana – é uma relação artesanal. E acrescenta Benjamin: “o narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer. Seu dom é contar sua vida; sua dignidade é conta-la inteira.”
          O que contar? Tudo que reside na memória. Reviver a experiência será possível? Ela nos chama, a própria memória se tornou uma experiência. O presente passa tão rápido, o futuro é tão incerto. Seduzidos pela memória é o titulo de um livro de Andréas Huyssen. Precisamos mais do que nunca do passado para temporalizarmos nossa existência.
          A prosa nos ajuda a viver o tempo, com o tempo e no tempo, para não sermos engolidos por ele, pois – por mais que desejemos – o tempo persiste e nos engole.
          A poesia abre o espaço para que essa existência demore, no sentido dado por Heidegger, para podermos habitar cada lugar, para sermos nós próprios lugares de afeto, para cumprirmos a missão de vera. E mesmo que só a saibamos pelo sentimento, mesmo que a reinventemos, assim narrada, retransmitida, essa missão se tornará um outro deverá.
          Termino com um poema de Drummond, cujo titulo “O chamado” enfeixa o que disse até agora, remetendo a evocação como uma vocação. Não acrescentarei aqui nenhuma leitura sobre este mesmo poema. Deixo-o na zona da sombra e esperando que ele acompanhe a todos como um desejo, um convite, uma suspeita. Aqui estamos por algo. O que nos chama? Como nos chamamos? Vamos chamar o mundo, a todos, ao amigo, para pensar-sentir?
Bia Albernaz 

O CHAMADO

(Carlos Drummond de Andrade, em “Claro enigma”)

Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai – a que angra serena,
a que Parságada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o riso desejado
o chamavam sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.