10 de novembro de 2015

Escrita da cena / Escrita e cinema


          Nos anos 70, ainda na Argélia, cineastas e médicos fizeram um documentário educacional sobre uma doença dos olhos que se espalhava por uma das províncias centrais do país. Equipes passaram a viajar para mostrar o filme e organizar palestras nas aldeias. A doença, uma forma de tracoma, é causada por uma mosca, que foi mostrada várias vezes em close na tela.
            Depois da exibição, os aldeões afirmaram que o filme nada tinha a ver com eles. Pareciam até surpresos de terem sido convidados a vê-los.
-       Mas quase todos vocês têm tracoma!
-       Sim, mas não temos moscas desse tamanho.

         [...] Na década de 60, o diretor e etnólogo Jean Rouch fez um filme sobre a caça ao hipopótamo, com os habitantes de uma aldeia perto do rio Niger. Durante as filmagens, gravou música na aldeia dos caçadores. Foi então a Dacar para montar o filme, incorporando a música à trilha sonora.
           Alguns meses depois, com o filme pronto ele voltou à aldeia para mostra-lo aos habitantes. [...] O filme como filme teve plena aceitação. Mesmo assim, já quase de madrugada, um ou dois deles acrescentaram um comentário aos calorosos elogios que faziam a Jean Rouch: a música estava errada, bastante errada.
-       Mas é a música de vocês! Eu a gravei bem aqui! – disse Rouch, surpreso.
-       Oh, sim – responderam os africanos. – Nós a reconhecemos. Mas se a tocássemos assim, durante a caçada, os hipopótamos fugiriam bem depressa.
(De A linguagem secreta do cinema, Jean-Claude Carrière, trad. Fernando e Benjamin Albagli, 1995)

ESCREVER CINEMATOGRAFICAMENTE É FAZER A MENTIRA PARECER REAL?
É REFORÇAR A REALIDADE PARA ENFATIZAR O DRAMA?
TRILHA SONORA, DECUPAGEM SÃO RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS QUE PODEM SER TAMBÉM USADOS EM TEXTOS LITERÁRIOS, AINDA QUE NESTE ÚLTIMO CASO, SEJA PRECISO TODO UM ESFORÇO EXTRA PARA FAZER O LEITOR VER A CENA.
Observem-se os saltos na narrativa, as decupagens que parecem espontâneas, a entrada da música no corte entre o mar e o rio neste trecho do filme de Jean Rouch: "moi, un noir" (eu, um negro), 1958. Seria possível descrever esta cena literariamente com a mesma leveza do filme? A literatura conta com as metáforas e metonímias e outras figuras de linguagem como formas de "decupagem" da língua.


***
            Como se cria uma cena?
            Primeiro crie o contexto e depois determine o conteúdo.
            O que acontece numa cena? Qual é o propósito da cena? Por que  ela está lá? Como ela move a história adiante? O que acontece?
           Um ator às vezes aborda a cena descobrindo o que ele está fazendo nela, onde ele esteve e onde estará depois da cena. Qual é o propósito da cena? Por que ele está lá?
            Como escritor, é de sua responsabilidade saber o que acontece com seus personagens dentro das cenas, e também o que acontece a eles entre as cenas; o que aconteceu entre segunda-feira à tarde no escritório e quarta-feira à noite no jantar? Se você não sabe, quem sabe?
            Ao criar contexto, você determina um propósito dramático e pode construir sua cena frase a frase, ação por ação. Ao criar contexto, você estabelece conteúdo.
            Certo. Como se faz isso?
           Primeiro, ache os componentes ou elementos dentro da cena. Que aspecto da vida profissional, pessoal ou privada de seu personagem será revelado?
            Voltemos à história de três caras assaltando o Chase Manhattan Bank. Suponha que queiramos escrever uma cena em que nossos personagens decidem-se definitivamente a assaltar o banco. Até agora, eles somente falaram sobre isso. Agora eles vão fazê-lo. Isso é contexto. Agora, conteúdo.
            Onde sua cena acontece?
            No banco? Em casa? Num bar? Dentro de um carro? Caminhando no parque? O lugar óbvio para colocá-la seria um lugar calmo, distante, talvez um carro alugado numa rodovia. Este é o local óbvio para a cena. Funciona, mas talvez haja algo mais visual que possamos usar; afinal, isto é um filme.
            Atores frequentemente representam "contra a corrente" da cena; isto é, abordam a cena não do ponto de vista mais óbvio, mas do menos óbvio. Por exemplo, eles representarão uma cena de ódio sorrindo suavemente, escondendo sua raiva atrás de uma máscara gentil. Brando é um mestre nisso.
            Em Silver Streak (Expresso de Chicago), Colin Higgins escreve uma cena de amor entre Jill Clayburgh e Gene Wilder em que eles conversam sobre flores! É lindo. Orson Welles, em The Lady of Shanghai (A Dama de Xangai), teve uma cena de amor com Rita Hayworth num parque aquático, em frente aos tubarões e barracudas.
               Cena de "A dama de Shangai" em que se mencionam tubarões no Brasil que, enlouquecidos,
se comem uns aos outros.
            Quando escrever uma cena, procure por uma maneira de dramatizar a cena "contra a corrente".
            Suponha que usemos uma sala de sinuca lotada, à noite, para colocar a cena de "decisão" de nossa história do Chase Manhattan Bank. Podemos introduzir um elemento de suspense na cena; enquanto nossos personagens jogam sinuca e discutem a decisão de assaltar o banco, um policial entra, perambula pelo lugar. Isso acrescenta um toque de tensão dramática. Hitchcock faz isso o tempo todo. Visualmente, poderíamos começar com uma jogada na bola sete, e depois abrirmos o quadro para revelar nossos personagens debruçados na mesa falando sobre o roubo.
            Uma vez determinado o contexto — o propósito, local e tempo — o conteúdo vem naturalmente.
            Suponha que queiramos escrever uma cena sobre o fim de um relacionamento. Como a faríamos?
            Primeiro — estabeleça o propósito da cena. Neste caso é o fim de um relacionamento. Segundo — descubra onde a cena se localiza e quando, dia ou noite. Ela pode se localizar num carro, numa caminhada, num cinema ou num restaurante. Usemos o restaurante; é o lugar ideal para terminar um relacionamento.
            Eis o contexto. Eles estão juntos há muito tempo? Quanto tempo? Num relacionamento prestes a terminar, geralmente uma pessoa quer que ele acabe e a outra espera que não. Digamos que ele quer terminar com ela. Ele não quer magoá-la; ele quer ser o mais "gentil" e "civilizado" possível.
            É claro que o tiro sempre sai pela culatra. Recorde a cena de rompimento em An Unmarried Woman (Uma Mulher Descasada), em que Michael Murphy almoça com Jill Clayburgh, mas não pode forçar-se a dizer as palavras. Ele espera até chegarem à rua, depois do almoço, então descontrola-se e deixa escapar as palavras.
            Primeiro, encontre os componentes da cena. O que existe num restaurante que possamos usar dramaticamente? Os garçons, a comida, alguém sentado ao lado; um velho amigo?
            O conteúdo da cena agora torna-se parte do contexto.
            Ele não quer "magoá-la", então está calado e desconfortável. Use o desconforto: frases interrompidas, olhar fixo na distância, o espiar de outros jantares próximos; talvez o garçom entreouça algumas observações, e ele é um francês rude, possivelmente homossexual. Você tem que escolher!
            Este é um método que lhe permite ficar no controle de sua história, não sob o controle dela. Como roteirista, você tem que exercer a escolha e a responsabilidade na construção e apresentação de suas cenas.
            Procure pelos conflitos; dificulte alguma coisa, faça-as mais difíceis. Isso acrescenta tensão.
(De Manual do roteiro, Syd Field, trad. Álvaro Ramos, 1995)
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Do processo de escrita de Ana Paula Maia
Trechos da entrevista “Ir aonde ninguém quer ir” (Por Christian Grünnagel)

O Germinal é um livro que li para escrever a passagem do carvão [em “Carvão animal”], por causa da mina. Além disso, assisti à adaptação para o cinema, porque é visualmente também importante. Foi uma referência. Você lê um livro para escrever um capítulo, uma cena.

Talvez isso seja também uma relação que esse livro [“A guerra dos bastardos”] tem com o cinema. Por exemplo, tem uma passagem desse livro em que ele é visto de dois ângulos diferentes. Na mesma passagem, há a cena de atropelamento do Amadeu, você vê ela no primeiro momento e, lá na frente, você vê como ela foi provocada por um outro ângulo. Então existe essa brincadeira do olhar, da narrativa.

Para escrever uma cena, às vezes, eu demoro muito, porque eu tenho que entender qual é o processo daquilo ali. Qual é o nome daquela manivela? Aí eu paro e vou descobrir o nome da manivela. Eu faço questão. Este livro [Carvão animal] foi revisado por um bombeiro de verdade. A parte de fogo mesmo, eu destaquei e mandei para ele, que revisou.
***
            Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.

                 Ele se enfeitava para a morte e não sabia.
(De Ah, é? Dalton Trevisan, 1994)
Exercício:
1. O que acontecerá com o cara do bigodinho? Imagine as circunstâncias da sua morte.
2. Escreva um contexto para a cena apresentada por Dalton Trevisan, de modo que,  pela leitura de alguns detalhes, o leitor acesse a um conteúdo coerente com o que virá a ser o episódio onde o sujeito irá morrer. (Não é preciso escrever a cena da morte propriamente dita.)