O tom "classe média" transmitido pela narradora é
delicioso, por exemplo, em:
Há cerca de trinta anos, a srta. Maria Ward, de
Huntingdon, com apenas sete mil libras de dote, teve a sorte de cair nas graças
de Sir Thomas Bertram, de Mansfield Park, no condado de Northamton, e, assim,
tornar-se esposa de um baronete, com direito a todos os confortos e privilégios de uma bela casa e de uma boa
renda.
Com simplicidade e
reserva, os assuntos de dinheiro predominam sobre os românticos e os religiosos.
Quando o primeiro capítulo acaba, todas as preliminares foram cuidadas. Sabemos
o quão falante, espalhafatosa e vulgar é a sra. Norris; impassível e
mal-humorado, o Sir Thomas; carente, a srta. Price; e indolente e lânguida é
Lady Bertram, com o seu mascote.
A personagem da sra.
Norris não apenas é uma obra de arte em si, ela tem também uma qualidade
funcional, pois é por causa de sua natureza intrometida que Fanny será afinal
adotada por Sir Thomas, ou seja, um aspecto de sua caracterização eleva-se à
elemento estruturante do romance. Do mesmo modo, é a indolência de Lady Bertram
que a mantém no campo. Sabe-se que eles tinham uma casa em Londres. Antes de
Fanny aparecer, é para lá que iam passar a primavera, mas Lady Bertram, um
pouco pela falta de saúde e muito por sua indolência, vende a casa na cidade,
permanecendo definitivamente no campo e deixando Sir Thomas cumprir o seu dever
no Parlamento sem a sua presença, não importa se com maior ou menor conforto.
Jane Austen, compreendamos, precisa desse arranjo a fim de manter Fanny no
campo, sem complicar a situação com viagens para Londres.
Chegamos a um outro
exemplo da forma como um escritor introduz certos eventos a fim de fazer sua
história seguir em frente. Por exemplo, a chegada dos Grant para o presbitério
tornou-se possível graças à morte do sr. Norris, a quem Grant substitui. A
chegada dos Grant, por sua vez, leva à chegada, nos arredores de Mansfield
Park, dos jovens Crawford, parentes de
sua mulher, que desempenharão importantes papéis no romance. Além disso, na
estrutura do romance de Miss Austen, é imprescindível retirar Sir Thomas de
Mansfield Park, a fim de que os jovens do livro usufruam a liberdade; e depois
trazê-lo de volta no auge da leve orgia decorrente do ensaio de uma certa peça
teatral.
Note-se também o modo
como Miss Austen junta questões monetárias à sequência de eventos que explica a
chegada dos Crawford. O sentido prático combina com o tom de conto de fadas,
como aliás é comum acontecer nesse tipo de histórias. Assim, o filho mais
velho, Tom, que herdaria toda a propriedade, desperdiça dinheiro. Os negócios
dos Bertram não estão muito bem. É necessário que Sir Thomas parta para Antigua
por quase um ano. Antigua é uma ilha nas Índias Ocidentais, então pertencente à
Inglaterra, a quinhentas milhas ao norte da Venezuela. Nas plantações, o
trabalho escravo é a fonte do dinheiro dos Bertram. Os Crawford, jovens ricos,
que fazem sua entrada na ausência de Sir Thomas, são meio-irmão e irmã da sra.
Grant. Um tem uma boa propriedade em Norfolk; e a outra, vinte mil libras. O
tio, o almirante Crawford, que os criou, quando fica viúvo, em vez de manter
sua sobrinha, traz sua amante para casa, e por isso a sra. Grant acolhe a irmã,
o que pode lhe ser conveniente financeiramente.
Durante a discussão sobre como melhorar a propriedade, Rushworth observa que ele tem certeza que Repton (um paisagista famoso na época) reduziria a avenida de carvalhos na frente oeste da casa, a fim de fornecer uma perspectiva mais aberta. Fanny, que estava sentada próxima a Edmund e que ouvia atentamente, diz em voz baixa: "Cortar uma avenida! Que pena! Não faz você pensar em Cowper?” Temos que ter em mente que, no tempo de Fanny a leitura e o conhecimento da poesia era muito mais natural, habitual, difundida do que hoje.
"O Sofá", de William Cowper, faz parte de um longo poema chamado The Task [“A tarefa”] (1785), e é um bom exemplo do que era familiar à mente de uma jovem senhora como Jane ou Fanny. Cowper combina o tom didático de um observador da moral com a imaginação romântica e o colorido da natureza tão característicos das décadas seguintes. "O Sofá" é um poema muito longo. Começa com um relato bastante atrevido da história do mobiliário e, em seguida, passa a descrever os prazeres da natureza. Note-se que, ao pôr na balança, de um lado, as comodidades, as artes e as ciências da vida urbana, a corrupção que grassa nas cidades e, de um outro, a influência moral da desconfortável natureza, floresta e campo, Cowper escolhe a natureza. Lembremos também da decepção de Fanny com relação à capela da propriedade de Rushworth, quando ela faz menção a um poema de Sir Walter Scott: The Lay of the Last Minstrel [“A balada do último Minstrel”] (1805).
Mais sutil do que a citação direta é a reminiscência que tem um significado técnico especial, quando utilizada na literatura. Uma reminiscência literária denota uma frase ou imagem ou situação sugestiva em uma imitação inconsciente por parte do autor de algum outro autor que lhe é anterior. Um autor se lembra de algo lido em algum lugar e usa-o, recriando-o de acordo com os interesses em jogo na história por ele narrada. Um exemplo disso encontra-se no episódio da chave, quando Rushworth sai correndo para buscá-la de modo a abrir um portão de ferro em sua propriedade. A frase de Fanny – ao lembrar Mary e Henry de que Rushworth tinha ido buscar a chave – reflete uma passagem no livro de Laurence Sterne, “Uma viagem sentimental através da França e Itália” (1768).
Cenas, ação teatral e o teatro como pano-de-fundo
A expedição a Sotherton fornece não só a Maria e Henry Crawford, mas também a Mary Crawford e Edmund a oportunidade para conversarem com uma privacidade incomum. Ambos aproveitam da possibilidade de se afastar dos outros: Maria e Henry deslizam através de uma abertura ao lado do portão trancado e vagam invisíveis pelo bosque, enquanto Rushworth corre em busca da chave do mesmo portão; Mary e Edmund caminham a esmo, enquanto a pobre Fanny permanece sentada em um banco desértico. Miss Austen nitidamente delineou a paisagem de seu romance nesse momento. Além disso, o romance vai proceder nesse e nos próximos capítulos como uma peça de teatro.
A coisa toda pode ser dividida em cenas:
1. Edmund, Mary e Fanny adentram uma parte mais selvagem do deserto, na verdade um pequeno bosque, e conversam sobre clérigos. (Mary terá um choque na capela ao ouvir que Edmund espera ser ordenado: ela não sabia que ele pretendia se tornar um clérigo, uma profissão que não poderia contemplar em um futuro marido.) Eles param em um banco depois de Fanny pedir para descansar.
2. Fanny fica sozinha nesse rústico banco, e ali permanece durante uma hora inteira, enquanto Edmund e Mary vão investigar os limites do bosque.
3. Um outro grupo, composto por Henry, Maria e Rushworth, caminha até onde ela se encontra.
4. Rushworth deixa-os para buscar a chave do portão trancado. Henry e a srta. Bertram permanecem, mas, em seguida, deixam Fanny, a fim de explorar o bosque.
5. A srta. Bertram e Henry pulam o portão trancado e desaparecem, deixando Fanny sozinha.
6. Julia – a líder do terceiro grupo – chega à cena tendo cruzado com Rushworth a caminho da casa, conversa com Fanny e, em seguida, pula o portão, "olhando ansiosamente para o bosque”. Crawford havia lhe provocado durante a ida para Sotherton e ela está com ciúmes de Maria.
7. Fanny está novamente sozinha até Rushworth chegar, ofegante, com a chave do portão, ponto de partida para aqueles que procuravam se esconder.
8. Rushworth segue bosque a dentro e novamente Fanny encontra-se sozinha.
9. Fanny decide descer em direção ao caminho tomado por Mary e Edmund e encontra-os vindo do lado oeste do bosque onde ficava a famosa alameda.
10. Eles voltam para a casa e encontram o remanescente do terceiro grupo, as sras. Norris e Rushworth, prestes a começarem a caminhada.
Interessante notar que, no final do capítulo 11, na casa dos Bertram, quando a srta. Crawford junta-se ao “clube da alegria” em torno do piano, e Edmund deixa Fanny admirando as estrelas dirigindo-se também para a música, dá-se uma repetição do tema “abandonando-Fanny”, que então fica sozinha e trêmula na janela. Edmund sofre uma hesitação inconsciente entre a beleza brilhante e elegante de Mary Crawford e a graça delicada e suave de Fanny, o que é emblematicamente demonstrado pelos diversos movimentos dos jovens envolvidos na cena da sala de música.
Novembro seria "o mês negro", na opinião das irmãs Bertram, época do indesejável retorno do pai. Ele pretendia pegar o navio de setembro, de modo que os jovens teriam treze semanas – de meados de agosto a meados de novembro – antes de seu retorno. (Na verdade, Sir Thomas retorna em outubro em um navio particular.)
O relaxamento das normas de conduta de Sir Thomas, a partir da expedição a Sotherton, deságua diretamente na proposta de encenação de uma peça antes de seu retorno. O tema da peça em Mansfield Park realiza-se de modo extraordinário. Do capítulo 12 ao 20, desenvolve-se como um conto de fadas feito de magia e de fatalidade. O tema começa com um novo personagem – primeiro a aparecer e último a desaparecer, nesse contexto – um jovem chamado Yates, amigo de Tom Bertram. "Ele veio nas asas de decepção”, pois tinha acabado de chegar de uma estadia onde a mesma peça seria encenada mas que, por conta da morte súbita de um parente próximo de uma das pessoas envolvidas, teve de ser cancelada. E Yates lamenta o fato de que a monótona vida ou a morte ocasional tivessem impedido a encenação da peça que, do prólogo ao epílogo, dizia ele, era toda encantamento.
A alusão ao desengano, no final da peça, é uma observação fatídica, uma espécie de conjuração, pois é exatamente isso o que vai acontecer: o retorno prematuro de Sir Thomas confirma a sequela.
Lovers' Vows (1798) foi selecionada não porque Miss Austen tivesse em mente uma peça particularmente imoral, mas sobretudo porque ela tinha papéis convenientes para distribuir entre seus personagens. No entanto, é claro que ela desaprova a encenação dessa peça entre os Bertram, não só por abordar a bastardia, mas porque ela dava a oportunidade para discursos que envolviam relações sexuais mais abertas e francas do que era adequado para jovens provincianos. A aflição de Fanny evidencia-se, quando ela lê a peça. A leitura é feita solitária e avidamente, interrompendo-se apenas para espantar-se ante a perspectiva daquele texto ser representado em casa, de modo privado. As duas personagens femininas, Agatha e Amelia, lhe pareceram totalmente impróprias seja pela situação como mãe solteira de uma, seja pela linguagem meio obscena da outra. Mal podia acreditar que seus primos estivessem conscientes do que estavam se envolvendo; e desejava despertá-los logo que possível pelo protesto que Edmund certamente faria. É provável que os sentimentos de Jane Austen fossem similares aos de Fanny. A questão, porém, não dizia respeito à definição dessa peça como imoral mas à sua inadequada encenação fora do teatro profissional, por não-atores.
Quando chega a hora de distribuírem os papéis da peça, por uma espécie de predestinação artística, as coisas organizam-se de modo que as verdadeiras relações entre os personagens do romance revelam-se através das relações dos personagens da peça.
O baile é novamente um evento revelador dos traços característicos das pessoas no livro. Vislumbra-se, por exemplo, o caráter grosseiro e exigente da sra. Norris, em um pequeno trecho, inserido em um parágrafo que descreve a alegria de Fanny, que – por ser tão intensa – a faz esquecer da tia "entirely taken up in fresh arranging and injuring the noble fire which the butler had prepared", traduzido por Hildegard Feist como: “enquanto a tia Norris se ocupava em remanejar e arruinar o esplêndido fogo que o mordomo acendera” (p.363). Nabokov observa que o estilo de Austen está no auge quando ela usa a palavra “injure”, a única metáfora realmente original no livro, segundo ele. Revelam-se também a sra. Bertram, que placidamente sustenta que a boa aparência de Fanny se deve à ajuda de sua empregada, (na verdade, essa foi enviada muito tarde, quando Fanny já tinha se vestido); Sir Thomas, com sua personalidade contida e sua fala lenta; e todos os jovens, a desempenharem os papéis que deles se espera.
A expedição a Sotherton fornece não só a Maria e Henry Crawford, mas também a Mary Crawford e Edmund a oportunidade para conversarem com uma privacidade incomum. Ambos aproveitam da possibilidade de se afastar dos outros: Maria e Henry deslizam através de uma abertura ao lado do portão trancado e vagam invisíveis pelo bosque, enquanto Rushworth corre em busca da chave do mesmo portão; Mary e Edmund caminham a esmo, enquanto a pobre Fanny permanece sentada em um banco desértico. Miss Austen nitidamente delineou a paisagem de seu romance nesse momento. Além disso, o romance vai proceder nesse e nos próximos capítulos como uma peça de teatro.
A coisa toda pode ser dividida em cenas:
1. Edmund, Mary e Fanny adentram uma parte mais selvagem do deserto, na verdade um pequeno bosque, e conversam sobre clérigos. (Mary terá um choque na capela ao ouvir que Edmund espera ser ordenado: ela não sabia que ele pretendia se tornar um clérigo, uma profissão que não poderia contemplar em um futuro marido.) Eles param em um banco depois de Fanny pedir para descansar.
2. Fanny fica sozinha nesse rústico banco, e ali permanece durante uma hora inteira, enquanto Edmund e Mary vão investigar os limites do bosque.
3. Um outro grupo, composto por Henry, Maria e Rushworth, caminha até onde ela se encontra.
4. Rushworth deixa-os para buscar a chave do portão trancado. Henry e a srta. Bertram permanecem, mas, em seguida, deixam Fanny, a fim de explorar o bosque.
5. A srta. Bertram e Henry pulam o portão trancado e desaparecem, deixando Fanny sozinha.
6. Julia – a líder do terceiro grupo – chega à cena tendo cruzado com Rushworth a caminho da casa, conversa com Fanny e, em seguida, pula o portão, "olhando ansiosamente para o bosque”. Crawford havia lhe provocado durante a ida para Sotherton e ela está com ciúmes de Maria.
7. Fanny está novamente sozinha até Rushworth chegar, ofegante, com a chave do portão, ponto de partida para aqueles que procuravam se esconder.
8. Rushworth segue bosque a dentro e novamente Fanny encontra-se sozinha.
9. Fanny decide descer em direção ao caminho tomado por Mary e Edmund e encontra-os vindo do lado oeste do bosque onde ficava a famosa alameda.
10. Eles voltam para a casa e encontram o remanescente do terceiro grupo, as sras. Norris e Rushworth, prestes a começarem a caminhada.
Interessante notar que, no final do capítulo 11, na casa dos Bertram, quando a srta. Crawford junta-se ao “clube da alegria” em torno do piano, e Edmund deixa Fanny admirando as estrelas dirigindo-se também para a música, dá-se uma repetição do tema “abandonando-Fanny”, que então fica sozinha e trêmula na janela. Edmund sofre uma hesitação inconsciente entre a beleza brilhante e elegante de Mary Crawford e a graça delicada e suave de Fanny, o que é emblematicamente demonstrado pelos diversos movimentos dos jovens envolvidos na cena da sala de música.
Novembro seria "o mês negro", na opinião das irmãs Bertram, época do indesejável retorno do pai. Ele pretendia pegar o navio de setembro, de modo que os jovens teriam treze semanas – de meados de agosto a meados de novembro – antes de seu retorno. (Na verdade, Sir Thomas retorna em outubro em um navio particular.)
O relaxamento das normas de conduta de Sir Thomas, a partir da expedição a Sotherton, deságua diretamente na proposta de encenação de uma peça antes de seu retorno. O tema da peça em Mansfield Park realiza-se de modo extraordinário. Do capítulo 12 ao 20, desenvolve-se como um conto de fadas feito de magia e de fatalidade. O tema começa com um novo personagem – primeiro a aparecer e último a desaparecer, nesse contexto – um jovem chamado Yates, amigo de Tom Bertram. "Ele veio nas asas de decepção”, pois tinha acabado de chegar de uma estadia onde a mesma peça seria encenada mas que, por conta da morte súbita de um parente próximo de uma das pessoas envolvidas, teve de ser cancelada. E Yates lamenta o fato de que a monótona vida ou a morte ocasional tivessem impedido a encenação da peça que, do prólogo ao epílogo, dizia ele, era toda encantamento.
A alusão ao desengano, no final da peça, é uma observação fatídica, uma espécie de conjuração, pois é exatamente isso o que vai acontecer: o retorno prematuro de Sir Thomas confirma a sequela.
Lovers' Vows (1798) foi selecionada não porque Miss Austen tivesse em mente uma peça particularmente imoral, mas sobretudo porque ela tinha papéis convenientes para distribuir entre seus personagens. No entanto, é claro que ela desaprova a encenação dessa peça entre os Bertram, não só por abordar a bastardia, mas porque ela dava a oportunidade para discursos que envolviam relações sexuais mais abertas e francas do que era adequado para jovens provincianos. A aflição de Fanny evidencia-se, quando ela lê a peça. A leitura é feita solitária e avidamente, interrompendo-se apenas para espantar-se ante a perspectiva daquele texto ser representado em casa, de modo privado. As duas personagens femininas, Agatha e Amelia, lhe pareceram totalmente impróprias seja pela situação como mãe solteira de uma, seja pela linguagem meio obscena da outra. Mal podia acreditar que seus primos estivessem conscientes do que estavam se envolvendo; e desejava despertá-los logo que possível pelo protesto que Edmund certamente faria. É provável que os sentimentos de Jane Austen fossem similares aos de Fanny. A questão, porém, não dizia respeito à definição dessa peça como imoral mas à sua inadequada encenação fora do teatro profissional, por não-atores.
Quando chega a hora de distribuírem os papéis da peça, por uma espécie de predestinação artística, as coisas organizam-se de modo que as verdadeiras relações entre os personagens do romance revelam-se através das relações dos personagens da peça.
O baile é novamente um evento revelador dos traços característicos das pessoas no livro. Vislumbra-se, por exemplo, o caráter grosseiro e exigente da sra. Norris, em um pequeno trecho, inserido em um parágrafo que descreve a alegria de Fanny, que – por ser tão intensa – a faz esquecer da tia "entirely taken up in fresh arranging and injuring the noble fire which the butler had prepared", traduzido por Hildegard Feist como: “enquanto a tia Norris se ocupava em remanejar e arruinar o esplêndido fogo que o mordomo acendera” (p.363). Nabokov observa que o estilo de Austen está no auge quando ela usa a palavra “injure”, a única metáfora realmente original no livro, segundo ele. Revelam-se também a sra. Bertram, que placidamente sustenta que a boa aparência de Fanny se deve à ajuda de sua empregada, (na verdade, essa foi enviada muito tarde, quando Fanny já tinha se vestido); Sir Thomas, com sua personalidade contida e sua fala lenta; e todos os jovens, a desempenharem os papéis que deles se espera.
Uso de cartas e sua relação com a estrutura do romance
A segunda parte do livro termina com uma troca de bilhetes entre a srta. Crawford e Fanny. A srta. Crawford tem um estilo elegante, mas superficialmente banal e trivial, se estudado de perto: cheio de clichês graciosos, como o desejo dos "mais doces sorrisos" para Fanny, que definitivamente não é desse tipo.
Querida Fanny — pois agora posso sempre chamá-la sempre assim, para infinito alívio de uma língua que esteve tropeçando no srta. Price pelo menos durante as últimas seis semanas. Não posso deixar de mandar-lhe através de meu irmão algumas linhas de felicitações e, com a maior alegria, dar-lhe meu consentimento e minha aprovação. Vá em frente, minha querida, e não tenha medo; não haverá dificuldades dignas desse nome. Suponho que a garantia de meu consentimento signifique alguma coisa; portanto, pode dedicar-lhe seus mais doces sorrisos ao longo desta noite e devolvê-lo para mim mais feliz do que quando saiu daqui
Afetuosamente,
M. C.
Em contraste, o estilo de Fanny tem elementos de força, pureza e precisão:
Muito lhe agradeço, querida srta. Crawford, suas amáveis felicitações, na medida em que se referem a meu adorado William. Quanto ao restante, sei que nada significa, mas sou tão incompetente para esse tipo de coisa que espero que me desculpe por lhe pedir que não pense mais nisso. Conheço o sr. Crawford bastante bem para entender seu modo de agir; se ele também me entendesse, agiria de outra forma. Não sei o que escrever, porém a senhorita me faria um grande favor se nunca mais tocasse nesse assunto. Com meus agradecimentos por ter me honrado com sua mensagem, continuo sendo, querida srta. Crawford etc., etc.
Jane Austen, em sua juventude, zombou da inclinação literária para a sensibilidade, que estimulou o gosto e a admiração dos leitores pelo excesso de sentimentos, o chamado “sentimentalismo”, forjado por choros, desmaios e tremedeiras, isto é, pela simpatia indiscriminada por qualquer coisa patética ou pela inteireza moral, as boas atitudes. Por isso, muitos críticos, como Linklater Thomson, surpreenderam-se ao descobrir que a autora tivesse escolhido esse mesmo tipo de sensibilidade para distinguir uma heroína que, acima de que qualquer outra de suas personagens, ela dizia preferir, inclusive batizando-a com o nome de sua sobrinha dileta. Fanny, porém, apresenta os sintomas de sensibilidade então na moda com tal encanto, e suas emoções são tão consistentes no céu cinza-claro do romance, que o espanto de Thomson pode ser ignorado.
A convicção de Edmund de que a única razão para Fanny rejeitar Crawford era a novidade de toda a situação é uma questão de estrutura, pois o desenvolvimento do romance exige que Crawford permaneça circulando por perto, autorizado a perseverar em seu cortejo. A explicação fácil para a atitude de rejeição de Fanny torna admissível o fato dele seguir lhe fazendo a corte com o pleno consentimento de Sir Thomas e Edmund. Muitos leitores, especialmente as leitoras, nunca perdoaram a sutil e sensível Fanny por amar um tipo tão sem graça quanto Edmund, mas – repita-se – a pior maneira de ler um livro é infantilmente se misturar com os personagens como se eles fossem pessoas. Na verdade, muitas vezes ouvimos falar de meninas sensíveis que autenticamente amam chatos e pedantes. Afinal de contas, assumindo-se o interesse humano da história, é preciso admitir: Edmund é honesto, bem-educado, bom, gentil.
Psicologicamente, não fica muito claro porque Edmund não se declara à srta. Crawford, mas novamente a estrutura do romance exige uma certa lentidão dos progressos no namoro de Edmund. A qualquer custo, ambos os Crawford partem para Londres em visitas previamente organizadas para encontrar amigos, provocando desconforto em Fanny e em Edmund.
A ida de Fanny para Portsmouth afeta a unidade do romance que, até esse momento, com exceção de uma natural e necessária troca de rápidas mensagens entre Fanny e Mary Crawford, mantém-se agradavelmente livre do desanimador recurso, em romances ingleses e franceses do século XVIII, de veicularem informações por cartas. Mas com Fanny isolada em Portsmouth, dá-se uma nova mudança na estrutura do romance e a ação passa a desenvolver-se por correspondência, com a troca de notícias.
Inesperadamente, Crawford visita Portsmouth para uma última tentativa de conquistar Fanny, que nele observa novas atitudes, mais louváveis. Muito preocupado com a sua saúde, ele insta-a a informar sua irmã, Mary, em caso de agravamento, para que possam levá-la de volta a Mansfield. Aqui e em outras passagens da sua visita, insinua-se que, se Edmund se casasse com Mary e se Henry perseverasse em sua ternura e bom comportamento, Fanny afinal se casaria com ele.
As reações de Fanny à “apaixonite” de Edmund por Mary Crawford são mostradas com a entonação do que hoje chamamos de fluxo de consciência ou monólogo interior, maravilhosamente desenvolvida, 150 anos mais tarde, por James Joyce.
Fanny reprimiu como pôde esses pensamentos reativos, porém meio minuto depois passa a achar que Sir Thomas estava sendo muito cruel com sua tia e com ela. Quanto ao assunto principal da carta, em nada contribuiu para diminuir sua irritação. Ao contrário, enfureceu-se de tal modo que por pouco não a fez detestar Edmund: “Nada de bom vai resultar dessa demora”, disse ela. “Por que não resolvem logo? Ele está cego, e nada vai lhe abrir os olhos, pois durante tanto tempo a verdade se mostrou com tanta clareza e de nada adiantou. Vai casar com ela e ser infeliz. Deus queira que não deixe de ser respeitável, apesar da influência dela! o estrague também!” E releu a carta: “ ‘A srta. Crawford gosta tanto de mim’! Bobagem! Ela só ama a si mesma e ao irmão. ‘Há anos que a levam para o mau caminho’! É bem provável que ela é que leve as amigas para o mau caminho. Talvez todas se corrompam mutuamente; no entanto, se a estimam muito mais do que elas as estima, é pouco provável que a prejudiquem a não ser com lisonjas. ‘Ela é a única mulher no mundo com quem eu pensaria em me casar.’ Acredito piamente. Esse é um amor que há de dominá-lo pela vida afora. Se ela o aceita ou recusa, o curacao de Edmund pertence a ela para sempre. ‘Perder Mary implicaria perder Crawford e Fanny’. “Primo, você não me conhece. As duas famílias nunca estariam unidas, se você não as unisse. Ah, escreva, escreva. Acabe com isso de uma vez. Acabe com essa agonia. Decida-se, entregue-se, condene-se.” (pp. 521-2)
Tais emoções, porém, aproximavam-se demais do ressentimento para continuar orientando esse solilóquio por muito tempo.
A chegada do carteiro substitui dispositivos estruturais mais delicados. O romance passa a apresentar sinais de desintegração, lançando mão, mais e mais, da fácil forma epistolar. Esse é um sinal claro de um certo cansaço por parte da autora. Por outro lado, estamos nos aproximando do evento mais chocante de toda a história.
O interlúdio Portsmouth – três meses na vida de Fanny – termina junto com o uso da forma epistolar no romance. A história volta assim ao seu início, por assim dizer, mas agora os Crawford foram eliminados. Miss Austen teria de escrever outro volume praticamente de 500 páginas se tivesse a intenção de narrar as fugas de Henry e Maria e a de Julia com Yates da mesma forma direta e detalhada como fizera ao relatar os jogos e os flertes em Mansfield Park antes de Fanny partir para Portsmouth. Nesse ponto, a forma epistolar ajudou a sustentar a estrutura do romance, mas não resta dúvida de que muita coisa aconteceu nos bastidores e que esse negócio de escrita de cartas é um atalho de não muito grande mérito artístico.
Temos agora apenas dois capítulos mais, e o que resta é nada mais do que um processo de limpeza geral. No final do penúltimo capítulo, Edmund pensa que nunca se casará, mas o leitor sabe mais. No último, o crime é punido, a virtude recebe sua justa recompensa e os pecadores voltam ao bom caminho. Edmund encontra em Fanny a esposa ideal, com uma leve sugestão de incesto: "E se não conseguiria convencê-la de que seu amor fraternal por ele poderia ser uma base suficiente para o amor conjugal." (p.569) "Não há como descrever os sentimentos de uma jovem ante a revelação de um amor que julgava impossível." (p.571)
A sra. Bertram agora tem Susan para substituir Fanny como "sobrinha estacionária” e o tema da Cinderela continua. É uma curiosa contenda, a de que – para além e depois da história contada em detalhes pelo autor de um romance – a vida, para todos os personagens, segue suavemente o seu curso. Deus, por assim dizer, assume a direção.
A segunda parte do livro termina com uma troca de bilhetes entre a srta. Crawford e Fanny. A srta. Crawford tem um estilo elegante, mas superficialmente banal e trivial, se estudado de perto: cheio de clichês graciosos, como o desejo dos "mais doces sorrisos" para Fanny, que definitivamente não é desse tipo.
Querida Fanny — pois agora posso sempre chamá-la sempre assim, para infinito alívio de uma língua que esteve tropeçando no srta. Price pelo menos durante as últimas seis semanas. Não posso deixar de mandar-lhe através de meu irmão algumas linhas de felicitações e, com a maior alegria, dar-lhe meu consentimento e minha aprovação. Vá em frente, minha querida, e não tenha medo; não haverá dificuldades dignas desse nome. Suponho que a garantia de meu consentimento signifique alguma coisa; portanto, pode dedicar-lhe seus mais doces sorrisos ao longo desta noite e devolvê-lo para mim mais feliz do que quando saiu daqui
Afetuosamente,
M. C.
Em contraste, o estilo de Fanny tem elementos de força, pureza e precisão:
Muito lhe agradeço, querida srta. Crawford, suas amáveis felicitações, na medida em que se referem a meu adorado William. Quanto ao restante, sei que nada significa, mas sou tão incompetente para esse tipo de coisa que espero que me desculpe por lhe pedir que não pense mais nisso. Conheço o sr. Crawford bastante bem para entender seu modo de agir; se ele também me entendesse, agiria de outra forma. Não sei o que escrever, porém a senhorita me faria um grande favor se nunca mais tocasse nesse assunto. Com meus agradecimentos por ter me honrado com sua mensagem, continuo sendo, querida srta. Crawford etc., etc.
Jane Austen, em sua juventude, zombou da inclinação literária para a sensibilidade, que estimulou o gosto e a admiração dos leitores pelo excesso de sentimentos, o chamado “sentimentalismo”, forjado por choros, desmaios e tremedeiras, isto é, pela simpatia indiscriminada por qualquer coisa patética ou pela inteireza moral, as boas atitudes. Por isso, muitos críticos, como Linklater Thomson, surpreenderam-se ao descobrir que a autora tivesse escolhido esse mesmo tipo de sensibilidade para distinguir uma heroína que, acima de que qualquer outra de suas personagens, ela dizia preferir, inclusive batizando-a com o nome de sua sobrinha dileta. Fanny, porém, apresenta os sintomas de sensibilidade então na moda com tal encanto, e suas emoções são tão consistentes no céu cinza-claro do romance, que o espanto de Thomson pode ser ignorado.
A convicção de Edmund de que a única razão para Fanny rejeitar Crawford era a novidade de toda a situação é uma questão de estrutura, pois o desenvolvimento do romance exige que Crawford permaneça circulando por perto, autorizado a perseverar em seu cortejo. A explicação fácil para a atitude de rejeição de Fanny torna admissível o fato dele seguir lhe fazendo a corte com o pleno consentimento de Sir Thomas e Edmund. Muitos leitores, especialmente as leitoras, nunca perdoaram a sutil e sensível Fanny por amar um tipo tão sem graça quanto Edmund, mas – repita-se – a pior maneira de ler um livro é infantilmente se misturar com os personagens como se eles fossem pessoas. Na verdade, muitas vezes ouvimos falar de meninas sensíveis que autenticamente amam chatos e pedantes. Afinal de contas, assumindo-se o interesse humano da história, é preciso admitir: Edmund é honesto, bem-educado, bom, gentil.
Psicologicamente, não fica muito claro porque Edmund não se declara à srta. Crawford, mas novamente a estrutura do romance exige uma certa lentidão dos progressos no namoro de Edmund. A qualquer custo, ambos os Crawford partem para Londres em visitas previamente organizadas para encontrar amigos, provocando desconforto em Fanny e em Edmund.
A ida de Fanny para Portsmouth afeta a unidade do romance que, até esse momento, com exceção de uma natural e necessária troca de rápidas mensagens entre Fanny e Mary Crawford, mantém-se agradavelmente livre do desanimador recurso, em romances ingleses e franceses do século XVIII, de veicularem informações por cartas. Mas com Fanny isolada em Portsmouth, dá-se uma nova mudança na estrutura do romance e a ação passa a desenvolver-se por correspondência, com a troca de notícias.
Inesperadamente, Crawford visita Portsmouth para uma última tentativa de conquistar Fanny, que nele observa novas atitudes, mais louváveis. Muito preocupado com a sua saúde, ele insta-a a informar sua irmã, Mary, em caso de agravamento, para que possam levá-la de volta a Mansfield. Aqui e em outras passagens da sua visita, insinua-se que, se Edmund se casasse com Mary e se Henry perseverasse em sua ternura e bom comportamento, Fanny afinal se casaria com ele.
As reações de Fanny à “apaixonite” de Edmund por Mary Crawford são mostradas com a entonação do que hoje chamamos de fluxo de consciência ou monólogo interior, maravilhosamente desenvolvida, 150 anos mais tarde, por James Joyce.
Fanny reprimiu como pôde esses pensamentos reativos, porém meio minuto depois passa a achar que Sir Thomas estava sendo muito cruel com sua tia e com ela. Quanto ao assunto principal da carta, em nada contribuiu para diminuir sua irritação. Ao contrário, enfureceu-se de tal modo que por pouco não a fez detestar Edmund: “Nada de bom vai resultar dessa demora”, disse ela. “Por que não resolvem logo? Ele está cego, e nada vai lhe abrir os olhos, pois durante tanto tempo a verdade se mostrou com tanta clareza e de nada adiantou. Vai casar com ela e ser infeliz. Deus queira que não deixe de ser respeitável, apesar da influência dela! o estrague também!” E releu a carta: “ ‘A srta. Crawford gosta tanto de mim’! Bobagem! Ela só ama a si mesma e ao irmão. ‘Há anos que a levam para o mau caminho’! É bem provável que ela é que leve as amigas para o mau caminho. Talvez todas se corrompam mutuamente; no entanto, se a estimam muito mais do que elas as estima, é pouco provável que a prejudiquem a não ser com lisonjas. ‘Ela é a única mulher no mundo com quem eu pensaria em me casar.’ Acredito piamente. Esse é um amor que há de dominá-lo pela vida afora. Se ela o aceita ou recusa, o curacao de Edmund pertence a ela para sempre. ‘Perder Mary implicaria perder Crawford e Fanny’. “Primo, você não me conhece. As duas famílias nunca estariam unidas, se você não as unisse. Ah, escreva, escreva. Acabe com isso de uma vez. Acabe com essa agonia. Decida-se, entregue-se, condene-se.” (pp. 521-2)
Tais emoções, porém, aproximavam-se demais do ressentimento para continuar orientando esse solilóquio por muito tempo.
A chegada do carteiro substitui dispositivos estruturais mais delicados. O romance passa a apresentar sinais de desintegração, lançando mão, mais e mais, da fácil forma epistolar. Esse é um sinal claro de um certo cansaço por parte da autora. Por outro lado, estamos nos aproximando do evento mais chocante de toda a história.
O interlúdio Portsmouth – três meses na vida de Fanny – termina junto com o uso da forma epistolar no romance. A história volta assim ao seu início, por assim dizer, mas agora os Crawford foram eliminados. Miss Austen teria de escrever outro volume praticamente de 500 páginas se tivesse a intenção de narrar as fugas de Henry e Maria e a de Julia com Yates da mesma forma direta e detalhada como fizera ao relatar os jogos e os flertes em Mansfield Park antes de Fanny partir para Portsmouth. Nesse ponto, a forma epistolar ajudou a sustentar a estrutura do romance, mas não resta dúvida de que muita coisa aconteceu nos bastidores e que esse negócio de escrita de cartas é um atalho de não muito grande mérito artístico.
Temos agora apenas dois capítulos mais, e o que resta é nada mais do que um processo de limpeza geral. No final do penúltimo capítulo, Edmund pensa que nunca se casará, mas o leitor sabe mais. No último, o crime é punido, a virtude recebe sua justa recompensa e os pecadores voltam ao bom caminho. Edmund encontra em Fanny a esposa ideal, com uma leve sugestão de incesto: "E se não conseguiria convencê-la de que seu amor fraternal por ele poderia ser uma base suficiente para o amor conjugal." (p.569) "Não há como descrever os sentimentos de uma jovem ante a revelação de um amor que julgava impossível." (p.571)
A sra. Bertram agora tem Susan para substituir Fanny como "sobrinha estacionária” e o tema da Cinderela continua. É uma curiosa contenda, a de que – para além e depois da história contada em detalhes pelo autor de um romance – a vida, para todos os personagens, segue suavemente o seu curso. Deus, por assim dizer, assume a direção.
Notas
1- As observações foram extraídas e adaptadas do livro "Lectures on Literature" de Nabokov. O livro foi traduzido e recentemente publicado pela Três Estrelas.
2- Os trechos em português foram retirados da edição publicada pela Cia. das Letras, com tradução de Hildegard Feist.
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