João Cerqueira
Quando
comecei a pensar no argumento e nas características que A Tragédia de Fidel Castro deveria ter, estabeleci duas bases: tinha
de criar uma história original, algo que nunca ninguém tivesse escrito antes e
tinha de a escrever com elevada qualidade literária – a melhor de que fosse
capaz. Só assim poderia ter alguma possibilidade de me destacar na literatura
contemporânea. Repetir o que já fora escrito centenas de vezes, introduzindo
pequenas variações para me convencer a mim próprio de que estava a criar uma
história original, não seria o meu caminho. Competirei sim com pasteleiros,
futebolistas, apresentadores de televisão e concorrentes da casa dos segredos,
mas segundo as minhas regras.
Infelizmente,
há um preço a pagar para os que tentam criar literary fiction, em vez de história de vampiros, zombies ou
conspirações do Vaticano. Um escriba sem talento que habilmente encaixa todas
as peças exigidas a uma trama – segundo as regras dos cursos de escrita
criativa e dos manuais conformes – poderá conseguir um agente literário e ser
publicado numa grande editora. Enquanto um escritor dotado de grande imaginação
e domínio da língua poderá nem sequer publicar o seu manuscrito. Como já
escrevi noutro texto, os vampiros estão a sugar o sangue da literatura e o
zombies apodrecem-na.
Por
outro lado, após ter escrito a sátira A
culpa é destas liberdades! descobri que o humor e a ironia eram os recursos
literários que mais naturalmente brotavam da minha identidade. Da mesma maneira
que numa conversa essas formas de responder ao interlocutor ou comentar algo me
surgiam sem pensar, também os meus textos não escapavam a esse desejo de
satirizar o mundo e o comportamento humano. E não é difícil encontrar fonte de
inspiração porque ser humano é, em parte, ser ridículo – um simples par de
meias basta para arruinar uma reputação.
Recentemente
li uma crítica à obra de Shakespeare onde se dizia que, entre outras
qualidades, a sua genialidade consiste na passagem súbita da comédia para a
tragédia, apanhando desprevenido o leitor. Ora é isso mesmo que eu tento fazer
– sobretudo em A segunda vinda de Cristo
à Terra. Ao longo do livro procuro fazer rir o leitor satirizando a
política e a religião para no fim dar um murro no estômago do leitor. Confesso:
quero bater nos meus leitores, mas primeiro tento fazê-los rir.
Aqueles
que dizem que por detrás dos escritores policiais se esconde alguém desejoso de
matar gente, ou que os escritores que torturam os seus personagens revelam
algum desejo inconsciente de o fazer, ou ainda que se alguns escritores não
escrevessem estariam num hospício ou cometeriam barbaridades, são capazes de
ter razão. Há um pequeno Marquês de Sade escondido atrás de cada escritor.
Eis o
verdadeiro motivo de haver cada vez mais gente que se dedica a esta profissão.
Todavia, não são os que escrevem sombras de Grey, sombras de vampiros, sombras
de zombies ou sombras de conspirações os mais perigosos. São os outros.
***
Camilo Ochoa foi preso de madrugada em sua casa, da qual os agentes retiraram um saco de cocaína, prova incontestável da sua culpabilidade, tendo sido levado para uma prisão clandestina. Na descrição da notícia, os jornais, a rádio e a televisão, anunciaram que um dos heróis da Revolução era afinal um traidor que se deixara corromper pelos vícios capitalistas. Alguns jornalistas, vasculhando o passado de Camilo, apresentaram inclusive um rol de atitudes e comportamentos suspeitos - por exemplo, ter roubado uma papaia na escola primária, como bem se lembrava a sua professora, anciã respeitável e revolucionária devota - que, garantiam, já evidenciavam pulsões criminosas desde tenra idade. Transformado em imagem de filme e de fotografia, assim como em palavras graves pronunciadas por locutores circunspectos cheios de fome, o saco de cocaína, que afinal não passava de farinha nem tão pouco pertencia ao suposto traficante, percorreu a ilha de lés-a-lés, sem contudo se mexer do cofre para onde tinha sido atirado como prova irrefutável, adquirindo um estatuto nunca antes concedido nem a uma droga nem a um cereal. A ilha passara a girar em torno do saco que todos sabiam não ser de Camilo Ochoa, podendo ser ou não cocaína ou farinha, isso ninguém sabia, como um satélite aprisionado na órbita de um grande corpo celeste.
Lançada a versão oficial, dita verdadeira, multiplicaram-se outras versões, ditas falsas; mas, como a primeira era falsa e as que se lhe opunham estavam próximas da verdade, a mentira e a verdade alternaram posições situando-se cada uma nos domínios da outra. Podendo tal permuta parecer confusa, ninguém teve dúvidas na identificação de ambas. Mas, ao contrário do que se afirma, desta vez ninguém se alegrou com a queda de um homem justo. A desgraça do herói, cujas virtudes funcionam por vezes como contraponto da mediocridade alheia, espelho polido onde os rostos deformados se descobrem e as verrugas pululam, não trouxe qualquer alegria ao povo.
[Excerto de A tragédia de Fidel Castro, de João Cerqueira]
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