25 de junho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (3 e 4)

EPÍSTOLA
Mgrilo
                 Mãe,
                 Sei que você vai achar estranho eu te escrever nesta sexta-feira, em vez de telefonar como sempre faço. E que você injustamente se intitula “ mãe das sextas”, apelido cretino que sua única filha inventou para me acusar e ganhar um pouco mais de amor. Mais do que eu ganho, sejamos claros. Ela diz que eu nunca vou à sua casa como se você não existisse. O que é uma mentira, pois tive por aí no Natal, só não pude ir na Páscoa e no dia das Mães. E ela me disse no telefone que só vou na sua casa por que você sempre faz  bife à milanesa para mim, e que você ficou magoada por que eu disse que para esses casos prefiro o vício do que o amor. Outra mentira daquela bostinha da minha irmã que não entendeu nada do que eu disse para ela. E quando for implantado o Islã em nossa família, se por lá eles cortam a mão de quem rouba, por aqui vai ser cortada a língua de quem fala muito. Mas eu soube da Jandiara, a sua velha faxineira que faleceu. Acho que você sentiu bastante. Não tenho muitas lembranças dela, só de uma confusão de alguns anos atrás quando ela queimou seu xale indiano no dia do jantar no casarão da Dona Beth. Depois da berraria você ficou resmungando durante dias.  Mas me lembro pouco, por que naquela época estava mais preocupado com a minha juventude. Espero que você a tenha perdoado, por que sempre achei ela uma boa pessoa. Muito trabalhadora.  Você ficava fascinada com o jeito dela consertar o ferro elétrico e o varal de roupas. Ela conseguiu criar um filho com dificuldade e isso é bastante coisa. Mas afinal o que foi feito do xale esburacado? Virou lenço de cabelo da minha ex-irmã?
                do seu filho com amor
 ***
VARAL INSPIRADO
 Gilda Niemeyer
       O telefone toca e Dora corre para atender.
       — Alô, é Dona Dora?
       — Sim, sou eu, quem fala?
       — É a Dalva, amiga da Rosa.
       — Hum, responde Dora, angustiada e sentindo que chegava mais um problema.
       — A senhora se lembra que eu trabalhei na sua casa de Ipanema, substituindo a Rosa? Deve lembrar que um dia resolvi fazer um bolo e, pra surpresa de todos, o bolo solou?
       — Lembro bem, responde Dora, antecipando o que viria, disfarçando a ansiedade que tomava conta dela.
       — A Rosa está muito mal desde que foi despedida, só faz chorar! Estamos todos preocupados com a situação dela. Ela gostava tanto da casa, da família e se dedicou tanto!...
       Lá vem bomba!, pensa Dora, que responde sem demora:
       —Você sabia que ela queimou o meu xale de seda lindo de morrer, trazido da viagem que fiz à India e que eu precisava de usar naquela noite pra festa de amigos, e sem me dizer  nada me entregou o xale queimado embrulhadinho? Onde vou achar outro igual?
       Dalva responde antes de Dora terminar a frase, ofegante, a voz imperiosa:
      — Eu não sei, Dona Dora, é onde a senhora vai encontrar outra Rosa. E segue enumerando os fatos heróicos da amiga, a dedicação de anos, a guerreira que ela é , e com que valentia serviu a todos da família.
       Dora começa a se mexer na cadeira, sentindo-se irritada e ansiosa, doida para desligar o telefone e fazer a Dalva se calar. Caramba, e ela ainda me liga às sete horas da manhã! Suas palavras são finais: — Vou pensar, encontraremos uma solução justa, mas agora preciso desligar.
       Ela vive um conflito. Como encontrar a chave perdida? De fato, como fazer justiça a esse ser desolado por uma injustiça que diz ter sofrido? Dora caminha pela casa buscando inspiração para o enigma, desiste, insiste, até que se dirigindo para a área de serviço e olhando para o teto, verifica que aquele varal de roupas que por séculos ficou desprezado, pendurado nos ares e que ninguém sabia consertar porque não davam conta de estruturar as cordinhas, estava lá no seu lugarzinho de sempre, bonitinho, dizendo:  oi! estou aqui cheio de fraldinhas, cuequinhas, blusinhas esticadas, bem colocadinhas, porque a Rosa, aquela craque em quase tudo, de pastéis à moquecas, a que conserta máquinas e geladeiras, guerreira, madeira de dar em doido, como bem classificou a amiga Dalva, teve a sabedoria de me colocar a serviço, pôs os neurônios pra funcionar. Chama ela de volta.
       Dora liga de novo para Dalva.
       — Diz para Rosa que eu quero ela de volta, me faz muita falta, não podemos ficar nem mais um dia sem a presença dela. Espero-a na segunda-feira.
       E foi assim que a visão do varal de roupas, embandeirado, redimiu a ambas, patroa e funcionária, aproximando-as, fazendo-as amigas inseparáveis até hoje.

24 de junho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (1 e 2)

De um mesmo caso, da mesma sequência de fatos, saem histórias diferentes. Modos diversos de narrar evidenciam pontos de vista distantes de um mesmo episódio. Um único caso resulta em várias histórias porque cada autor lança mão de suas experiências no momento em que se faz narrador, e porque a escolha do protagonista determina a interpretação dos acontecimentos.

Na série "Todos os contos de um caso", seis autores exercitam-se, reinterpretando o seguinte episódio: uma mulher descobre que sua empregada de muitos anos queimou um chale valioso e escondeu o ocorrido. Irritada, a despede. Mas se arrepende no momento em que contempla um varal que a mesma empregada consertou. E a readmite.

Nesta postagem, apresentamos dois dos contos desta série.
*** 
RARIDADES
Ruth Lifschits
          Lindalva se sente vazia.  A mulher calma e humilde tem pressa.  Hoje o trem está lento, parando muito. Quer chegar logo ao Leblon,  pegar sua carteira, receber seu dinheiro e acabar com essa história. Mas ainda tem um ônibus para pegar - muito chão a percorrer. "Trabalhei quinze anos  na mesma casa. Fui despedida.  E nem pude me explicar, não houve como. D. Luíza falou duro:   só me apareça aqui no fim do mês, nem um dia antes.
          Depois de remoer seus maus pensamentos por mais hora e meia, ela finalmente desce na Central e, ao ver que não tem nenhum ônibus no ponto final, decide pegar uma van, "é mais caro mas chego logo, acabo com isso."  
          E as cenas  daquela triste segunda-feira do início do mês também entram na van  com ela. Tenta pensar em outras coisas, na irmã que acabou de voltar de um passeio à Aparecida, na tia que lhe telefonou à cata de novidades, mas tudo somente passa pela cabeça dela sem ficar.  Já o que se refere ao dia em que foi despedida entra, fica e rende muita preocupação.  Aquele dia tinha começado como todos os outros - normalmente. Primeira segunda-feira do mês na casa de Luiza Vaz Lobo era dia de cuidar das porcelanas, das taças e copos de cristal guardados na sala. Horas eram forçosamente dedicadas a lavar, secar e recolocar tudo de volta nos lugares.  E  com muito cuidado para não quebrar nem danificar peça alguma. E  mais cuidado ainda com a louça mais antiga da família - Companhia das Índias .  Mas Lindalva gostava daquela rotina. Detalhista, adorava manusear peças bonitas, cuidar delas como se fossem bebês recém nascidos.   E se lembrou da primeira vez que recebeu ordem para cuidar das preciosidades da patroa. Ela pedira  "atenção com seus movimentos, considere cada objeto como se fosse um recém nascido. Delicadeza e firmeza" e continuara falando do valor das peças, importância para a família, e bla bla bla. Lindalva tinha gostado da idéia de considerar tudo à sua frente como seres frágeis e delicados -  bebezinhos. Desse dia em diante, sua maneira de trabalhar mudou. Se dirigia a tudo pensando "tô cuidando dos meus filhotes".  Seus gestos se tornaram mais brandos. Na verdade, Lindalva era uma pessoa atenta, cuidadosa e muito esforçada. Era dela querer fazer o melhor sem esperar elogios. 
          Mas tudo isso tinha se acabado, um imprevisto pôs tudo a perder. Nem teve  chance de explicar que tinha se assustado. Luiza não quis  saber de nada "mas ela é que começou tudo. E não foi D. Luiza que entrou aflita, me chamando e pedindo pra ajudar? Fez um estardalhaço tamanho que eu tomei um susto.”    
          Ao ouvir os pedidos aflitos,  Lindalva colocou o ferro na posição de descanso: na vertical, apoiado na parte traseira e correu para atender a patroa. Ao voltar, encontrou o ferro caído sobre a echarpe de  seda pura chinesa. Ergueu o ferro rapidamente e viu, horrorizada,  que a  valiosa peça estava queimada. O delicado estampado em tons de azul e verde tinha adquirido um enorme ponto negro. E agora? Luiza  contava com essa echarpe para sair. De manhã, antes de ir para a empresa, tinha pedido: vestido preto de fenda lateral, colar e brincos de pérola, relógio Cartier, a bolsa preta de flores de cetim , os sapatos pretos Chanel e as meias cor da pele que tinha trazido de Paris há pouco tempo. E a famosa tira chinesa de seda estampada, há anos na família e que poucas vezes saía do armário. Lindalva já tinha preparado tudo, e só faltava desamassar a seda com o ferro. Tinha deixado para o final pois a peça precisou ser lavada. "Tava com cheiro de guardado, D. Luiza não ia gostar. Ela quer tudo prontinho sobre a cama do quarto de vestir.”   
          Coração disparado, dentes trancados, dobrou a echarpe e deixou-a sobre a tábua de passar. Decidiu jogar água no rosto antes de enfrentar Luiza. "Explico tudinho pra ela. Vou trabalhar o resto da vida pra pagar o prejuízo, não faz mal." Nessa hora o telefone tocou e ela correu para atender na cozinha. Ouviu o grito de   Luiza, largou o telefone de qualquer maneira e voltou para a área.  A patroa estava com a echarpe aberta nas mãos e o ponto negro fitava as duas mulheres. 
          Passados  vinte e nove dias, ia enfrentar uma D. Luiza ex-patroa. Não tentaria explicar nada. Não tinha conseguido se explicar na hora, não seria agora que conseguiria. E para quê? Nada ia mudar, azar seu. Pegaria seu dinheiro, a carteira de trabalho e rua. Não queria ficar muito tempo lá, não com todas as lembranças revirando em sua cabeça. Qualquer dia  sua irmã  iria lá para pegar o restante de suas coisas. " Vai ser difícil conseguir emprego igual". 
          Até o acidente com a echarpe de seda, Lindalva tinha tido patrões compreensivos e corretos. Tinha convivido com os filhos deles numa relação amiga e carinhosa. Todos confiavam nela.  Com trabalho sério, esforço e dedicação, ela conquistara  o respeito de todos. Gostava daquela família. "Mas isso já acabou", pensou enquanto se dirigia à portaria do prédio. Passou facilmente por todas as barreiras de segurança e pegou o elevador para o décimo primeiro andar. Estranhou ter de tocar a campainha, acostumada com  chaves para entrar. Mas, isso também era passado.
           - D. Luiza em pessoa abriu a porta!, contou mais tarde para a irmã.
          Luiza não era nem de atender telefone nem de abrir a porta para ninguém. Lindalva estava meio catatônica, sem saber como interpretar o comportamento de sua ex-patroa.
          - Lindalva, venha aqui para a sala. Quero conversar com você. 
          E foi um monólogo longo, mal ouvido por Lindalva. 
          Horas depois, ela se lembrava vagamente de  "quero que você continue trabalhando aqui" misturado com "tantas qualidades, seu bom serviço", "mais acertos do que...". Mas Lindalva nunca se esqueceu do olhar inseguro da patroa. 
          Nas muitas vezes em que tentou conversar sobre esse caso com a irmã, nunca conseguiu explicar em detalhes o que  tinha se passado. Tentava ordenar os pensamentos, se emocionava e terminava dizendo  "D. Luiza e eu acabamos nos entendendo."  A irmã queria detalhes, perguntava se tinha contado sobre o susto, sobre o ferro ter caído, mas Lindalva não enxergava as minúcias. O que importava era "não perdi meu emprego, trabalho onde gosto.”
          O que Lindalva nunca soube é que foi salva pelas cordas do velho secador de roupas. 
          Dias depois de ter mandado Lindalva embora,  Luiza reparou que o varal estava com cordas novas e muito bem ajustadas. Trabalho de mestre, reconheceu. Perguntou ao seu motorista,  que tomava um cafezinho na cozinha, se tinha sido ele o autor da proeza, já pronta para fazer elogios.  "Não, foi a Lindalva.” E ela parou no ar, dando-se conta do estrago que tinha feito, da sandice que estava para cometer. 
          Na mesma noite, durante o jantar, ela se surpreendeu interrompendo o marido para dizer: 
          - Artur, acidentes acontecem.

***
COADJUVAÇÃO
Patricia Fucci
           Sebastiana, a “Bá”, viveu sua vida na da família de Aurora, andou nos seus passos, velou seu sono.
          Negra raçuda, empurrou aquela gente pra frente.
          Veio para o Rio de Janeiro bem mocinha, fugida da pobreza de sua terra natal, Santana do Bom Parto, interior de Sergipe. Veio pela mão do padrinho com emprego já acertado na casa de Aurorinha e Jarbas, que haviam acabado de se casar.
          Rapidamente sua presença impregnou a casa, no brilho das pratas, no reluzir dos cristais, no cheirinho gostoso do refogado, no doce aroma do café.
          De manhã botava os meninos pra escola, à noite lhes contava estórias e entre uma coisa e outra era contente. Limpava, lavava, passava, fazia sua parte naquele projeto de vida e cumpria seu papel. Às vezes, quando vinha o banzo, tocava a trabalhar mais ainda, cantarolando baixinho pra espantar a tristeza.
          Os anos passavam depressa, as crianças cresciam, as tarefas domésticas modificavam e a vida seguia seu curso. Cada dia amanhecido era pleno de sentido, tinha o coração leve e sereno daqueles que sabem o que é essencial na vida e simplesmente o fazem, sem questionar.
          Uma quarta-feira qualquer de abril amanheceu como todas as outras. Lá por volta de meio dia Aurora grita por Sebastiana, que prontamente lhe atende o chamado subindo as escadas. Encontra no quarto uma Aurora impaciente, exibindo em uma das mãos uma echarpe de seda queimada por ferro de passar, exigindo explicações, visivelmente alterada.
          Sebastiana tenta lembrar quando passara a peça, mas não se recorda.
          Tenta dizer isso a Aurora que não a escuta e, jogando a echarpe no chão, manda pôr fora, já não lhe serve mais. Sai deixando pra trás o ruído cortante da porta batida. E Sebastiana fica, como sempre ficava, remanescida. Não tinha portas pra bater nem ouvidos para lhe ouvir gritar, só cabia no espaço de ficar. Ficar, refazer e continuar.
          Era final de tarde e o céu se punha cinza quando Aurora apontou o carro no portão. Ao longe, os lençóis brancos dançavam no varal e, através deles, percebeu a sombra de Sebastiana que se apressava em recolher a roupa ante a iminência do temporal. Com gestos firmes de quem faz o que é preciso, Sebastiana dobrava a rouparia.
          Subitamente, Aurora se deu conta de quantas vezes aquela mulher se antecipara para tornar sua vida melhor, quantas vezes se acordou para preservar seu sono, quanto de sua vida lhe emprestou, graciosamente.
          Sua alma foi invadida por uma emoção sem precedente, um misto de gratidão e compaixão por aquela mulher e o inconformismo por ter-lhe sido tão malcriada por nada, por absolutamente nada, como pôde, meu Deus?
          Acelerou o carro e só parou quase em cima do varal. Gritou por Sebastiana e abraçou-a pedindo perdão, todo perdão do mundo. Aqueles instantes do abraço disseram mais que todas as palavras diriam, e, silenciosamente se recompuseram, mas agora com uma cumplicidade diferente, mais explícita, que fortaleceu aquela aliança para sempre.
          Jarbas faleceu há dois anos, os meninos casaram, restaram no casarão Aurora e Sebastiana, que se fazem farta companhia. Freqüentemente presenteiam os “meninos” e suas famílias com as maravilhosas e secretas receitas e, quase sempre, estão às voltas com os netos, que já são cinco, levando às jovens mamães sua vasta experiência com os pequeninos.
          Muitos anos mais tarde, Aurora e Sebastiana finalmente tiveram o merecido reconhecimento, foram eternizadas por J.P. de Barros, um dos netos de Aurora que tinha se tornado um grande escritor, e escreveu no início de seu romance mais famoso: “Quando lembro o bom da infância, lembro daquelas ternas mãos cuidando de mim, que simultaneamente se permutavam, duas pretas e duas brancas, na mescla da doce presença das minhas adoradas avós Aurora e Sebastiana”.

Sísifo feliz (a propósito do trabalho da arte)

Albert Camus 
(In: O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo,
 trad. de Urbano Tavares Rodrigues e Ana de Freitas, Lisboa: Edição Livros do Brasil, s/d.)
          Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em conseqüência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
          A acreditar em Homero, Sísifo era o mais ajuizado e mais prudente dos mortais. No entanto, segundo outra tradição, tinha tendências para a profissão de bandido. Não vejo nisto a menor contradição. As opiniões diferem sobre os motivos que lhe valeram ser trabalhador inútil dos infernos. Censura-se-lhe, de início, certa leviandade para com os deuses. Revelou os segredos deles. Egina, filha de Asopo, foi raptada por Júpiter. O pai espantou-se com esse desaparecimento e queixou-se dele a Sísifo. Este, que estava ao corrente do rapto, propôs a Asopo contar-lhe o que sabia, com a condição de ele dar água à cidadela de Corinto. Aos raios celestes, preferiu a bênção da água. Por tal foi castigado nos infernos. Homero conta-nos também que Sísifo havia acorrentado a Morte. Plutão não pôde suportar o espetáculo do seu império deserto e silencioso. Enviou os deuses da guerra, que soltou a Morte das mãos do seu vencedor.
          Diz-se ainda que, estando Sísifo quase a morrer, quis, imprudentemente, pôr à prova o amor de sua mulher. Ordenou-lhe que lançasse o seu corpo, sem sepultura, para o meio da praça pública. Sísifo encontrou-se nos infernos. E aí, irritado com uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão licença para voltar à terra e castigar a mulher. Mas, quando viu de novo o rosto deste mundo, sentiu inebriadamente a água e o sol, as pedras quentes e o mar, não quis regressar à sombra infernal. Os chamamentos, as cóleras e os avisos de nada serviram. Ainda viveu muitos anos diante da curva do golfo, do mar resplandecente e dos sorrisos da terra. Mercúrio veio pegar no audacioso pela gola e, roubando-o às alegrias, levou-o à força para os infernos, onde o seu rochedo já estava pronto.
          Já todos compreenderam que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas suas paixões como pelo seu tormento. O seu desprezo pelos deuses, o seu ódio à morte e a sua paixão pela vida valeram-lhe esse suplício indizível em que o seu ser se emprega em nada terminar. É o preço que é necessário pagar pelas paixões desta terra. Não nos dizem nada sobre Sísifo nos infernos. Os mitos são feitos para que a imaginação os anime. Neste, vê-se simplesmente todo o esforço de um corpo tenso, que se esforça por erguer a enorme pedra, rolá-la e ajudá-la a levar a cabo uma subida cem vezes recomeçada; vê-se o rosto crispado, a face colada à pedra, o socorro de um ombro que recebe o choque dessa massa coberta de barro, de um pé que a escora, os braços que de novo empurram, a segurança bem humana de duas mãos cheias de terra. No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície.
É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa. Um rosto que sofre tão perto das pedras já é, ele próprio, pedra! Vejo esse homem descer outra vez, com um andar pesado mais igual, para o tormento cujo fim nunca conhecerá. Essa hora que é como uma respiração e que regressa com tanta certeza como a sua desgraça, essa hora é a da consciência. Em cada um desses instantes em que ele abandona os cumes e se enterra a pouco e pouco nos covis dos deuses, Sísifo é superior ao seu destino. É mais forte do que o seu rochedo.
          Se este mito é trágico, é porque o seu herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? O operário de hoje trabalha todos os dias da sua vida nas mesmas tarefas, e esse destino não é menos absurdo. Mas só é trágico nos raros momentos em que ele se torna consciente. Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
          Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também fazer-se na alegria. Esta palavra não é demais. Ainda imagino Sísifo voltando para o seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as imagens da terra se apegam de mais à lembrança, quando o chamamento da felicidade se torna demasiado premente, acontece qua a tristeza se ergue no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O imenso infortúnio é pesado demais para se poder carregar. São as nossas noites de Gethsemani. Mas as verdades esmagadoras morrem quando são reconhecidas. Assim, Édipo obedece de início ao destino, sem o saber. A partir do momento em que sabe, a sua tragédia começa. Mas no mesmo instante, cego e desesperado, ele reconhece que o único elo que o prende ao mundo é a mão fresca de uma jovem. Uma frase desmedida ressoa então: "Apesar de tantas provações, a minha idade avançada e a grandeza da minha alma fazem-me achar que tudo está bem." O Édipo de Sófocles, como o Kirilov de Dostoievsky, dá assim a fórmula da vitória absurda. A sabedoria antiga identifica-se com o heroísmo moderno.
          Não descobrimos o absurdo sem nos sentirmos tentados a escrever um manual qualquer da felicidade. "O quê, por caminhos tão estreitos?..." Mas só há um mundo. A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra. São inseparáveis. O erro seria dizer que a felicidade nasce forçosamente da descoberta absurda. Acontece também que o sentimento do absurdo nasça da felicidade. "Acho que tudo está bem", diz Édipo e essa frase é sagrada. Ressoa no universo altivo e limitado do homem. Ensina que nem tudo está, que nem tudo foi esgotado. Expulsa deste mundo um deus que nele entrara com a insatisfação e o gosto das dores inúteis. Faz do destino uma questão do homem, que deve ser tratado entre homens. Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa. Da mesma maneira, quando o homem absurdo contempla o seu tormento, faz calar todos os ídolos. No universo subitamente entregue ao seu silêncio, erguem-se as mil vozinhas maravilhosas da terra. Chamamentos inconscientes e secretos, convites de todos os rostos, são o reverso necessário e o preço da vitória. Não há sol sem sombra e é preciso conhecer a noite. O homem absurdo diz sim e o seu esforço nunca mais cessará. Se há um destino pessoal, não há destino superior ou, pelo menos, só há um que ele julga fatal e desprezível. Quanto ao resto, ele sabe-se senhor dos seus dias. Nesse instante sutil em que o homem se volta para a sua vida, Sísifo, regressando ao seu rochedo, contempla essa seqüência de ações sem elo que se torna o seu destino, criado por ele, unido sob o olhar da sua memória, e selado em breve pela sua morte. Assim, persuadido da origem bem humana de tudo o que é humano, cego que deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, está sempre em marcha. O rochedo ainda rola.
          Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

12 de junho de 2011

Questão de singularidade

Maria Tereza Albernaz
          Não sou escritora, uma simples leitora. Muito simples, muito comum. Esta deve ser a razão pela qual o meu desejo despretensioso de despejar, em um papel, idéias, confissões e histórias esbarrou em um artigo chamado “A vertigem da liberdade”. Vou me explicar. 
          Com vontade de escrever, deixei os meus pensamentos correrem até encontrar um tema para o exercício. Escolhido o assunto, comecei a anotar em listas o que eu gostaria de incluir no texto. Faço com freqüência listas de todo o tipo e, neste caso, não via outra forma de tratar a questão – gostos e desgostos poderiam identificar uma pessoa  idiossincrática? Pretendia escrever sobre isto.   
          Ainda esboçando parágrafos, quando parei para consultar o dicionário, me lembrei das palestras de José Castello que havia escutado recentemente. Como me entusiasmei com as falas deste cronista literário – assim foi chamado -, resolvi conhecer o seu blog. Lá encontrei o artigo com este sugestivo nome “A vertigem da liberdade”. Dele extraí uma lição que, de fato, é dirigida a escritores iniciantes. Aliás, o texto confirma o que já foi dito, de uma forma ou de outra, neste Atelier. Aqui mais suavemente, talvez por ser a Bia quem é. 
          José Castello alerta para o risco do uso desmedido de liberdade na escrita como se não fosse possível controlar o jorro de emoções íntimas do escritor. Em outras palavras, diz que o impulso ou o transe que faz o escritor derramar pensamentos em um papel só produz “matéria prima” a pedir trabalho, disciplina e esforço. Lembra João Cabral de Melo Neto que comparava o trabalho do escritor ao ofício do escultor. “Bloco de mármore, matéria prima que, através de cortes sucessivos, traz a luz, enfim, uma escultura.” Assim, ressalta que o resultado da escrita “solta” forma somente o primeiro “emaranhado” para ser trabalhado.
          Para fazer uma boa literatura é preciso escrever uma, duas... muitas vezes. Cortar, aprimorar, ir e voltar às fronteiras da essência do ser. Também observar regras. E a “alma caótica” do escritor deve aparecer somente nas entrelinhas da escrita. 
          Naquele momento, ler o artigo do José Castello me inibiu. Não me imagino escritora ou artista, nem mesmo compromissada com a “boa literatura”, mas gosto de escrever e também de deixar que meu ser ou minha “alma caótica”, como diz o José Castello, atravesse este canal. No dia que comecei a fazer as listas para seguir com o meu texto sobre idiossincrasia, estava completamente abandonada nos pensamentos espontâneos, inebriada pela “liberdade absoluta”. 
          Por ora, deixei de lado a idéia de revelar em meu texto um pouco de mim. Afinal escrever sobre idiossincrasia era só mais uma tentativa para chegar a este lugar. Concordo com José Castello. Preciso controlar a catarse emocional.

Cabral

          João Cabral, em A inspiração e o trabalho de arte (1952), diz que tanto uma - a inspiração -, quanto o outro - o trabalho de arte -, ambos são realizados em nome da expressão pessoal. Cada poeta tem sua maneira pessoal de trabalhar.
          Porém, somente a elaboração cuidadosa e artística da experiência vivida, em cruzamento com um amor à linguagem, pode criar uma determinada corrente e certos efeitos formais diferenciados. Graças ao esforço e à inteligência, a proporção e a objetividade "dão a ler",  e promovem no poeta ou autor um "desprender-se do limbo".  Já o poema, como depoimento da subjetividade e que exprime a personalidade, profere a descrença no ser humano.
          Trata-se da velha oposição entre a técnica e a improvisação? Não, a discussão vai além. João Cabral chama atenção para o "olho crítico", que não se reduz simplesmente à técnica. Da mesma maneira, quem ouve jazz sabe que a improvisação não se opõe à técnica.
          Mas, sublinha Cabral, há claramente dois modos de escrever poesia.  Nos "inspirados", ativa-se o "olho crítico" em momento posterior à  realização da obra. Para os que se vêem como trabalhadores da arte, no entanto, a obra é escrita pelo próprio "olho crítico". Ele é o responsável pela elaboração das experiências.
          O entusiasmo de Cabral em relação ao trabalho o leva a ser bastante contundente e várias vezes ele repete o advérbio "jamais". Para ele, a escrita não deve ser jamais pletórica, não deve jamais disparar em discurso, jamais ser feita debaixo da experiência imediata, jamais ser ocasional.
          Trabalho é a palavra-chave.
          Temos uma visão capitalizada do trabalho mas trabalho não é necessariamente uma opressão. Trabalho é fonte de criação, aponta Cabral, adensamento de riquezas.  É soma de momento melhores e piores, reviração do objeto por todos os lados. O trabalho de arte promove a despedida do objeto  e do poema, filho independente que se vai e não um membro que se amputa, incapaz de viver por si mesmo.
          A experiência imediata de cada um é tão-somente uma reserva,  para ser esquecida e ressuscitada sob outra expressão, no contato íntimo com a experiência geral da realidade.
          A originalidade do artista, imerso em seu tempo, diferencia Cabral, não se identifica com a originalidade do homem. O artista precisa criar uma nova dicção e não se sujeitar  à morbidez. A escrita artística acontece de modo consciente e por isso percebe aquilo que se faz sem ponto de referências e também o que é eco de outras vozes, a dicção de outros poetas, que - diz Cabral -  é preciso eliminar.
         Contudo, todo trabalho é violento. O do poeta corta mais que acrescenta. Mas igualmente todo trabalho é  puro exercício, vale por si, independentemente de resultados.
          Dessa maneira, João Cabral diferencia obra de trabalho e chama atenção para o risco que corre o trabalho da arte quando passa a buscar meios para que ele se faça mais demorado e difícil, quando passa a se impor barreiras formais a fim de ter mais resistências a vencer. Os operários da literatura querem propagar o suicídio da intimidade absoluta, o que é interessante, mas também podem provocar a morte da comunicação. Formalismo em excesso é a base do hermetismo e do desprezo pelo leitor. O poeta formalista identifica o leitor, qualquer leitor, consigo mesmo.
          Na parte final do texto, Cabral sai em defesa da comunicação. Sua sugestão é que essa se garanta pelo controle, pela crítica, pela percepção da necessidade do leitor e pela "rua" dos homens,  que é muito mais do que um clube de confrades. Na rua, o poeta encontra a linguagem em comum, a vida em comum.
          Cuidado - aconselha Cabral - com o mergulho na mitologia privada e na transformação do leitor em consumidor. Cuidado com o leitor. "Ele colabora indiretamente na criação", e a criação subordina-se (o verbo está no texto) à comunicação.
          O poeta ou autor cabralino escreve na linguagem comum, tema da vida de homens e mulheres, temas comuns. Ele procura mostrar a "beleza no que todos vêem e não falar de nenhuma beleza a que somente ele teve acesso". Com isso, a espontaneidade ganha novo sentido - uma enorme identificação com a realidade, e valoriza-se o coletivo, revelado através da voz individual. 
Bia Albernaz 
A íntegra desta conferência, pronunciada na Biblioteca de São Paulo, em 1952, encontra-se nas Obras Completas do autor ou ainda numa pequena edição com tiragem de 500 exemplares pela portuguesa Fenda, na coleção As lágrimas de Eros 1, de 1982.

3 de junho de 2011

Algumas oficinas literárias pelo mundo (indicações de Assis Brasil)

Programas de Creative Writing em universidades americanas
Iowa University
University Easter Washington
University of Cincinnati
Siracuse University
Arizona University
George Mason University (Associated Writing Programs (AWP))

Atelier d'écriture na França
Universidade de Grenoble III (com Claudette Oriol-Boyer, da revista TEM (Texte en main))

Talleres na Espanha
Factoría de Alquimia Literaria

Na América Latina
Universidad de El Paso (México) (com o curso de Maestria en Creacion Literaria)
El Libro de los Gatos
Oficinas cubanas dispersas em sindicatos e associações
Casa de la Cultura Ecuatoriana
Taller Interactivo de Excritura na Argentina (com Laura Calvo, via correio eletrônico)
Outros talleres argentinos com Ángel Leiva; Mempo Giardinelli; Ricardo Piglia; e Nicolás Bratosevich
Talleres do Ministério da Educação do Uruguai (coordenados por Washington Benavides)
No Paraguai, talleres itinerantes com Augusto Roa Bastos

Leia o texto completo do autor sobre Oficinas literárias em seu site.

Jennifer

Maria Tereza Albernaz  
Anjo de tênis, Djanira
          Jennifer é uma menina de sete anos que mora na Rocinha. Pequenina, como as meninas desta idade, tem bochechas grandes, olhos escuros e cabelos compridos. No meio de crianças vestidas com roupas coloridas, roupas de adulto em corpo de meninas e cabelos enfeitados ou despenteados, Jennifer aparece com roupas discretas, rabo de cavalo e uma fita larga no cabelo, usada também por muitas garotas no Leblon.
          Quieta e sem amigos, não participa das brincadeiras dos colegas, não grita, não corre e atende com prontidão as solicitações das professoras. Se não se integra nos jogos espontâneos da turma e, nos jogos dos programas de aula, participa com animação comedida, defendendo-se quando querem passar na sua frente. De forma contida, não cede. Prefere ignorar a discutir pelo que acha ser seu direito. Se uma das professoras faz uma pergunta ou pede a colaboração para qualquer atividade, na algazarra que acontece com freqüência, ela levanta insistentemente seu dedinho até ser chamada. Outro dia, depois de um exercício de recorte de revistas e colagens, quando foi solicitada ajuda para a arrumação, Jennifer se ofereceu mais uma vez com o dedinho levantado e, com graça e rapidez, apanhou uma vassoura para juntar os papeis do chão. 
          A garotinha faz seus deveres cuidadosamente, desenha e gosta de colorir. Seu material escolar é bastante simples, mas não faltam em sua mochila o básico lápis e borracha. Parece tímida, mas não se envergonha em pedir explicações, aguardando com paciência sua vez em ser atendida. Se termina as tarefas antes dos outros, espera calada até a próxima atividade. 
          Como todos os alunos, sem exceção, seu nível de escolaridade é muito baixo. Lê com muita dificuldade e comumente não entende nem mesmo os enunciados dos exercícios. O descompasso é imenso entre os deveres de casa que trazem da escola pública e o conhecimento que os alunos na realidade têm. Não importa a matéria – matemática, português ou qualquer outra. Em geografia, por exemplo, muitas das crianças não sabem distinguir cidade de bairro, e algumas desconhecem que moram no Brasil.
          O sorriso de Jennifer é doce. E está sempre em seu rosto. Se não é atropelada pelos colegas, se despede das professoras com um abraço. Não sei sua história, mas enternece ver esta menininha na Rocinha.