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1 de agosto de 2020

A arte da ficção – Entrevista com Raymond Carver

por Mona Simpson e Lewis Buzbee

Trechos extraídos de “The Art of fiction nº76”.

In: The Paris Review No. 88. Summer 1983*

Traducão de Daniel Willmer
Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive

Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive


ENTREVISTADORES – Então, de onde vêm suas histórias? Estou perguntando especialmente sobre as histórias que tem algo que ver com beber.

CARVER - A ficção que mais me interessa tem referência no mundo real. Nenhuma das minhas histórias aconteceu realmente, claro. Mas sempre há alguma coisa, algum elemento, algo que me dizem ou que testemunhei, que pode ser o início. Um exemplo: – Esse é o último Natal que você irá arruinar! Eu estava bêbado quando ouvi isso, mas lembrei. E mais tarde, muito depois, quando estava sóbrio, usando apenas aquela única linha e outras coisas que imaginei, imaginei tão precisamente que elas poderiam ter acontecido, fiz uma história – A Serious Talk [“Um papo sério”]. Mas a ficção que mais me interessa, a ficção de Tolstoy, Chekhov, Barry Hannah, Richard Ford, Hemingway, Isaac Babel, Ann Beattie e Anne Tyler, me parece autobiográfica até certo ponto. No mínimo, são referenciais. Histórias longas ou curtas não aparecem do nada. Isso me lembra uma conversa envolvendo John Cheever. Estávamos sentados em volta de uma mesa em Iowa City com algumas pessoas e ele ressaltou que, depois de uma briga familiar em sua casa uma noite, na manhã seguinte ele levantou e foi ao banheiro e encontrou algo que sua filha havia escrito com batom no espelho do banheiro: – Q-u-e-r-i-d-o papai, não nos deixe. Alguém à mesa então tomou a palavra e disse, – Reconheço isso de uma de suas histórias. Cheever disse, – provavelmente. Tudo que escrevo é autobiográfico. Agora, claro que não é verdade, literalmente. Mas tudo que escrevemos é, de algum modo, autobiográfico. Eu não me incomodo nem um pouco com ficção autobiográfica. Ao contrário. On The Road. Céline. Roth. Lawrence Durrell no Quarteto de Alexandria. Hemingway nas histórias de Nick Adams. Updike também pode apostar. Jim McConkey. Clark Blaise, um escritor contemporâneo cuja ficção é de fora-a-fora autobiográfica. Claro, você tem que saber o que está fazendo quando transforma suas histórias de vida em ficção. Você tem que ser imensamente ousado, muito habilidoso e imaginativo, e disposto a contar tudo sobre você.  Uma e outra vez é dito a você quando jovem que você deve escrever sobre o que conhece, e o que você conhece melhor do que seus próprios segredos? Mas, a não ser que você seja um tipo especial de escritor, e muito talentoso, é perigoso tentar escrever, tomo sobre tomo, a “História da minha vida”. Um grande perigo, ou ao menos uma grande tentação, para muitos escritores é se tornarem autobiográficos demais na abordagem de sua ficção.  Um pouco de autobiografia e muita imaginação são o melhor.

ENTREVISTADORES - Os seus personagens estão tentando fazer algo importante?

CARVER - Acho que estão tentando. Mas tentar e ter sucesso são duas coisas diferentes. Em algumas vidas, as pessoas sempre têm sucesso. E acho ótimo quando acontece. Em outras, as pessoas não têm sucesso no que tentam fazer, nas coisas que mais querem fazer, as grandes e pequenas coisas que dão suporte à vida. Essas vidas são, é claro, válidas para se escrever, as vidas das pessoas mal sucedidas. A maior parte da minha experiência, direta ou indireta, tem a ver com a última situação. Penso que a maior parte de meus personagens gostaria que suas ações valessem para alguma coisa.  Mas, ao mesmo tempo, chegaram ao ponto – como muita gente chega – de compreenderem que não é assim. Não dá mais certo. As coisas que alguma vez acharam importantes ou mesmo que valessem a pena não valem mais um centavo. É com suas vidas que estão desconfortáveis, vidas que veem se quebrando. Gostariam de acertar as coisas, mas não conseguem. E de modo geral sabem disso, eu acho, e depois disso, fazem o melhor que podem.

ENTREVISTADORES - Poderia dizer algo sobre um dos meus contos favoritos da sua última coleção? De onde veio a ideia original de “Por que não dançam?” [Why Don’t You Dance?]?1

CARVER - Estava visitando uns amigos escritores em Missoula no meio dos anos 1970. Estávamos todos sentados bebendo e alguém contou uma história sobre uma barmaid chamada Linda que uma noite se embebedou com seu namorado e decidiu colocar toda sua mobília de quarto no quintal. E o fizeram, até o tapete e o abajur, a cama, a mesinha de cabeceira, tudo. Havia quatro ou cinco escritores na sala, e depois que o sujeito terminou de contar a história, alguém disse, – Bem, quem vai escrevê-la?  Não sei quem mais possa tê-la escrito, mas eu escrevi. Não então, mas depois. Quatro ou cinco anos depois, acho. Mudei e acrescentei coisas, claro. Na verdade, foi a primeira história que escrevi depois de parar de beber.

ENTREVISTADORES - Como são seus hábitos de escrita? Você está sempre trabalhando numa história?

CARVER - Quando escrevo, é todo dia. É lindo quando isso acontece. Um dia se mesclando com o próximo. Às vezes nem sei o dia da semana. “A cantareira dos dias” [paddle-wheel of days}, como chamou John Ashbery. Quando não estou escrevendo, como agora, quando estou amarrado com tarefas de ensino como tenho estado, é como se nunca tivesse escrito ou tivesse desejo de escrever. Passo a ter maus hábitos. Fico acordado até tarde e durmo demais. Mas tá bem. Aprendi a ser paciente e tomar meu tempo. Tive que aprender isso há muito tempo. Paciência. Se acreditasse em signos, suponho que meu signo seria a tartaruga. Escrevo aos trancos e barrancos.  Mas quando estou escrevendo, fico muitas horas na escrivaninha, dez ou doze horas de cada vez, todos os dias. Adoro quando isso acontece. Muitas dessas horas de trabalho, compreendam, é para revisar e reescrever. Existe pouca coisa de eu goste mais que pegar uma história que estava pela casa por um tempo e retrabalhá-la. É o mesmo com os poemas que escrevo. Nunca tenho pressa em enviar algo logo depois de escrever, e às vezes guardo pela casa por meses fazendo isso ou aquilo, tirando isso e pondo aquilo.  Não leva muito tempo para fazer o primeiro rascunho da história, isso normalmente acontece em uma sentada, mas leva um tempo para as várias versões dela. Já fiz vinte ou trinta rascunhos de uma história. Nunca menos que dez ou doze esboços. É instrutivo e encorajador ver os primeiros rascunhos de grandes escritores.  Estou pensando nas fotos de provas pertencentes a Tolstoi, para nomear um escritor que amava revisar. Quero dizer, não sei se ele amava ou não, mas fazia um bocado disso. Estava sempre revisando, até no momento das provas. Ele revisou e reescreveu Guerra e Paz oito vezes e ainda estava fazendo correções nas provas. Coisas assim devem ser um incentivo a todos os escritores cujas primeiras versões são horríveis, como as minhas.

ENTREVISTADORES - Descreva o que acontece quando você escreve uma história.

CARVER - Escrevo a primeira versão rapidamente, como falei. Isso é frequentemente feito à mão. Simplesmente completo as páginas tão rápido quanto posso. Em alguns casos, existe uma espécie de taquigrafia pessoal, notas para mim mesmo para o que vou fazer depois quando voltar a ele. Algumas cenas deixo inacabadas; não escritas em alguns casos; e que depois carecerão de atenção meticulosa. Quer dizer, tudo requer atenção meticulosa – mas algumas cenas deixo até a segunda ou terceira versão porque, para escrevê-las corretamente levaria muito tempo na primeira versão. Com a primeira versão, alinhavo o esqueleto da história.  Então nas revisões subsequentes faço o resto. Quando termino a versão à mão, datilografo a versão da história e continuo dali. Sempre parece diferente para mim, melhor, claro, depois de datilografar.  Quando estou datilografando a primeira versão, começo a reescrever, somar e eliminar. O trabalho real vem depois, após três ou quatro versões da história.  É o mesmo com os poemas, apenas que os poemas passam por quarenta ou cinquenta versões. Donald Hall me contou uma vez que às vezes escreve cento e poucas versões de seus poemas. Pode imaginar?

ENTREVISTADORES - Como sua forma de trabalhar mudou?

CARVER - As histórias de “Do que falamos quando...” [What We Talk About When We Talk About Lovesão, até certo ponto, diferentes. É um livro muito mais autoconsciente no sentido de quão intencional era cada movimento era, quão calculado. Puxei e empurrei e trabalhei com essas histórias antes que chegasse ao livro de um jeito que nunca tinha feito com qualquer outra história. Quando o livro foi composto e estava nas mãos do meu editor, não escrevi nada por mais de seis meses. E então a primeira história que escrevi foi “Catedral” [Cathedral], que eu sinto ser totalmente diferente na concepção e execução de qualquer história que veio antes. Suponho que reflita uma mudança na minha vida tanto quanto na minha forma de escrever. Quando escrevia “Catedral”, experimentei essa pressa e senti, – É sobre tudo isso, essa é a razão pela qual fazemos isso. Foi diferente das histórias que vieram antes. Havia uma abertura quando escrevi a história. Sabia que tinha ido para o outro lado o mais longe que pude ou queria, cortando tudo até a medula, não apenas até os ossos. Mais longe naquela direção e estaria num beco sem saída – escrevendo coisas e publicando coisas que não gostaria de ler, eu mesmo. Essa é a verdade. Na revisão do último livro, alguém me chamou de escritor minimalista. Para o crítico significava um elogio. Mas não gostei. Existe algo sobre minimalista que denota estreiteza de visão e execução de que não gosto. Mas todas as histórias no novo livro, chamado “Catedral”, foram escritas num período de dezoito meses; e em cada um deles noto essa diferença.

ENTREVISTADORES - Você tem alguma noção de um público? Updike descreveu seu leitor ideal como um rapazinho numa cidade do meio-oeste encontrando um de seus livros na estante de uma biblioteca.

CARVER - É simpático pensar num leitor idealizado por Updike. Excetuando-se as primeiras histórias, não acho que seja um rapazinho numa pequena cidade do meio-oeste que esteja lendo Updike. O que esse rapazinho faria de O Centauro [The Centaur], ou Casais Trocados [Couples], ou Coelho redux [Rabbit Redux] ou O Golpe [The Coup]? Penso que Updike escreve para a mesma audiência que John Cleever disse que escrevia, – homens e mulheres inteligentes, onde quer que vivam. Qualquer escritor que se preze escreve tão bem e tão verdadeiramente quanto pode, e espera um público tão amplo e perspicaz quanto possível. Então você escreve o melhor que pode, e espera ter bons leitores. Mas acho que você está escrevendo para outros escritores até certo ponto – os escritores mortos cujo trabalho você admira, assim como os escritores vivos que você lê. Se eles gostarem, os outros escritores, há uma boa chance que outros – mulheres e homens inteligentes também gostem. Mas não tenho aquele menino que você mencionou em minha mente, ou qualquer outra pessoa, quando estou escrevendo de fato.

ENTREVISTADORES - Quanto do que escreve você finalmente descarta?

CARVER - Muito. Se o primeiro esboço da história tem quarenta páginas, geralmente terá a metade quando eu terminar com ele. E não é só uma questão de cortar, ou diminuir. Tiro muito, mas também somo coisas e depois somo mais e tiro mais. É algo que adoro fazer, por e tirar palavras.

ENTREVISTADORES - O processo de revisão mudou agora que as histórias parecem ser mais longas e mais generosas?

CARVER – “Generosas” é uma boa palavra para elas. Sim, e te digo o porquê. Na escola, há uma datilógrafa que tem umas daquelas máquinas de escrever da era espacial, um processador de texto, e posso dar a ela uma história para digitar, e uma vez que ela o digitou recebo a cópia fiel. Posso marcar até o coração ficar contente e devolver para ela; e no dia seguinte recebo minha história de volta, uma nova cópia fiel. Então posso marcá-lo de novo o quanto quiser, e no dia seguinte terei de volta uma cópia fiel de novo. Adoro isso. Pode parecer uma coisa pequena, realmente, mas aquela mulher e seu processador de texto mudaram a minha vida.

8 de abril de 2020

A ESCRITA DO POEMA

Lila Maia
Inicio o texto me apropriando de umas frases da Clarice Lispector que certa vez disse: “a gente escreve, como quem ama, ninguém sabe por que ama...”
Escrevo poemas como se tivesse uma fome imensurável de tudo e pudesse encontrar o verso no voo baixo da gaivota, ouvindo uma conversa no metrô.
Nunca sei onde carrego a poesia, com certeza não é nos bolsos da calça. Tem dias que ela está no lado esquerdo da minha cabeça. Meu poema é sempre canhoto. Embora, algumas vezes quero que seja definitivo, mas sai incompleto e de novo volto para Clarice: “eu estou sempre incompleta”.
Por isso tenho cadernos, blocos, folhas de papel, quando inicio o processo de criação do poema. Rasgo muito o que escrevo e releio em voz alta diversas vezes. Ler em voz alta é saber se há um certo ritmo, se faz sentido  juntar ou separar algumas palavras. Até hoje invejo a Cecília Meireles pelo ritmo, a criatividade e musicalidade febril de seus poemas.
Eu queria, quando escrevo ter “aquele Dobermann correndo atrás de mim”, como disse o Henfil falando sobre o processo de criatividade. Mas nem sempre isso acontece. Às vezes, é só um inseto qualquer atrás de ti.
E na escrita de um bom poema, o que me vem à cabeça é um elefante, o cavalo, milhares de borboletas; e tem a leveza do gato, a cumplicidade do cachorro, aquele medo do lobo... mas não é criando um zoológico  que se consegue escrever o bom poema.
Agora, me vem um verso maravilhoso do Murilo Mendes: “Nascer é muito comprido.” A escrita do poema também.    
O poeta, ensaísta, Octavio Paz diz no livro O Arco e a Lira que “a poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono...”  “...ela revela este mundo; cria outro”. Gosto dessa definição de revelar e criar mundos.
Os poemas que escrevo passam primeiro pelos olhos. Sinto necessidade de guardar imagens. Algumas são extremamente singulares, íntimas e gosto do desafio de colocá-las no papel. Depois vem os cheiros. Até hoje, sinto o cheiro da torta de camarão que minha mãe fazia. 
A poesia entrou cedo na minha vida, quando li o poema da Cecília, "Leilão de Jardim" e o primeiro verso, que diz: “Quem me compra um jardim com flores”.
Na verdade cultivei esse “Jardim” da Cecília, lendo seus poemas e de outros tantos poetas que vou descobrindo ao longo da vida e nas oficinas de poesia que  me dei de presente.
Mas cultivo o que me comoveu certa vez, quando fiz uma oficina com a Marina Colasanti, ao ouvi-la dizer: “quero sempre o veneno das palavras.” Eu também. 
_____
LIVRE
Descubro a música do corpo,
no espaço do quarto e danço livre 
do que pode ser imperceptível, pandemônio.

Danço,
porque minha rotina é olhar para as estrelas.
Ter esse exagero de sinceridade comigo mesma.

Desde pequena minha coragem
é fabricação caseira.
***
O OLHAR MADURO DA ONÇA
Não se escreve um poema de amor impunemente.

No desvão da noite uma onça perpetua a sombra de fogo
sobre teu caminhar espaçado.
Há uma súplica com os devidos ais prudentes, 
a onça sabe onde derrama seus passos.
Crava os dentes nesta carne que tem cheiro de batismo,
o sangue suado de caça.
Que rara luz expressa teu corpo.
A onça é aos poucos domesticável.

Não se escreve um poema de amor inutilmente.
***
OS SAPATOS DA MÃE
O que amei naquela mulher de 1,55,
não foi a forma decidida de dizer não,
ou quando mantinha o limite  
entre o pacote de biscoitos recheados de morango 
e o prato de sopa que devia ser tomado
 sem direito a choro.
O que amei foram seus sapatos.
Tinha um vermelho com saltos prateados, 
meu preferido,
me fazia imaginar que um dia seria meu.
Nem sei quantos sapatos sem embrulho de presente lhe dei.

Anos mais tarde quando fui ao seu enterro 
abri o armário e fui tirando todos os sapatos de número 33.
Nenhuma daquelas caixas vazias puderam me consolar:
calço 37.  
LILAMAIA é maranhense e vive no Rio de Janeiro. Graduada em Pedagogia. Escreveu os livros de poemas: As Maçãs de Antes (vencedora do Prêmio Paraná de Literatura 2012 - Prêmio Helena Kolody de poesia), Céu Despido - 2004 (vencedora do II Prêmio Literário Livraria Scortecci-SP) e A Idade das Águas - 1997. 

20 de novembro de 2019

Memórias de Adriano - Notas

“Memórias de...”, a quê o título remete? Às memórias como um gênero literário? Talvez, mas também ao romance histórico, à narrativa epistolar e confessional. O título remeteria também a “memorandum”, um tipo de documento comum no cotidiano da burocracia, muito apropriado à função histórica assumida por Adriano, de criar governabilidade para o extenso e espalhado Império Romano.

A mistura dos mundos apresentados por Adriano vem do seu contato com os gregos e com os povos bárbaros, da sua infância na Espanha e de suas muitas campanhas militares; vem da sua formação estrita, física e intelectual, da sua disciplina latina; e vem do seu poder de contemplação e desfrute da arte, da beleza e do pensamento, advindos sobretudo de sua convivência e admiração pela Grécia. Mas, ao se tornar romance, o universo clássico se singulariza, se moderniza. Mistura-se o tempo de ação e o da escrita. Em seu estado quase estático,
em seu final de vida, Adriano é flagrado e ouvido. O romance é a coleta do que ele diz, é fazer com o texto um meio dessa voz tão distante reaparecer. E o modo como isso é feito tem analogia com o de um escultor, uma vez que Adriano é um amante da arte. Como uma matéria dura como mármore, o texto, com suas palavras e suas reentrâncias, pacientemente é esculpido, convertendo-se em uma estátua contemporânea de Adriano. Na bruma espessa criada pelo seu fraseado, vislumbra-se a efígie de um imperador como apenas um aspecto de um homem comum. Ou ainda, o vislumbre do homem incomum, apesar de imperador. Adriano como um status e também em êxtase.

Lendo-o, me identifico, e ao me identificar, pergunto: o que é ser latino? E moderno, é possível que esse romance o seja, ainda que sem a necessária dose de ironia? Ou a ironia, nesse livro, se apresenta tão-somente como pano de fundo existencial, pela aceitação das contradições em prol de uma convivência coletiva na cidade? Pelas “Memórias...”, sente-se a reverência à força do Império, como centrum (o “umbigo do mundo“), e percebe-se a importante referência às leis da República, com seus cultos sacro-mundanos, seus jogos de guerra e seus interesses ocultos na sustentação da paz. Adriano, porém, não parece gostar particularmente de Roma. Vive viajando. Tem várias casas. Conquistou a liberdade de poder viajar constantemente, sem precisar gerir a economia de perto, observando à distância um sistema de governo descentralizado, que funciona com precisão e de acordo com regras e procedimentos bem definidos. Para isso, empenhou-se em consolidar a possibilidade de fazer carreira funcional, nos moldes da militar.

Resumo da história
Adriano é um corpo, uma retórica. Seus ditos, discursos, dizeres modulam-se ao longo dos capítulos que, com o auxílio da Wikipedia, podem ser assim resumidos:

- Em Animula vagula blandula [Pequena alma terna flutuante], sabemos que as “Memórias…” constituem-se como uma carta a Marco Aurélio, sucessor de Adriano, que padece de uma doença mortal de Adriano. Tentando viver um dia após outro, sem medo nem agonia, recua no tempo, e fala de sua juventude, das caçadas, da paixão por cavalos e de outros apetites sensuais. Mas salta para o presente onde sente inapetência e insônia, e daí para o sonho e sua infância;
- Em Varius multiplex multiformis [Várias e complexas formas], expõe a relação com o avô, o pai, a mãe. E também a sua predileção pela cultura grega, que teria o ensinado a ser um imperador. Também nessa parte fala de Roma, o exército, a atração que sente por homens, a iniciação no culto de Elêusis, o medo da morte, seu casamento, o que pensa das mulheres. Refere-se às guerras com os bárbaros e à vitória dos romanos, mas também a uma política não expansionista, à defesa das fronteiras e à pacificação dos focos de instabilidade. A imperatriz Plotina surge como uma figura essencial, cuja atitude, por muitos criticada, no momento da morte de Trajano, garante a sucessão de Adriano no poder;
- Em Tellus stabilita [Estabilidade telúrica, expressão cunhada em moeda da época], Adriano retrata inimigos e o clima de instabilidade social, com a desastrada intervenção de Atiano, homem da sua confiança. E relata suas medidas político-administrativas, sua crítica e seu pragmatismo quanto à sociedade romana, seu apoio aos poetas, sobretudo a Suetônio. Descreve os cenários, a arquitetura, as cores e os edifícios que ajuda a construir e por onde viveu. Dá indícios do romance e do final violento, quando se refere à estatuária e à importância que esta tinha para a sua pessoa uma vez que via nela a imagem do seu amado. Termina com a menção ao culto de Elêusis e à sua admiração pelos astros;
- Em Saeculum aureum [Idade do ouro], dedica-se a seu amado, desde quando se conheceram até à morte inesperada de Antínoo: as viagens, a reciprocidade e a intensa cumplicidade. Mas surgem indícios de tristeza em sua “criança”, que acaba por se suicidar, talvez em sacrifício por Adriano. O embalsamento do seu corpo pelos egípcios, seu túmulo, a construção de uma cidade e mesmo a instituição de um culto a Antínoo são narradas em meio a expressões sombrias;
- Em Disciplina augusta [referência à majestade da deusa Disciplina, presente nas muralhas construídas por Adriano na Britânia], ainda se fazem referências ao culto de Antínoo, acompanhadas de forte revolta. Fala-se de guerra e da revolução dos judeus, da batalha com Simão e do clima febril e de peste no exército. Surgem indícios de sua doença e, apesar disso, dá-se a vitória dos romanos, com a Judeia cortada do mapa, passando a chamar-se Palestina. Inicia-se as ações relacionadas com a sucessão: a adoção de Lúcio, que sucumbe; a nomeação de Antonino como sucessor; e de Marco Aurélio como seu neto; e 
Detalhe da muralha de Adriano, em Northumberland, na Inglaterra. (https://www.megalithic.co.uk/article.php?sid=18177)
- Em Patientia, uma carta de Arriano traz alento a Adriano, mas sem forças e, em desespero, pede a dois homens da sua confiança que o matem, acabando os dois por finalizar a sua vida com o fim de não cumprirem tal ordem. Por isso, continua a viver e, ainda que sonhando com espectros, procura entrar na morte de olhos abertos…

Cada um desses capítulos se reporta a uma dimensão de ser Adriano, de ser um corpo, um cargo, um homem, um qualquer, qualquer um. Sobre todos paira a imagem da autora, com sua força e as muitas histórias que leu, ouviu e buscou in loco, a todo custo e por muitas noites, durante cerca de uma década de sua vida. Num exercício de “magia simpática”, como ela chama esse processo de escrita meditativa em torno de um outro, de uma outra voz, como uma aranha, ela tece sua teia: Marguerite Yourcenar escreve seu romance. Ininterruptamente, ela se dedica a fazê-lo existir, pela arquitetura e pela carpintaria. Nesse processo, La Yourcenar, nome criado a partir de um anagrama de seu sobrenome de batismo[1], se torna digna de Adriano e de si. Reinventa-se enquanto escreve. Essa relação entre uma leitura e o encontro com uma voz faz do escrever, uma escritura.

Do Delirium ("de-lire") como método [2]
O ego como um corpo, com suas ondas de sentimentos e calor. Yourcenar sente fascinação pela disciplina física cultivada por Mishima para fazer frente à cega e insana crença nas palavras (sustentada pela intelectualidade Ocidental) [3], e assim alcançar uma maior intimidade com as ideias, muito maior do que a surgida apenas pela mente. Para aprimorar sua escrita, a autora se aferra em buscar desenvolver técnicas meditativas para criar um vácuo dentro de si e induzir um estado interno de receptividade, aberto ao aspecto do outro, que vem para se refletir “num mar calmo”, nas camadas mais profundas de quem o acolhe.

Yourcenar adapta, para seus próprios propósitos, os exercícios de Inácio de Loyola e o método do ascetismo hindu, a fim de visualizar com mais precisão as imagens que cria por dentro das pálpebras fechadas, e expandir a mente, incluindo o pensamento não racional, não lógico.

A simpatia pela inteligência
Graças a esses métodos de meditação contemplativa e de re-criação imaginativa, confere-se forma, substância e vida ao que de outra maneira permaneceria ignorado, e é assim que se processa a “transição para o outro”, como ação decorrente do verbo em latim delirare (desviar de um buraco). Esse processo, Yourcenar definiu como “simpatia mágica”, uma transferência, em pensamento, para dentro de outra pessoa, permitindo, por exemplo, que ela sentisse as lágrimas de Adriano correrem em seu rosto, em profunda compaixão. A origem do amor e da inteligência se equiparam nesse instante. Simpatia e inteligência tornam-se então interdependentes. 


Notas[1] - "Esa niña llamada Marguerite, según Ud., gustaba bastante del nombre, que identifica una flor, y toma su denominación del antiguo iranio a través del griego en cuya lengua traduce ¨perla¨. Es un nombre místico, que no es de ninguna época ni de ninguna clase. Era un nombre de reina, pero también de campesina. No así el Yourcenar, que nace de la graciosa arrogancia juvenil por desprenderse de la tradición y de las ataduras que pudieran dar a una “futura artista” las convenciones familiares. Fruto de un juego divertido entre Ud. y su padre —cuando decidieron publicar su primer poema— para conseguir un seudónimo a partir del apellido que sonara agradable al oído de quienes serían su público. Entretenidos en hacer un anagrama con el apellido Crayencour y después de acordar la simpatía de ambos por la letra Y, valorada su estética y su significado como cruce de camino o un árbol con los brazos abiertos, esa niña terminaría llamándose Marguerite Yourcernar, una de la más celebres escritoras del siglo XX." Trecho da Carta a Marguerite Yourcenar, por León Sarcos. https://www.elnacional.com/papel-literario/carta-a-marguerite-yourcenar-5-7/
[2] - Cf. Subversive Subjects: Reading Marguerite Yourcenar, editado por Judith Holland Sarnecki, Ingeborg Majer O'Sickey.
[3] - Marguerite Yourcenar escreveu um livro sobre as motivações de Yukio Mishima ao cometer suicídio de acordo com os preceitos do ritual japonês. Em português, "Mishima ou a visão do vazio".

11 de julho de 2019

Do conceito de literatura à literatura do conceito (entre visões)

O que é bom em literatura? O que vale a pena ler?

A expressão do conceito de literatura acontece no ato crítico, da literatura e sobre a literatura, sob o risco de se tornar um discurso autoritário que clama pelo poder de dizer o que é bom, quem são os modelos, os exemplos canônicos etc. A crítica afinal nunca escondeu o seu caráter cultural, social, histórico e político.

Mas Silvina Lopes e Paulo Roberto Pires, ao exporem as suas teorias, invocam igualmente uma  literatura do conceito e sobre o conceito, que busca expressar, compreender ou acessar uma realidade inexplicável e no entanto incontestavelmente exposta. Essa literatura emana talvez do desejo de transcendência do escritor ou do leitor, mas ela se impõe como uma coisa física, que provoca calor, frio, medo, paixão, pensamentos. 

De Paulo Roberto Pires, enxuguei os seguintes trechos:

Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari dizem que a criação de conceitos obedece a três etapas:  imanência, insistência e consistência.

Escrever é imergir-se em referências de toda a ordem (criar um campo de imanência), insistir que dali vá sair alguma coisa com vida própria e, finalmente, trabalhar para alicerçar situações e personagens.

Escrever ficção é uma forma, mais difícil do que a não-ficção, de desmontar os clichês que rondam as vidas de todos nós. ... Escrever é a defesa possível para não ser engolido pela obviedade.

Da entrevista da Silvina Lopes, mostro pontos colhidos a partir de sua metade final, com partes grifadas e em livre edição, que me parecem conversar bem com os trechos de Paulo Roberto. Abstenho-me de comentários.

Poiesis escapa à finalidade, ao exercício de uma funçãoAquilo que se escreve tem que valer enquanto aquilo que é escrito e não porque foi escrito a partir de... E nisto não há qualquer falta de reconhecimento, não há uma ingratidão em relação àquilo de que se partiu. O próprio escrever já é a gratidão; o próprio pensar já é um gesto de gratidão, já é um gesto de louvor, de exaltação... 
O pensamento da escrita enquanto leitura, e vice-versa, tem consequências, ao mostrar que em cada lance se joga a responsabilidade de quem escreve, a responsabilidade de haver futuro


***
Aqui iniciamos uma série de postagens, de entrevisões da literatura, frutos da esgrima crítica e conceitual com a necessária fruição e gozo, tanto na leitura quanto na escrita. 

26 de setembro de 2018

Sinais de partida


Luiz Roberto Gouvêa
 
       Naquela manhã acordei com a percepção de que algo falhava em meu pensamento: sentia uma lacuna, um esvaziamento na cabeça. Como se um empuxo se opusesse à força da gravidade, me reduzisse o peso e entorpecesse os sentidos. No início não me dei conta das perdas. Mas no decorrer do dia notei que me escaparam da memória os adjetivos, impedindo-me de qualificar, medir, comparar, criticar ou enaltecer as sensações, ideias, pessoas e coisas.
          Percebi que um apagão fulminou os domínios da escrita e da fala. Conseguiu me desadjetivar sem, em contrapartida, agregar substantivos ou verbos no meu repertório de palavras. Restaram-me substantivos sem substância. Um despojamento que me doía.
       O diabo é que na época eu trabalhava numa empresa de publicidade e para complementar o salário escrevia discursos para o deputado X. Sem a exuberância dos adjetivos, perdi musculatura e eficiência nas peças que rascunhava. O discurso debilitou-se, exauriu-se com a escassez de meu vocabulário.
     Minha mulher estranhou a secura de minhas palavras, interpretou como desinteresse, ou mesmo desprezo. E o esforço para compensar a deficiência causava mais estragos.
         Consultei médicos e terapeutas. Ninguém pôde me ajudar. Houve quem sugerisse consultar um gramático; um professor de português; experimentar um método para expandir o vocabulário. Tudo em vão.
         Pedi uma licença no trabalho. Inventei que precisava de tempo para recuperar da afasia, voltar a enfeitar as ideias, ornar as coisas, colorir as imagens. A benevolência do meu chefe felizmente superou a sua perplexidade – acabou concordando.
         Peguei uma passagem para visitar minha filha em Montreal e ao conversar com o funcionário da migração percebi que os adjetivos fluíam em francês sem dificuldade. Aí abusei dos superlativos, exaltei a beleza do dia e as qualidades de Quebec, numa tentativa de extravasar os adjetivos que se represavam num esconderijo da mente.
         Com a filha tentei diálogos em inglês e espanhol, e arranhar algumas conversas em ídiche que recordava. Os adjetivos brotavam, abundavam a fala.
         Que síndrome seria essa que não atravessava os idiomas e somente atingia aquele com o qual cresci?
         Ao retornar ao Brasil, recorri ao recurso de rechear a conversa com expressões em inglês e francês: What wonderful day! You are so pretty! Mon cher amour! Travail parfait! Ce trafic est irritant!
        Minhas falas passaram a irritar ainda mais as pessoas, e eu passei a conversar cada vez menos. As pessoas fugiam de mim. Fiquei sem adjetivos e amigos.

Hoje pela manhã senti a deficiência agravar-se.  Durante o sonho esvaiu-se o reservatório de conjunções. Todas foram para o esgoto. A desconexão das orações agravou-me ainda mais a capacidade de comunicação. Não há mais coordenação entre as ideias. Não consigo mais externar o pensamento. Não adianta consultar especialistas. A inépcia deles me expôs a essa penúria. Penso em partir, emigrar. Deixarei aqui idioma, família, amigos, trabalho. Na bagagem meu inglês, meu francês, minhas esperanças. Adieu!
*****************
Literatura = contenção
Isaak Bábel en 1933. Foto: Georgii Petrusov
"Se eu escrever minha autobiografia, eu a chamarei de A História de um Adjetivo", disse Isaak Bábel em uma entrevista, em 1937, publicada em 1964, vinte e quatro anos após seu assassinato pelo regime de Stalin. Quando jovem, Bábel pensou que tudo suntuoso deveria ser transmitido por meios suntuosos. Até que se corrigiu. Empenhado em dizer tudo em um número reduzido de páginas forçou-se a restringir o uso das palavras, dando relevo àquelas que fossem "em primeiro lugar, significativas; em segundo, simples;e em terceiro, belas". https://enlenguapropia.wordpress.com/2014/04/01/el-escritor-que-fumaba-para-buscar-adjetivos/ 

"... a grande lição de Borges não era uma aula temática, nem de conteúdo, nem de técnica, era uma aula de escrita: a atitude de um homem que, diante de cada frase, pensava com cuidado, não em qual adjetivo colocar, mas em qual adjetivo retirar, caindo depois em um certo excesso que era colocar um único adjetivo de maneira a deixar a gente de queixo caído, o que às vezes pode ser um defeito." ("Cita 4", Revista La Maga, edição especial Homenaje a Cortázar, nov1994).
Nem a escrita apressada e ofegante de algumas fragmentárias percepções nem os circunlóquios autobiográficos arrancados da totalidade dos estados de consciência e mal copiados merecem ser poesias. Com essa vontade oportunista de aproveitar o menor ápice vital, com essa comichão contínua de encadernar o universo e encaixá-lo numa estante, só se chega a uma sempiterna espionagem da própria alma, que talvez fragmenta e histrioniza o homem que a exerce. (Jorge Luís Borges, 1921)

7 de março de 2016

Eu quero bater nos leitores

João Cerqueira
Quando comecei a pensar no argumento e nas características que A Tragédia de Fidel Castro deveria ter, estabeleci duas bases: tinha de criar uma história original, algo que nunca ninguém tivesse escrito antes e tinha de a escrever com elevada qualidade literária – a melhor de que fosse capaz. Só assim poderia ter alguma possibilidade de me destacar na literatura contemporânea. Repetir o que já fora escrito centenas de vezes, introduzindo pequenas variações para me convencer a mim próprio de que estava a criar uma história original, não seria o meu caminho. Competirei sim com pasteleiros, futebolistas, apresentadores de televisão e concorrentes da casa dos segredos, mas segundo as minhas regras.
Infelizmente, há um preço a pagar para os que tentam criar literary fiction, em vez de história de vampiros, zombies ou conspirações do Vaticano. Um escriba sem talento que habilmente encaixa todas as peças exigidas a uma trama segundo as regras dos cursos de escrita criativa e dos manuais conformes – poderá conseguir um agente literário e ser publicado numa grande editora. Enquanto um escritor dotado de grande imaginação e domínio da língua poderá nem sequer publicar o seu manuscrito. Como já escrevi noutro texto, os vampiros estão a sugar o sangue da literatura e o zombies apodrecem-na.
Por outro lado, após ter escrito a sátira A culpa é destas liberdades! descobri que o humor e a ironia eram os recursos literários que mais naturalmente brotavam da minha identidade. Da mesma maneira que numa conversa essas formas de responder ao interlocutor ou comentar algo me surgiam sem pensar, também os meus textos não escapavam a esse desejo de satirizar o mundo e o comportamento humano. E não é difícil encontrar fonte de inspiração porque ser humano é, em parte, ser ridículo – um simples par de meias basta para arruinar uma reputação.
Recentemente li uma crítica à obra de Shakespeare onde se dizia que, entre outras qualidades, a sua genialidade consiste na passagem súbita da comédia para a tragédia, apanhando desprevenido o leitor. Ora é isso mesmo que eu tento fazer – sobretudo em A segunda vinda de Cristo à Terra. Ao longo do livro procuro fazer rir o leitor satirizando a política e a religião para no fim dar um murro no estômago do leitor. Confesso: quero bater nos meus leitores, mas primeiro tento fazê-los rir.
Aqueles que dizem que por detrás dos escritores policiais se esconde alguém desejoso de matar gente, ou que os escritores que torturam os seus personagens revelam algum desejo inconsciente de o fazer, ou ainda que se alguns escritores não escrevessem estariam num hospício ou cometeriam barbaridades, são capazes de ter razão. Há um pequeno Marquês de Sade escondido atrás de cada escritor.
Eis o verdadeiro motivo de haver cada vez mais gente que se dedica a esta profissão. Todavia, não são os que escrevem sombras de Grey, sombras de vampiros, sombras de zombies ou sombras de conspirações os mais perigosos. São os outros.
***
Camilo Ochoa foi preso de madrugada em sua casa, da qual os agentes retiraram um saco de cocaína, prova incontestável da sua culpabilidade, tendo sido levado para uma prisão clandestina. Na descrição da notícia, os jornais, a rádio e a televisão, anunciaram que um dos heróis da Revolução era afinal um traidor que se deixara corromper pelos vícios capitalistas. Alguns jornalistas, vasculhando o passado de Camilo, apresentaram inclusive um rol de atitudes e comportamentos suspeitos - por exemplo, ter roubado uma papaia na escola primária, como bem se lembrava a sua professora, anciã respeitável e revolucionária devota - que, garantiam, já evidenciavam pulsões criminosas desde tenra idade. Transformado em imagem de filme e de fotografia, assim como em palavras graves pronunciadas por locutores circunspectos cheios de fome, o saco de cocaína, que afinal não passava de farinha nem tão pouco pertencia ao suposto traficante, percorreu a ilha de lés-a-lés, sem contudo se mexer do cofre para onde tinha sido atirado como prova irrefutável, adquirindo um estatuto nunca antes concedido nem a uma droga nem a um cereal. A ilha passara a girar em torno do saco que todos sabiam não ser de Camilo Ochoa, podendo ser ou não cocaína ou farinha, isso ninguém sabia, como um satélite aprisionado na órbita de um grande corpo celeste. 

Lançada a versão oficial, dita verdadeira, multiplicaram-se outras versões, ditas falsas; mas, como a primeira era falsa e as que se lhe opunham estavam próximas da verdade, a mentira e a verdade alternaram posições situando-se cada uma nos domínios da outra. Podendo tal permuta parecer confusa, ninguém teve dúvidas na identificação de ambas. Mas, ao contrário do que se afirma, desta vez ninguém se alegrou com a queda de um homem justo. A desgraça do herói, cujas virtudes funcionam por vezes como contraponto da mediocridade alheia, espelho polido onde os rostos deformados se descobrem e as verrugas pululam, não trouxe qualquer alegria ao povo.  
[Excerto de A tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira]

17 de janeiro de 2016

"Aulas de Literatura" de Vladimir Nabokov: Bons leitores e bons escritores (excertos)


       Nada é mais chato ou mais injusto para o autor do que começar a ler, digamos, Madame Bovary, com a ideia preconcebida de que se trata de uma denúncia da burguesia. Devemos sempre lembrar que a obra de arte é, invariavelmente, a criação de um novo mundo, de modo que a primeira coisa que devemos fazer é estudar esse novo mundo tão perto quanto possível, aproximando-o como algo novo, não tendo óbvia conexão com os mundos que já conhecemos. Quando este novo mundo tiver sido cuidadosamente estudado, então e só então vamos examinar as suas ligações com outros mundos, outros ramos do conhecimento.
    Outra pergunta: Podemos esperar recolher informações sobre locais e épocas a partir de um romance? Alguém pode ser tão ingênuo a ponto de pensar que ele ou ela pode aprender algo sobre o passado daqueles best-sellers que rondam os clubes do livro sob o título de romances históricos? Mas e as obras-primas? Podemos confiar com a imagem de Jane Austen sobre latifúndios na Inglaterra com baronetes e paisagens ajardinadas quando tudo que ela sabia provinha do salão de um clérigo?
    A verdade é que grandes romances são grandes contos de fadas.
    Tempo e espaço, as cores das estações do ano, os movimentos dos músculos e mentes, tudo isso consiste – para os escritores de gênio (tanto quanto podemos adivinhar e confio que adivinhamos corretamente) – não em um conhecimento tradicional que pode ser tomado de empréstimo da biblioteca das verdades públicas, mas uma série de surpresas únicas que mestres artistas fazem circular e aprenderam a expressar em sua própria maneira original. Para autores menores deixa-se a ornamentação do lugar-comum: estes não se incomodam sobre qualquer reinvenção do mundo; eles simplesmente tentam espremer o melhor de uma determinada ordem de coisas, fora dos padrões tradicionais de ficção. As várias combinações que esses autores menores são capazes de produzir dentro de limites definidos podem ser bastante divertidas, de uma forma suavemente efêmera porque leitores menores gostam de reconhecer as suas próprias ideias sob um disfarce agradável. Mas o verdadeiro escritor, o sujeito que faz planetas girarem, que dá forma a um homem adormecido e que ansiosamente mexe com a espinha de alguém que vai dormir, não tem valores à sua disposição: ele deve criá-los ele mesmo. A arte de escrever é um negócio muito fútil se não implica, antes de tudo, a arte de ver o mundo como ficção em potencial. A materialidade deste mundo pode ser suficientemente real (tanto quanto a realidade pode ser), mas não existe de maneira nenhuma como uma totalidade já aceita: é caos, e esse caos, o autor diz "vá!" permitindo que o mundo cintile e se encaixe em um fuso. Ele então recombina-se até os átomos, e não apenas nas suas partes visíveis e superficiais. O escritor é o primeiro homem a mapeá-lo e nomear os objetos naturais que ele contém. Os frutos lá são comestíveis. Essa criatura malhada que tranca o meu caminho precisa ser domada. Esse lago entre aquelas árvores será chamado Lake Opal ou, mais artisticamente, Dishwater Lake. Essa névoa é uma montanha e essa montanha deve ser conquistada. Até um declive sem trilhas sobe o mestre artista, e no topo, em um cume ventoso, quem você acha que ele encontra? O leitor ofegante e feliz, e lá eles espontaneamente se abraçam e estão ligados para sempre se o livro durar para sempre.
“Um lugar de descanso” de Dan-ah Kim
    Selecione quatro respostas para a pergunta como deve ser um leitor para ser um bom leitor:
    1. O leitor deve pertencer a um clube do livro.
    2. O leitor deve identificar-se com o herói ou heroína.
    3. O leitor deve concentrar-se no ângulo econômico-social.
    4. O leitor deve preferir uma história de ação e diálogo.
    5. O leitor deve ter visto o livro em um filme.
    6. O leitor deve ser um aspirante a autor.
    7. O leitor deve ter imaginação.
    8. O leitor deve ter memória.
    9. O leitor deve ter um dicionário.
    10.O leitor deve ter algum senso artístico.
    Alunos apoiam-se fortemente na identificação emocional, na ação e no ângulo socioeconômico ou histórico. Claro que, como você já deve ter adivinhado, o bom leitor é aquele que tem imaginação, memória, um dicionário, e algum senso artístico – senso que proponho a desenvolver em mim mesmo e nos outros sempre que tenho a chance.
    Aliás, eu uso a palavra leitor muito vagamente. Curiosamente, uma pessoa não pode ler um livro: só pode relê-lo. Um bom leitor, um leitor importante, uma leitor ativo e criativo é um releitor. E vou dizer porquê. Quando lemos um livro pela primeira vez, o próprio processo de mover laboriosamente nossos olhos da esquerda para a direita, linha após linha, página após página, esse complicado trabalho físico sobre o livro, o próprio processo de aprendizagem em termos do espaço e do tempo abordados pelo livro, ficam entre nós e a apreciação artística. Quando olhamos para uma pintura não temos que mover nossos olhos de uma maneira especial, mesmo se, como em um livro, a imagem contenha elementos de profundidade e desenvolvimento. O elemento temporal realmente não entra num primeiro contato com uma pintura. Ao ler um livro, temos de ter tempo para nos familiarizarmos com ele. Nós não temos nenhum órgão físico (como temos o olho no que diz respeito a uma pintura) que toma toda a imagem e então pode desfrutar seus detalhes. Mas em uma segunda ou terceira, ou quarta leitura, em certo sentido, nos comportamos com um livro como fazemos com uma pintura. No entanto, não confundamos o olho físico, essa obra-prima monstruosa da evolução, com a mente, uma conquista ainda mais monstruosa. Um livro, não importa se uma obra de ficção ou uma obra científica (a linha de fronteira entre os dois não é tão clara quanto geralmente se acredita), um livro de ficção apela em primeiro lugar para a mente. A mente, o cérebro, a parte superior da formigante coluna vertebral, é, ou deveria ser, o único instrumento utilizado na leitura de um livro.
Um bom leitor, um leitor importante, um ativo e criativo leitor é um releitor.
    Sendo assim, devemos ponderar a questão de como a mente funciona quando o leitor mal-humorado é confrontado com um livro ensolarado. Em primeiro lugar, o mau humor se derrete e, para melhor ou pior, o leitor entra no espírito do jogo. O esforço para começar um livro, especialmente se ele é elogiado por pessoas a quem o jovem leitor julga secretamente serem demasiado antiquadas ou muito sérias, este esforço é muitas vezes difícil de fazer; mas uma vez feito, as recompensas são várias e abundantes. Uma vez que o mestre artista usou sua imaginação na criação de seu livro, é natural e justo que o consumidor de um livro deva usar sua imaginação também.
    Há, no entanto, pelo menos duas variedades de imaginação no caso do leitor. Vamos ver qual das duas é a indicada para usar na leitura de um livro. Em primeiro lugar, há o tipo relativamente modesto que serve como apoio às emoções simples e é de natureza definitivamente pessoal. (Há diversas subvariedades aqui, nessa leitura emocional.) A situação em um livro é intensamente sentida porque nos lembra de algo que aconteceu a nós ou a alguém que conhecemos. Ou o leitor escolhe o livro, principalmente porque ele evoca um país, uma paisagem, um modo de ser que ele recorda com nostalgia, como parte de seu próprio passado. Ou, e essa é a pior coisa que um leitor pode fazer, ele se identifica com um personagem do livro. Essa humilde variedade não é o tipo de imaginação eu gostaria que os leitores usassem.
    Então, qual o instrumento válido a ser usado pelo leitor? É a imaginação impessoal e o deleite artístico. O que deve ser estabelecida, eu acho, é um equilíbrio harmonioso entre a mente do leitor e do autor. Devemos permanecer um pouco distantes e ter prazer nesse distanciamento e, ao mesmo tempo, profunda e  apaixonadamente desfrutar, com lágrimas e arrepios, o tecido interno de uma determinada obra-prima. Ser totalmente objetivo nesses assuntos é, naturalmente, impossível. Tudo que vale a pena é, em certa medida,  subjetivo. Por exemplo, você sentado aí pode ser apenas o meu sonho, e eu posso ser o seu pesadelo. Mas o que eu quero dizer é que o leitor deve saber quando e onde refrear a sua imaginação e isso ele faz ao tentar esclarecer o mundo específico que o autor coloca à sua disposição. Temos de ver coisas e ouvir coisas, devemos visualizar as salas, as roupas, os costumes do povo de um autor. A cor dos olhos de Fanny Price em Mansfield Park e o mobiliário do frio quarto dela são importantes.
    Todos temos diferentes temperamentos, e posso dizer agora que o melhor temperamento para um leitor ter ou desenvolver é uma combinação do artístico e do científico. Um artista entusiasmado é capaz de ser subjetivo em sua atitude com relação a um livro, e também temperar o seu intuitivo calor com a frieza de um julgamento de científica. Se, no entanto, um possível leitor é totalmente desprovido de paixão e paciência – da paixão de um artista e a paciência de um cientista – ele dificilmente irá desfrutar de grande literatura.
Um escritor deveria ter a precisão de um poeta e a imaginação de um cientista. Por Ryan Sheffield
      A literatura nasceu não o dia em que um menino gritou “lobo”, quando um lobo cinzento e grande veio correndo por um vale Neandertal em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino gritou “lobo”, “lobo” e não havia lobo nenhum atrás dele. Que o coitadinho, por conta de ter mentido muito muitas vezes, tenha finalmente sido comido por um animal real é algo acidental. Mas aqui está o que é importante. Entre o lobo na grama alta e o lobo na altura de uma história há uma cintilante passagem. Essa passagem, esse prisma, é a arte da literatura.
    Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de uma história verdadeira é um insulto tanto à arte quanto à verdade. Todo grande escritor é um grande enganador, mas assim é também a Natureza. A natureza sempre engana. Do simples engano de propagação da luz à ilusão prodigiosamente sofisticada de cores de proteção em borboletas ou pássaros, existe na natureza um maravilhoso sistema de magia e artimanhas. O escritor de ficção segue apenas o comando da Natureza. Voltando por um momento para nosso lanoso companheiro a gritar “lobo” pela floresta, podemos colocar da seguinte forma: a magia da arte estava na sombra da lobo que ele deliberadamente inventou, o seu sonho do lobo; em seguida, seu truque fez uma boa história. Quando ele morre, finalmente, a história contada sobre ele torna-se uma boa lição no escuro ao redor da fogueira. Mas ele era o pequeno mágico. Ele foi o inventor.
    Há três pontos de vista de que um escritor pode ser considerado: ele pode ser considerado como um contador de histórias, como um professor e como um mago. Um grande escritor combina esses três – contador de histórias, professor e feiticeiro – mas é o encantador nele que predomina e faz dele um grande escritor. O contador de histórias nos leva ao entretenimento, à excitação mental do tipo mais simples, à participação emocional, ao prazer de viajar para alguma região remota no espaço ou no tempo. Mentes ligeiramente diferentes, embora não necessariamente superiores buscam o professor no escritor. Propagandista, moralista, profeta – essa é a sequência crescente. Podemos ir para o professor não só para a educação moral, mas também para o conhecimento direto por fatos simples. Ai de mim, conheci pessoas cujo propósito em ler romancistas franceses e russos para aprender algo sobre a alegre vida em Paris ou sobre a triste Rússia. Finalmente, e acima de tudo, um grande escritor é sempre um grande mago, e é aqui que chegamos a parte realmente emocionante, ao tentar compreender a magia individual de seu gênio e ao estudar o estilo, o imaginário, o desenho [pattern] de seus romances ou poemas.
    As três facetas do grande escritor – mágica, história, aula – são propensas a  misturar-se em uma impressão de brilho unificado e único, uma vez que a magia da arte esteja presente na raiz [in the very bones] da história, na medula do pensamento. Há obras-primas de pensamento límpido seco, organizado, que provocam em nós um frêmito artístico tão forte quanto um romance como Mansfield Park faz ou quanto qualquer fluxo rico de imagens sensuais de Dickens. Parece para mim que uma boa fórmula para testar a qualidade de um romance é, num prazo longo, uma fusão da precisão da poesia e da intuição da ciência. A fim de mergulhar nessa magia, um leitor sábio lê o livro de gênio não com o coração, nem tampouco com o cérebro, mas com a sua coluna vertebral. É aí que ocorre o formigamento revelador, embora devamos nos manter um pouco distantes, um pouco destacados durante a leitura. Em seguida, com um prazer que é ao mesmo tempo sensual e intelectual vamos ver o artista construir o seu castelo de cartas e assistir sua transformação em um castelo do mais belo aço e vidro.
Um escritor importante combina esses três - contador de história, professor, encantador - mas é o encantador nele que deve predominar, fazendo dele um escritor importante.

18 de agosto de 2014

Escrita: terceira margem

Foto:JMGLA
Primeira margem: no pra cá pra lá, no meio do rio, no de repente, uma lancha de muitos pés, grande calado: os pés marolam pelas ondas que a lancha faz. Passa rápido mas vi seu nome desenhado – LITERATURA. Atrás rabeava uma corda. Segunda margem: chama-se o MENINO. Menino, você é o Pai: contra o pai, conta o pai, outras primeiras estórias. Terceira margem: a POESIA 
Bia Albernaz
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Vida vivida: falta de chão firme, de segurança, de conforto – tudo ilusão. É a escrita a vida de verdade? É a essência sem aparência, a liberdade de inventar, de criar personagens sem máscaras para outros? Assim deveria ser? É uma fuga? Um esconderijo de obrigações, deveres, compromissos? Escrever sem regras impostas, sem padrão, respeitar somente o querer. É um delírio? Um sonho? É comunicar com quem faz igual? Cada pessoa pode formar com o outro e o outro e o outro – uma forma de sobreviver. Aí, aceita, se expõe e o seu trabalho, suas ideias transformadas em histórias, memórias, graças, dramas. Corre a vida paralela: funções e papéis determinados. Rompe-se aqui e ali, mas o enquadramento sempre amarra. A escrita solta. 
Maria Tereza Albernaz
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Foto:BiaA.
Viver e ter coragem para escrever. Escolher viver criando, se expondo – sem nada, mas com tudo. Desapegada de outros fazeres, na vida com o escolhido, imersa em sentimento e imaginação, sem preocupação com o tempo. Sendo uma, sendo muitas e muitos, aqui e em todos os lugares e tempos. Entregue, sem domínio do externo, dominando o interior. Sem se deslocar, mas em todos os lugares. No fluxo da escrita, sem passado e sem futuro, num imenso aqui-e-agora múltiplo e variado. Seguindo, indo, sendo. 
Ruth Liftschts
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Não é a primeira, segunda ou terceira margem, a literatura é a canoa que nos conduz. Ao se afastar da primeira margem, nos fornece o distanciamento necessário para que possamos vê-la em toda sua extensão e complexidade. O canoeiro do conto de Guimarães Rosa, por exemplo, viu arderem por ele chamas insuspeitas. Da outra beira, a literatura nos descortina o conhecido e o desconhecido. E à terceira margem, nada é melhor do que ela para nos levar. 
Flávio Franklin
Com direção de Nelson Pereira do Santos, a produção de 1994 faz uma adaptação da história, tomando elementos dos outros contos presentes em "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa.
 Para ler o conto de GR ("A terceira margem do rio") e em seguida o do Mia Couto ("Nas águas do tempo"),
cf. circulosdeleitura.org.br