15 de junho de 2016

O mito de Sísifo e as carências


filipe marinheiro
          Gritarei: absurda, suicida, sobre as matérias e substâncias desta obra tão excepcional. Inacabada. Aonde encontro carências e algumas náuseas. De resto uma obra fenomenal. Obra de carácter filosoficamente complexa aonde o paradoxo aparentemente pessimista enquanto entendimento do pensar absoluto é uma outra coisa absurda, ténue ou liquefeita que não aquela que o leitor retirará enquanto estética e ou inutilidade doutro pensamento como um sentido oculto nas palavras entre as palavras submersas nas ideias simples.
           Como perceber, navegar dentro desta obra sem as traves mestras filosóficas que suportam todos os níveis e desníveis do Mito? Sísifo na mitologia grega era considerado o mais astuto de todos os mortais. Mestre da malícia e da felicidade, era considerado um dos maiores ofensores dos deuses, tendo conseguido enganar a morte por duas vezes, fintando os deuses Thanatos e Hades.
          Ao morrer, Sísifo foi considerado um grande rebelde e foi condenado pelos deuses a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra até o cume de uma montanha só para ela rolar montanha abaixo sempre que estava prestes a alcançar o topo, começando o processo maquinal, intelectual de novo. Por este motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada Trabalho de Sísifo. Os deuses tinham pensado, com as suas razões, que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança ou devoção pela tortura daquele que fragmenta o pensamento. 
          Sísifo é o herói absurdo tanto pelas suas paixões como pelos seus tormentos. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a Paixão pela Vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar nada. Absolutamente: Nada. E o que é o Nada neste contexto? No final desse esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o objectivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desmoronar-se em alguns instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os cimos. E desce de novo para a planície. Ei-lo o pretexto sentido, possessivo, primitivo. Pois é concretamente durante esse retorno, nessa preciosa pausa, que Sísifo nos deverá interessar. Um rosto por dentro das inúmeras máscaras evidentes e não tão-só nada evidentes [escondidas das verdades, não da verdade absoluta] a trespassarem de rostos em rostos as camadas que envergam, examinam, planeiam, plagiam os fundamentos de todo aquele esforço. Uma angustiante empreitada levada a cabo por uma figura mitológica desenhada a desenhos de músculos a saltarem da carne suja deste Ser tão límpido. Tão Puro. Condenado a reencontrar sempre o seu fardo.
          Terrível tal rosto assim tão perto das pedras como um espelho de pedra, é já ele próprio uma pedra. Vê-se esse homem a redescer, com o passo pesado, mas igual, para o tormento sem escapatória imagética ou transcendente, cuja finalidade, jamais conhecerá. Nessa hora é com uma respiração útil que Sísifo ressurge tão certamente quanto a sua infelicidade. É nessa hora portanto que toma a consciência [alguma pelo menos]. A cada um desses momentos, deslizes, movimentos em que ele deixa os cimos e se afunda pouco a pouco no covil dos deuses, se torna um superior ao seu destino. É mais forte que seu rochedo: a sua jura. A Fidelidade. Quem saberá destas coisas? Um fotógrafo da Alma ou um Pensador da Alma ou um próprio Ser? A eterna busca do homem por um sentido para a vida: eis aí um esforço talvez inútil e talvez útil. Peca aqui a filosofia do fundamento desiludindo-me.
          Parece que a humanidade está até ainda hoje a pagar pela rebeldia de Sísifo. Será isto um facto ou subterfúgio? Todavia o “absurdo” para Albert Camus nasce das nossas infinitas tentativas de dar sentido a um mundo sem sentido, e a sua obra evidencia as angústias e conflitos daquela época em que mergulhou a tinta da caneta sobre o tecido do papel ou viveu heroicamente, mas que nos continuam e continuarão a desafiar na actualidade. Defronte o dilema da futilidade do esforço e da certeza da extinção do homem e do universo, o que nos restaria então? Por que nós, humanidade, não deveríamos cometer suicídio? Nesta matéria ambivalente o autor acaba, por um lado, a condenar, estrangular o sentido da liberdade individual, blasfemando-a como um massacre. Ou, por outro, a anunciar uma leveza da sustentabilidade da vida que se deve viver numa liberdade tangível, orgânica: eis um pecado capital que este ensaio empurra [Camus suicida-se absurdamente – contexto situacional, enquadramento histórico-social e omissão ou mesmo diria esquecimento da abordagem do paradigma transcendental da beleza – e pior não seduz à lucidez] transpondo a vida exclusivamente com as sementes e raízes da lógica “metafórica” até esbater num sentimentalismo carinhoso, amoroso. O que lhe não ocorreu foi que, girando-a com uma completa força invisível que a administra desesperada para o inferno da liberdade intangível, inorgânica. a liberdade também exige os seus tentáculos horríveis, mutantes, disformes, tresloucados. Liberdade terrivelmente fascinante quanto bizarra. 
          Contudo, para Albert Camus, o suicídio não é a solução finita para o absurdo, é antes ao contrário, nessa que é a sua negação, a negação da própria existência humana. Não podemos resolver o problema do absurdo, negando toda a sua existência. Precária ou Odiosa ou Prodigiosa. Perante o absurdo, devemos dalguma maneira alegórica, revoltar-nos instigando os outros para que se meditem nas mortes às derivas entre as suas mãos contra as forças vertiginosas da cabeça à cabeça, batendo com o sangue na tal pedra que sobe e desce em rotação alquímica. Por que essa revolta? Talvez seja a consciência da nossa condição, mas sem a resignação que deveria acompanhá-la. Aceitar o absurdo é aceitar a morte. Recusá-lo é aceitar uma vida no precipício a resvalar escarpas abaixo até rebentar com o corpo todo: destruí-lo.
          Nenhuma meditação absurda, alienante nesta matéria é enunciada ao longo do ensaio. Nessa derradeira destruição, camada por camada, não se pode encontrar o conforto, somente “viver num vertiginoso cume – isso é integridade, o resto é subterfúgio.” O “cume vertiginoso” para A. Camus é a experiência inteiramente consciente de estar vivo condenado à eterna repetição. Consciente dela, descobre-se que “a lucidez que devia constituir sua tortura ao mesmo tempo coroa sua vitória”. Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”.
          O filósofo Albert Camus considera que autores da filosofia existencialista como Kierkegaard e Sartre fracassaram em tentar resolver o conflito para as consequências do encontro entre um ser humano racional e um mundo irracional, porque ele é insolúvel justamente por pertencer à existência humana. Ter, por exemplo, a consciência de que liberdade e justiça são relativas é na verdade a condição para não desistir delas, e não o contrário. Também ele se desintegra, fracassa. Desaponta. Sem embargo, «o Mito de Sísifo» deverá ser para os leitores um mero apoio de vida. Ele não arrasta ilusões porém incentiva a coragem humana. Ressuscita aceitável a crença na existência sem os paradigmas religiosos. Até nessa reflexão torna-se condescendente, ao não perscrutar o desconhecido, o da ilusão, se quisermos.
           O segredo sagrado que se esconde por sob as camadas do covil referido anteriormente e justifica, autoriza o lugar prioritário deste ensaio filosófico [onde o autor põe-repõe: escuridão e iluminação não revestindo todas essas camadas sobrepostas numa catadupa catártica de contradições – as máscaras dos rostos e os rostos das máscaras] é que do raciocínio absurdo desagua uma criação do tempo e das memórias, criações palpáveis ou não palpáveis que existem, afectam e metamorfoseiam o universo e a constelação da humanidade. Para perceber e descobrir todo esse grandioso segredo como um oráculo que o autor propõe, é que sorrateiramente vai navegando a nossa mente para esses lugares nada comuns, disfarçando-os doutras coisas mais superficiais. É possível. Atravessando toda esta obra num estado de aparente profunda morosidade, o autor não nos aponta esse trilho, pensará o leitor. Erro crasso. Embora em nada se trata de aparência, pelo contrário, é profunda morosidade que o autor nos apela sem nos dizê-lo directa ou indirectamente. Mas Camus falha, “arruína” o ensaio ao não prever que, através dessa profunda morosidade, o homem pensante deverá atravessar os flagelos da indiferença irrompendo todo um novo sistema de pensamentos; acção que nos leva à criação divina para quem crê e à criação não divina para quem não crê e para quem é agnóstico ou busca a criação no desregulamento dos sentidos sem recorrer a paraísos artificiais. Ao rejeitar a transcendência da fé, abandonando a ambivalência do ascetismo, deixando-o igualmente a flutuar no vácuo das águas por onde velejamos, o sistema de pensamento fortalece-se, reforça-se e enrobustece-se Camus alerta-nos unicamente. Nada mais do que isso. Escorrega-se na lama deste pântano existencial. Flanqueado como Apertado. Não ultrapassa essa barreira sonora, saborosa, emotiva, sensitiva, colorida, ouvida ou vista para uma outra dimensão da percepção humana: imprevista.
          Como ele poderia ter previsto estas carências? Devia ter prestado mais atenção à psicanálise da época. Albert Camus não calculou: em Eros e Thanatos – que significam, entre os gregos, o Amor e a Morte personificados – identificam-se dois princípios vitais: Vida e Morte. Freud utilizou-as para identificar duas categorias de pulsões humanas: instinto de vida (eros) e instinto de morte (thanatos). Estas duas pulsões geram entre si um conflito que dinamiza o psiquismo humano. Neste sentido, a estrutura freudiana do psiquismo humano é atravessada por um conflito que dinamiza o aparelho psíquico. Este conflito tem origem nos obstáculos que o indivíduo encontra na realização das pulsões e reflecte a luta entre várias instâncias no psiquismo humano.
          Mas não interessa agora. Já passou. O ensaio já foi escrito no ano de graça de 1941.Torna então o absurdo, enquanto o dogma do suicídio, incompleto. Por isso mesmo, fazer o certo é mais quantitativo, menos qualitativo e prova essa incompreensão do autor ao não contemplar, exercitar a metafísica, alquímicas ou as forças cósmicas que não se localizam a olho nu. Porém, dessa viagem – que é este curioso ensaio filosófico –, o alerta não é mais do que também por si mesmo baseado, sustentado por um conjunto de contradições e repetições que o autor igualmente rejeita. A viagem não é nem certa ou errada. Mais uma vez o autor coloca uma tónica invisível sobre a existência da causa na própria causa. Que causa, perguntais? Respondo: redesenhando o que faltou a Albert Camus focar neste ensaio, ou seja, o que faltou preencher, penetrar, furando no centro, no cerne, no eixo primacial das forças introspectivas onde tudo é uma outra coisa do que o autor disserta, critica e reflecte: a imprevisibilidade das trincheiras. Mediante uma firme tentativa de conquistar o universo ateu, agnóstico ou não, teve o horizonte do holocausto da segunda grande guerra como labaredas de fundo. Diante dessa tentativa também temos de considerar o desterro longínquo que deveras se manifesta e se propaga, e nele, algures, se encontrará um buraco estreito. Lá no fundo surge-nos o conflito entre o Bem [eros] e o Mal [thanatos] enquanto reflexo um do outro. Jamais se separarão. Amam-se tal como um indivíduo suicida determinado a terminar com a vida da morte ou a morte da vida?
          Essa outra tentativa deverá ser espontânea, genuína. Ela leva-nos e traz-nos ao ponto de partida como ao regresso dessa partida, da experiência universal, e vice-versa. Isto é, ao AQUI. Aqui mesmo. O agora é o ponto-caramelo: o da Descoberta. A Descoberta e a Indiferença ocultamente nos agarram pelo corpo inteiro, sempre como tomada de consciência de cada pessoa. Particular. Divergente. Absurda. Única: Suicida. Por que mesmo não cometer o suicídio físico ou psíquico? Por que não abraçar a vida como ele se nos apresenta, aceitando-a, como Camus coloca neste ensaio. Um tanto ou pouco erróneo é não dar escolhas aos seres humanos. Estancá-los como se estanca um rasgo no meio da cabeça rachada. O sangue poderá esvair-se ou não. Quem tomará a decisão última? Nós. Cada um de nós lidera a liberdade ou quem sabe sem ela também!
          A deformação dos sentimentos e dos desenhos e imagens estão ali, ao virar da esquina côncava, num beco sem saída ou num túnel de esgoto. Seja onde for. Temos todo o direito às escolhas e decisões escuras, mansas, mesmo aquelas incompreensíveis à razão. Camus não previu esse direito inigualável. Expugnável. Suspensa dúvida. Ele resignou-se a mostrar a resistência, o que limita o pensamento, ao entender a vida doutros ângulos de visão mais amplos. Pega-se num machado afiado rodopiando os braços para o ar escaldante e quebram-se cabeças contra o chão torto e íngreme. A asfixiar-se de tanto sangue dos membros cortados. Mortos porque assim o quiseram ou mereciam. Porque sim, porque podiam e poderão. Ou se preferirem, enterrar-se-ão os machados do suicídio debaixo da terra compacta. Não mais se vê desgraças [sarcasmo]. E o que se interpreta desta loucura, delírio, devaneio ou razão? Camus desconfiou da razão mas não nos passa os outros testemunhos anotados, fixados.
          Diria, por fim, que as forças gravitacionais desta obra subdividida em diversas partes permanecem esquecidas num recanto qualquer cheio da poeira do tempo e de memórias, onde o amor e o absurdo existem sim se reinventados, redesenhados dia após dia. Para isso é necessário escavar-se até as profundezas da caverna onírica e real, e revolver o processo completando-o, compreendendo o invencível e o absurdo porque somos nós os causadores do nosso próprio medo. Os acasos deformam tudo o que Camus nos apresenta. Somos demasiado estúpidos inseguros, por isso magoamo-nos, magoamos os próximos, fazemos sofrer e sofremos, temos dor mas também a infligimos. Matamo-nos e matamos tudo o que nos rodeia sem nos apercebermos dessa repetição. Somos criminosos, necessitamos disso para nos procurar e procurar a liberdade. Desperdiçamos a vida absurda num suicídio como um secreto beijo a nós dado pelo autor, mas também como sucessores de nós próprios.
          Os detalhes desfiguram o que Camus nos pede e oferece. A consciência tem tanto de pura como de impura, encharcando-se de sujeira e não pode ser mantida como Camus pretende ou diz ser. De outro modo a transcendência existe e tem um sentido de liberdade nada absurda. Absurdo é um ensaio desta magnitude, potência, escrita pelas mãos deste grandioso filósofo francês, cair frouxo, redondo com o rosto na vertical contra o chão cravejado de cavilhas velhas, e morrer esquecendo-se de evocar as forças/fraquezas, ameaças/oportunidades numa clareza sem traição: o Lázaro, a Libido, o Limbo e a Penitência da beleza Cosmológica. Acrescento: O impossível é que nada é impossível. Arthur Rimbaud avisou-nos:
Que vida! A autêntica vida está ausente. Não estamos no mundo.
A moral é a debilidade do cérebro.
A nossa pálida razão esconde-nos o infinito.
A vida é uma farsa que toda a gente se vê obrigada a representar.
Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.
O ar e o mundo deixado sem procura. A vida. - Era então isto?
Quando somos muito fortes – quem recua? muito alegres – quem cai no ridículo? Quando somos muito maus – que farão de nós?
          ***
Digo-vos: esta é uma perplexa obra que nem é estéril, nem fútil.
Adeus Camus, vou-me embora para o constante desconhecido.

um saco, por exemplo
sei de teres um saco que fala sobre o sono ainda misturado
num copo em brasas
curioso por bater
com a minha sombra diante à criatividade desse saco

nele intercepto mensagens alheias das noites cheias de fins
ou acasos
todos nos dizem para cantar sob o carreiro gélido
onde verdes árvores lá fora se revelam na voz de silicone
por trás das portas a despenhar-se sobre cadeiras retiradas
contra os buracos negros
enquanto mesas se entrançam no ar às voltas
como respiro e interrompo
trepando o fumo trôpego dos garfos e talheres confusos
a romperem os sóbrios guardanapos de tecido diamante
derretendo-se na luz que flutua leve
talheres no princípio
garfos no cume empoleirados no pano rústico preso à jarra
que toca a melodia desaparecida
que esmaga as mesas
que torce a voz contra as portas
que toca a própria mão alastrando o saco
e se bebe na loucura nocturna
o soalho de madeira rubi ressente-se entre os rolos de árvores
e baloiços de folhas afrodisíacas
a amolecerem espantadíssimas nas sobrancelhas queimadas

com imagens panorâmicas do saco
como a rodar nos rodapés que explodem dentro dos vernizes
a espalharem-se p’la poeira das vidraças terríveis
os relógios fumam os céus indignados aceitando-se corajosos
e reles vistos à lupa

o sol de aço corta a vista como os seus raios de fogo cortam
as mãos
o fogo cresce
aumenta o sangue largo
enquanto labareda a roçar no coração
e o coração insufla e inflama o corpo que se ergue
e estanca o lume

manuscritos voam em cima dos pratos
os pratos compostos por tintas em escada finalizam-se à vista
sombrios e tristes
desde a força profunda das mesas
até se coserem às secretas portas
que fervem o trilhado coração do saco aos pedaços
de fibras entranhadas
escorrendo à volta dos corpos
desenhos de luvas
peúgas originais retratos folhas plantas
gaiolas por baixo de alcatifas submersas
cigarros dentro uns nos outros onde a água trabalha
e escalda esse pressagioso ofício

um castanho cavalo gira perto do iminente sofá
e o cavalo cavalga dentro das paredes
a estoirar a ventania obscura
e engole
uma almofada de acre vinho
e no próprio relinchar como desabrocha!

tapeçarias de névoas esvoaçam entre fragilidade e angústias
vi o saco a inundar-se no arame farpado
com que o ergo
até sufocar o amanhecer fusiforme
a saltitar nos nós de sangue
uma breve leveza de ofício
e rasgam-se fissuras na carne como outra carne funda
e ensanguentada
em estado de choque
assim irei aprender também trigonometria astrofísica
dos cometas às galáxias inundadas de gravidade
enquanto o saco é elevado
nós somos elevados
e arrastamos as imagens de uma ponta à outra
devoramo-nos
na engrenagem atómica
em frente aos vertiginosos olhos anda o saco a pensar nas coisas
o saco desmancha a doçura do pescoço
sangra-o nas mãos vagarosamente
à raiva tão veloz
canta nas fracturas da terra na cabeça movida por circunferências
saco chato dorme a alumiar a escuridão
uma chatice mortal!...
mexe-se aquele saco com pensamentos inquietantes
sei-o inquietante
é mestre e eu o aprendiz
com a cabeça no fundo dos meus joelhos a estilhaçar
devassa os astros
explodindo-os de encontro às estrelas
e todas as altas estrelas bailam na ponta dos dedos pretos prata
a deslizar na coxa dissolvida

contra espirais cadentes os astros são a sonoridade
cantam flores e jarras
e as estrelas o ritmo maldito feito de cera luminosa
em que as trevas vagabundam
nos espelhos rápidos
dentro da penumbra pendidas nos aromas megalíticos
que vão de sabor para sabor
pela aragem abaixo
a levitar na sua matéria enlouquecida
e morde a luz
porque os perfumes celestes
se despedem e diluem o espaço e o tempo
como num avanço e recuo doce
estremecendo as distâncias em tempo irreal
deixo-me cair anterior a esse saco entrançado nas veias adentro
e racho as mãos à velocidade de um galho precioso
na dúvida
alastram-se as abas que dançam
enquanto o saco sufoca numa janela contorcida
deambulo
na opacidade dos espelhos e vidros
que nunca mas nunca falam dele ou de mim
       o saco, por exemplo...
 
23 de fevereiro 2016.

14 de março de 2016

Mansfield Park: observações de Nabokov - Final

      O método Austen: elementos de seu estilo literário
    Para considerar a questão do método no livro de Miss Austen, devemos notar que existem características em Mansfield Park (detectáveis em outros romances seus) que pertencem ao domínio da comédia de costumes, e que são típicas do romance sentimental dos séculos XVIII e XIX. A primeira característica é a escolha de uma jovem como agente ou filtro – tipo Cinderela, mas que também poderia ser uma enfermeira, uma órfã etc. – através de quem ou por quem os outros personagens são vistos.
    Um segundo ponto refere-se ao método de Jane conferir aos personagens antipáticos ou menos simpáticos uma espécie de comportamento, atitudes ou modos ardilosos, um pouco grotescos, trazidos à tona toda vez que o personagem aparece. Dois exemplos óbvios são a sra. Norris e as questões monetárias, ou a sra. Bertram e seu cachorrinho. Artisticamente, Miss Austen traz alguma variação nessa abordagem pelas mudanças de luz, por assim dizer, por conta das mudanças na ação, ao emprestar um pouco de cor nova para a atitude habitual dessa ou daquela personagem, mas em geral os personagens de comédia carregam os seus feixes de defeitos de uma cena para outra em todo o romance. Dickens usa o mesmo método.
    O terceiro ponto tem como principal referência as cenas em Portsmouth. Se Dickens tivesse surgido antes de Austen, teríamos dito que a família Price é totalmente dickensiana e que as crianças Price conectam-se completamente com o tema da criança que atravessa Bleak House [“A casa soturna”].
***
      Uso de imagens e modos de descrição
      Alguns dos elementos mais importantes do estilo de Jane Austen valem a menção. Suas imagens, porém, são fracas. Embora aqui e ali ela pincele o texto com figuras de linguagem graciosas “com uma delicada escova em um pequeno cabo de marfim” (como ela disse de si mesma), o imaginário em relação às paisagens, gestos, cores, e assim por diante, é muito contido. Raramente ela usa metáforas e analogias em suas comparações. Em Portsmouth, a imagem do mar que "dançava de alegria e quebrava contra as muralhas" (p.505) é uma das raras usadas no livro. Infrequentes também são as metáforas convencionais ou banais como a da gota de água na comparação do ambiente doméstico dos Price com o dos Bertram: "e, quanto aos pequenos aborrecimentos, às vezes provocados pela tia Norris, eram breves, insignificantes, uma gota de água no oceano, comparados com o tumulto constante do atual domicílio.” (p.487) Em descrições de atitudes e gestos, ela faz um uso correto de particípios [no original, smiling, looking etc.] ou de adjetivos como um “sorriso maroto” (arch smile), apresentados de uma maneira similar a parênteses, como se fossem rubricas teatrais, dispositivo mais do que apropriado em Mansfield Park já que o romance como um todo se assemelha a uma peça. Destaca-se ainda o caráter  oblíquo da construção e da entonação de um discurso, fazendo com que a ação e a caracterização procedam do diálogo ou do  monólogo. Um excelente exemplo encontra-se na fala de Maria à medida que se aproximam de Sotherton, seu futuro lar: 
Daqui para a frente, a estrada é plana, srta. Crawford; acabou-se o incômodo. O resto do caminho é como deve ser. O sr. Rushworth o arrumou quando herdou a propriedade. O vilarejo começa aqui. Aquelas casinhas são uma desgraça. O pináculo da igreja é muito bonito. Ainda bem que a igreja não fica tão perto do solar como em tantos povoados antigos. Os sinos devem ser um transtorno. Lá está o presbitério; uma casa muito arrumada; e eu soube que o reverendo e sua esposa são ótimas pessoas. Aqueles asilos para pobres foram construídos por alguém da família. À direita fica a residência do administrador, um homem muito respeitável. Agora estamos perto do portão; mas ainda temos de percorrer quase um quilômetro e meio para atravessar o parque. (pp.170-1)
***
     A jogada do cavalo [knight's move]
    Especialmente ao lidar com reações de Fanny, Austen usa um dispositivo que Nabokov chama a jogada do cavalo [knight's move], um termo de xadrez para descrever uma guinada súbita das emoções da mocinha.
     Na partida de Sir Thomas para Antigua, Fanny também respirou aliviada, embora, sendo por natureza mais sensível que as primas, recriminasse o que via como ingratidão de sua parte e [knight's move:] sofresse por não conseguir sofrer. (p.120)
    Antes dela ser convidada a acompanhar a expedição a Sotherton, ela deseja intensamente ver a alameda de árvores da propriedade antes que fosse alterada, mas como era muito longe, ela diz, Ah, não importa. Quando eu for, [knight's move:] você [Edmund] me dirá o que mudou.(p.145)
    A indecisão em participar da peça por questões ligadas a um desejo de autenticidade e de pureza, a faz desconfiar [knight's move:] da autenticidade e da pureza dos próprios escrúpulos. (p.242)
    Ela fica “muito feliz” em aceitar o convite para jantar com os Grant, mas logo se pergunta (knight's move:) Mas por que eu estaria feliz? Não sei que vou ver ou escutar alguma coisa que há de me magoar? (p.309)
    Quando, escolhendo uma corrente, ela percebe que há uma que está posta à sua vista mais do que as demais, escolheu-a [knight's move:] na esperança de que fosse a que a amiga menos queria conservar. (p.348)   

***
    A “covinha” irônica
    Destacam-se entre os elementos do estilo de Austen uma espécie de “covinha especial”, obtida pela furtiva introdução nas frases de um pouco de delicada ironia entre dados de informação simples. Em destaque, algumas dessas frases-chave:
Ofendida e indignada, a sra. Price enviou-lhe uma resposta amarga, que incluía todas as irmãs e tecia comentários tão desrespeitosos acerca de Sir Thomas que a sra. Norris não conseguiu guardá-los para si mesma. E essa resposta pôs fim a toda relação entre elas por um tempo considerável. (p.92)
    Quando a jovem Fanny é apresentada às crianças Bertram, essas estavam tão acostumadas com visitas e elogios que não sofriam de timidez natural e, sentindo-se mais seguras ante a total insegurança da prima, logo estavam examinando as feições e a roupa da recém-chegada com absoluta indiferença. (p.101)
    No dia seguinte, as filhas se horrorizaram ao descobrir que Fanny só tinha dois cintos e nunca aprendera francês; e, ao perceber que não a impressionaram muito com o duo que tiveram a bondade de tocar, generosamente lhe deram alguns brinquedos de que menos gostavam e a deixaram sozinha... (p.102)
    A sra. Bertram passava o dia no sofá, elegantemente vestida, ocupada com uma costura ou um bordado de pouca serventia e nenhuma beleza, pensando mais na cachorrinha do que na prole... (p.107)
    Podemos chamar esse tipo de inserção de “covinhas” delicadamente irônicas na pálida e virginal face do autor.
***
     Entonação epigramática
    Outro elemento do estilo de Austen é a sua entonação epigramática, um certo ritmo conciso na expressão espirituosa de um pensamento um pouco paradoxal. Esse tom de voz é conciso e macio, seco e ainda assim musical, incisivo, mas límpido e leve. Um exemplo é a sua descrição de Fanny aos 10 anos, quando chegou em Mansfield: Era miúda para a idade, um tanto pálida, desprovida de qualquer traço de beleza e excessivamente tímida; contudo, embora desajeitada, nada tinha de vulgar e, ao falar, revelava uma voz doce e assumia uma bonita expressão. (p.100)
      She was small of her age, with no glow of complexion, nor any other striking beauty; exceedingly timid and shy, and shrinking from notice; but her air, though awkward, was not vulgar, her voice was sweet, and when she spoke, her countenance was pretty.
    Nos primeiros dias após a sua chegada, Tom não a submetia a nada pior que o tipo de brincadeira que um rapaz de dezessete anos acha justo fazer com uma criança de dez. Ele estava começando a vida com a empolgação e a liberalidade do primogênito ... Com relação à priminha adotara uma postura condizente com sua situação e suas prerrogativas: dava-lhe bonitos presentes e ria dela. (p.105)
    [Fanny] had nothing worse to endure on the part of Tom, than that sort of merriment which a young man of seventeen will always think fair with a child of ten. He was just entering into life, full of spirits, and with all the liberal dispositions of an eldest son .... His kindness to his little cousin was consistent with his situation and rights: he made her some very pretty presents, and laughed at her.
    Tal estilo não é invenção de Austen, nem mesmo é uma invenção inglesa, diz Nabokov, que suspeita ser advindo da literatura francesa, nos séculos XVIII e XIX. Austen não leu francês, mas manipula o ritmo epigramático com perfeição.
***
Estilo não é uma ferramenta, não é apenas uma escolha de palavras. Constitui um componente intrínseco ou uma característica da personalidade do autor. Quando se fala de estilo, se diz da natureza peculiar e individual de um artista; a forma como ele se expressa em sua produção artística. É essencial lembrar que, apesar de todas as pessoas terem o seu estilo, somente o estilo peculiar a esse ou aquele escritor de gênio vale a discussão. E esse gênio não pode se expressar pelo estilo literário de um escritor a não ser que esteja presente em sua alma. Um modo de expressão pode ser aperfeiçoada por um autor. Não é incomum que, no curso de sua carreira literária, o estilo de um escritor torne-se cada vez mais preciso e impressionante, como, aliás, foi o que fez Jane Austen. Mas um escritor desprovido de talento não pode desenvolver um estilo literário de valor; na melhor das hipóteses, será uma mecanismo artificial deliberadamente desenvolvido e desprovido da faísca divina.

Notas
1 - A casa soturna (1954), de Charles Dickens, foi traduzido por Oscar Mendes, publicado pela Globo, em 2 volumes, e reeditado em volume único (1986) pela Nova Fronteira.
2- As observações aqui expostas foram extraídas do livro Lectures on Literature, de Nabokov.
3- Os trechos em português do romance Mansfield Park foram retirados da tradução de Hildegard Feist, publicada pela Cia. das Letras (selo Penguin).
***
A defesa Luzhin, capa de Paul Sahre, Vintage Books.
Nabokov foi um ótimo enxadrista. O romance A Defesa Luzhin trata diretamente do xadrez, mas o jogo perpassa toda sua obra. Em Lolita, ele emprega a expressão “a knight’s move” para significar um tipo de acontecimento que desafia a aparente lógica. Em 1971, no livro Poems and Problems, reuniu 18 problemas de xadrez a 53 poemas de sua invenção. Segundo ele, “Problemas de xadrez exigem do compositor as mesmas virtudes que caracterizam todo tipo de arte respeitável: originalidade, invenção, harmonia, complexidade, e esplêndida insinceridade.” (cf. http://marginalia.com.br/2015/11/12/machado-de-assis-na-caissana-brasileira/)
Adaptação de The Luzhin Defence (2000), dir. Marleen Gorris
18 problemas de xadrez, 53 poemas













***
Adaptações de Mansfield Park
 
Para a TV (1983), a  mais fiel.
“Palácio das ilusões” (1999), algumas alterações no enredo e uma Fanny indômita.
Para a TV (2007), baixo orçamento, muitas alterações.



13 de março de 2016

Mansfield Park: algumas observações de Nabokov - 2

Caracterização dos personagens, qualidades funcionais
O tom "classe média" transmitido pela narradora é delicioso, por exemplo, em:
Há cerca de trinta anos, a srta. Maria Ward, de Huntingdon, com apenas sete mil libras de dote, teve a sorte de cair nas graças de Sir Thomas Bertram, de Mansfield Park, no condado de Northamton, e, assim, tornar-se esposa de um baronete, com direito a todos os confortos e  privilégios de uma bela casa e de uma boa renda.
Com simplicidade e reserva, os assuntos de dinheiro predominam sobre os românticos e os religiosos. Quando o primeiro capítulo acaba, todas as preliminares foram cuidadas. Sabemos o quão falante, espalhafatosa e vulgar é a sra. Norris; impassível e mal-humorado, o Sir Thomas; carente, a srta. Price; e indolente e lânguida é Lady Bertram, com o seu mascote.

A personagem da sra. Norris não apenas é uma obra de arte em si, ela tem também uma qualidade funcional, pois é por causa de sua natureza intrometida que Fanny será afinal adotada por Sir Thomas, ou seja, um aspecto de sua caracterização eleva-se à elemento estruturante do romance. Do mesmo modo, é a indolência de Lady Bertram que a mantém no campo. Sabe-se que eles tinham uma casa em Londres. Antes de Fanny aparecer, é para lá que iam passar a primavera, mas Lady Bertram, um pouco pela falta de saúde e muito por sua indolência, vende a casa na cidade, permanecendo definitivamente no campo e deixando Sir Thomas cumprir o seu dever no Parlamento sem a sua presença, não importa se com maior ou menor conforto. Jane Austen, compreendamos, precisa desse arranjo a fim de manter Fanny no campo, sem complicar a situação com viagens para Londres.

Chegamos a um outro exemplo da forma como um escritor introduz certos eventos a fim de fazer sua história seguir em frente. Por exemplo, a chegada dos Grant para o presbitério tornou-se possível graças à morte do sr. Norris, a quem Grant substitui. A chegada dos Grant, por sua vez, leva à chegada, nos arredores de Mansfield Park,  dos jovens Crawford, parentes de sua mulher, que desempenharão importantes papéis no romance. Além disso, na estrutura do romance de Miss Austen, é imprescindível retirar Sir Thomas de Mansfield Park, a fim de que os jovens do livro usufruam a liberdade; e depois trazê-lo de volta no auge da leve orgia decorrente do ensaio de uma certa peça teatral.

Note-se também o modo como Miss Austen junta questões monetárias à sequência de eventos que explica a chegada dos Crawford. O sentido prático combina com o tom de conto de fadas, como aliás é comum acontecer nesse tipo de histórias. Assim, o filho mais velho, Tom, que herdaria toda a propriedade, desperdiça dinheiro. Os negócios dos Bertram não estão muito bem. É necessário que Sir Thomas parta para Antigua por quase um ano. Antigua é uma ilha nas Índias Ocidentais, então pertencente à Inglaterra, a quinhentas milhas ao norte da Venezuela. Nas plantações, o trabalho escravo é a fonte do dinheiro dos Bertram. Os Crawford, jovens ricos, que fazem sua entrada na ausência de Sir Thomas, são meio-irmão e irmã da sra. Grant. Um tem uma boa propriedade em Norfolk; e a outra, vinte mil libras. O tio, o almirante Crawford, que os criou, quando fica viúvo, em vez de manter sua sobrinha, traz sua amante para casa, e por isso a sra. Grant acolhe a irmã, o que pode lhe ser conveniente financeiramente. 

Uso de reminicências
Durante a discussão sobre como melhorar a propriedade, Rushworth observa que ele tem certeza que Repton (um paisagista famoso na época) reduziria a avenida de carvalhos na frente oeste da casa, a fim de fornecer uma perspectiva mais aberta. Fanny, que estava sentada próxima a Edmund e que ouvia atentamente,  diz em voz baixa: "Cortar uma avenida! Que pena! Não faz você pensar em Cowper?” Temos que ter em mente que, no tempo de Fanny a leitura e o conhecimento da poesia era muito mais natural, habitual, difundida do que hoje.

"O Sofá", de William Cowper, faz parte de um longo poema chamado The Task [“A tarefa”] (1785), e é um bom exemplo do que era familiar à mente de uma jovem senhora como Jane ou Fanny. Cowper combina o tom didático de um observador da moral com a imaginação romântica e o colorido da natureza tão característicos das décadas seguintes. "O Sofá" é um poema muito longo. Começa com um relato bastante atrevido da história do mobiliário e, em seguida, passa a descrever os prazeres da natureza. Note-se que, ao pôr na balança, de um lado, as comodidades, as artes e as ciências da vida urbana, a corrupção que grassa nas cidades e, de um outro, a influência moral da desconfortável natureza, floresta e campo, Cowper escolhe a natureza. Lembremos também da decepção de Fanny com relação à capela da propriedade de Rushworth, quando ela faz menção a um poema de Sir Walter Scott: The Lay of the Last Minstrel [“A balada do último Minstrel”] (1805).

Mais sutil do que a citação direta é a reminiscência que tem um significado técnico especial, quando utilizada na literatura. Uma reminiscência literária denota uma frase ou imagem ou situação sugestiva em uma imitação inconsciente por parte do autor de algum outro autor que lhe é anterior. Um autor se lembra de algo lido em algum lugar e usa-o, recriando-o de acordo com os interesses em jogo na história por ele narrada. Um exemplo disso encontra-se no episódio da chave, quando Rushworth sai correndo para buscá-la de modo a abrir um portão de ferro em sua propriedade. A frase de Fanny – ao lembrar Mary e Henry de que Rushworth tinha ido buscar a chave – reflete uma passagem no livro de Laurence Sterne, “Uma viagem sentimental através da França e Itália” (1768).

Cenas, ação teatral e o teatro como pano-de-fundo
A expedição a Sotherton fornece não só a Maria e Henry Crawford, mas também a Mary Crawford e Edmund a oportunidade para conversarem com uma privacidade incomum. Ambos aproveitam da possibilidade de se afastar dos outros: Maria e Henry deslizam através de uma abertura ao lado do portão trancado e vagam invisíveis pelo bosque, enquanto Rushworth corre em busca da chave do mesmo portão; Mary e Edmund caminham a esmo, enquanto a pobre Fanny permanece sentada em um banco desértico. Miss Austen nitidamente delineou a paisagem de seu romance nesse momento. Além disso, o romance vai proceder nesse e nos próximos capítulos como uma peça de teatro.

A coisa toda pode ser dividida em cenas:
1. Edmund, Mary e Fanny adentram uma parte mais selvagem do deserto, na verdade um pequeno bosque, e conversam sobre clérigos. (Mary terá um choque na capela ao ouvir que Edmund espera ser ordenado: ela não sabia que ele pretendia se tornar um clérigo, uma profissão que não poderia contemplar em um futuro marido.) Eles param em um banco depois de Fanny pedir para descansar.
2. Fanny fica sozinha nesse rústico banco, e ali permanece durante uma hora inteira,  enquanto Edmund e Mary vão investigar os limites do bosque.
3. Um outro grupo, composto por Henry, Maria e Rushworth, caminha até onde ela se encontra.
4. Rushworth deixa-os para buscar a chave do portão trancado. Henry e a srta. Bertram permanecem, mas, em seguida, deixam Fanny, a fim de explorar o bosque.
5. A srta. Bertram e Henry pulam o portão trancado e desaparecem, deixando Fanny sozinha.
6. Julia – a líder do terceiro grupo – chega à cena tendo cruzado com Rushworth a caminho da casa, conversa com Fanny e, em seguida, pula o portão, "olhando ansiosamente para o bosque”. Crawford havia lhe provocado durante a ida para Sotherton e ela está com ciúmes de Maria.
7. Fanny está novamente sozinha até Rushworth chegar, ofegante, com a chave do portão, ponto de partida para aqueles que procuravam se esconder.
8. Rushworth segue bosque a dentro e novamente Fanny encontra-se sozinha.
9. Fanny decide descer em direção ao caminho tomado por Mary e Edmund e encontra-os vindo do lado oeste do bosque onde ficava a famosa alameda.
10. Eles voltam para a casa e encontram o remanescente do terceiro grupo, as sras. Norris e Rushworth, prestes a começarem a caminhada.

Interessante notar que, no final do capítulo 11, na casa dos Bertram, quando a srta. Crawford junta-se ao “clube da alegria” em torno do piano, e Edmund deixa Fanny admirando as estrelas dirigindo-se também para a música, dá-se uma repetição do tema “abandonando-Fanny”, que então fica sozinha e trêmula na janela. Edmund sofre uma hesitação inconsciente entre a beleza brilhante e elegante de Mary Crawford e a graça delicada e suave de Fanny, o que é emblematicamente demonstrado pelos diversos movimentos dos jovens envolvidos na cena da sala de música.

Novembro seria "o mês negro", na opinião das irmãs Bertram, época do indesejável retorno do pai. Ele pretendia pegar o navio de setembro, de modo que os jovens teriam treze semanas – de meados de agosto a meados de novembro – antes de seu retorno. (Na verdade, Sir Thomas retorna em outubro em um navio particular.)

O relaxamento das normas de conduta de Sir Thomas, a partir da expedição a Sotherton, deságua diretamente na proposta de encenação de uma peça antes de seu retorno. O tema da peça em Mansfield Park realiza-se de modo extraordinário. Do capítulo 12 ao 20, desenvolve-se como um conto de fadas feito de magia e de fatalidade. O tema começa com um novo personagem – primeiro a aparecer e último a desaparecer, nesse contexto – um jovem chamado Yates, amigo de Tom Bertram. "Ele veio nas asas de decepção”, pois tinha acabado de chegar de uma estadia onde a mesma peça seria encenada mas que, por conta da morte súbita de um parente próximo de uma das pessoas envolvidas, teve de ser cancelada. E Yates lamenta o fato de que a monótona vida ou a morte ocasional tivessem impedido a encenação da peça que, do prólogo ao epílogo, dizia ele, era toda encantamento.

A alusão ao desengano, no final da peça, é uma observação fatídica, uma espécie de conjuração, pois é exatamente isso o que vai acontecer: o retorno prematuro de Sir Thomas confirma a sequela.

Lovers' Vows (1798) foi selecionada não porque Miss Austen tivesse em mente uma peça particularmente imoral, mas sobretudo porque ela tinha papéis convenientes para distribuir entre seus personagens. No entanto, é claro que ela desaprova a encenação dessa peça entre os Bertram, não só por abordar a bastardia, mas porque ela dava a oportunidade para discursos que envolviam relações sexuais mais abertas e francas do que era adequado para jovens provincianos. A aflição de Fanny evidencia-se, quando ela lê a peça. A leitura é feita solitária e avidamente, interrompendo-se apenas para espantar-se ante a perspectiva daquele texto ser representado em casa, de modo privado. As duas personagens femininas, Agatha e Amelia, lhe pareceram totalmente impróprias seja pela situação como mãe solteira de uma, seja pela linguagem meio obscena da outra. Mal podia acreditar que seus primos estivessem conscientes do que estavam se envolvendo; e desejava despertá-los logo que possível pelo protesto que Edmund certamente faria. É provável que os sentimentos de Jane Austen fossem similares aos de Fanny. A questão, porém, não dizia respeito à definição dessa peça como imoral mas à sua inadequada encenação fora do teatro profissional, por não-atores.

Quando chega a hora de distribuírem os papéis da peça, por uma espécie de predestinação artística, as coisas organizam-se de modo que as verdadeiras relações entre os personagens do romance revelam-se através das relações dos personagens da peça.

O baile é novamente um evento revelador dos traços característicos das pessoas no livro. Vislumbra-se,  por exemplo, o caráter grosseiro e exigente da sra. Norris, em um pequeno trecho, inserido em um parágrafo que descreve a alegria de Fanny, que – por ser tão intensa – a faz esquecer da tia "entirely taken up in fresh arranging and injuring the noble fire which the butler had prepared", traduzido por Hildegard Feist como: “enquanto a tia Norris se ocupava em remanejar e arruinar o esplêndido fogo que o mordomo acendera” (p.363). Nabokov observa que o estilo de Austen está no auge quando ela usa a palavra “injure”, a única metáfora realmente original no livro, segundo ele. Revelam-se também a sra. Bertram, que placidamente sustenta que a boa aparência de Fanny se deve à ajuda de sua empregada, (na verdade, essa foi enviada muito tarde, quando Fanny já tinha se vestido); Sir Thomas, com sua personalidade contida e sua fala lenta; e todos os jovens, a desempenharem os papéis que deles se espera.

Uso de cartas e sua relação com a estrutura do romance
A segunda parte do livro termina com uma troca de bilhetes entre a srta. Crawford e Fanny. A srta. Crawford tem um estilo elegante, mas superficialmente banal e trivial, se estudado de perto: cheio de clichês graciosos, como o desejo dos "mais doces sorrisos" para Fanny, que definitivamente não é desse tipo.
Querida Fanny — pois agora posso sempre chamá-la sempre assim, para infinito alívio de uma língua que esteve tropeçando no srta. Price pelo menos durante as últimas seis semanas. Não posso deixar de mandar-lhe através de meu irmão algumas linhas de felicitações e, com a maior alegria, dar-lhe meu consentimento e minha aprovação. Vá em frente, minha querida, e não tenha medo; não haverá dificuldades dignas desse nome. Suponho que a garantia de meu consentimento signifique alguma coisa; portanto, pode dedicar-lhe seus mais doces sorrisos ao longo desta noite e devolvê-lo para mim mais feliz do que quando saiu daqui
    Afetuosamente,
    M. C.


Em contraste, o estilo de Fanny tem elementos de força, pureza e precisão:
Muito lhe agradeço, querida srta. Crawford, suas amáveis felicitações, na medida em que se referem a meu adorado William. Quanto ao restante, sei que nada significa, mas sou tão incompetente para esse tipo de coisa que espero que me desculpe por lhe pedir que não pense mais nisso. Conheço o sr. Crawford bastante bem para entender seu modo de agir; se ele também me entendesse, agiria de outra forma.   Não sei o que escrever, porém a senhorita me faria um grande favor se nunca mais tocasse nesse assunto. Com meus agradecimentos por ter me honrado com sua mensagem, continuo sendo, querida srta. Crawford etc., etc.

Jane Austen, em sua juventude, zombou da inclinação literária para a sensibilidade, que estimulou o gosto e a admiração dos leitores pelo excesso de sentimentos, o chamado “sentimentalismo”, forjado por choros, desmaios e tremedeiras, isto é, pela simpatia indiscriminada por qualquer coisa patética ou pela inteireza moral, as boas atitudes. Por isso, muitos críticos, como Linklater Thomson, surpreenderam-se ao descobrir que a autora tivesse escolhido esse mesmo tipo de sensibilidade para distinguir uma heroína que, acima de que qualquer outra de suas personagens, ela dizia preferir, inclusive batizando-a com o nome de sua sobrinha dileta. Fanny, porém, apresenta os sintomas de sensibilidade então na moda com tal encanto, e suas emoções são tão consistentes no céu cinza-claro do romance, que o espanto de Thomson pode ser ignorado.

A convicção de Edmund de que a única razão para Fanny rejeitar Crawford era a novidade de toda a situação é uma questão de estrutura, pois o desenvolvimento do romance exige que Crawford permaneça circulando por perto, autorizado a perseverar em seu cortejo. A explicação fácil para a atitude de rejeição de Fanny torna admissível o fato dele seguir lhe fazendo a corte com o pleno consentimento de Sir Thomas e Edmund. Muitos leitores, especialmente as leitoras, nunca perdoaram a sutil e sensível Fanny por amar um tipo tão sem graça quanto Edmund, mas – repita-se – a pior maneira de ler um livro é infantilmente se misturar com os personagens como se eles fossem pessoas. Na verdade, muitas vezes ouvimos falar de meninas sensíveis que autenticamente amam chatos e pedantes. Afinal de contas, assumindo-se o interesse humano da história, é preciso admitir: Edmund é honesto, bem-educado, bom, gentil.

Psicologicamente, não fica muito claro porque Edmund não se declara à srta. Crawford, mas novamente a estrutura do romance exige uma certa lentidão dos progressos no namoro de Edmund. A qualquer custo, ambos os Crawford partem para Londres em visitas previamente organizadas para encontrar amigos, provocando desconforto em Fanny e em Edmund.

A ida de Fanny para Portsmouth afeta a unidade do romance que, até esse momento, com exceção de uma natural e necessária troca de rápidas mensagens entre Fanny e Mary Crawford, mantém-se agradavelmente livre do desanimador recurso, em romances ingleses e franceses do século XVIII, de veicularem informações por cartas. Mas com Fanny isolada em Portsmouth, dá-se uma nova mudança na estrutura do romance e a ação passa a desenvolver-se por correspondência, com a troca de notícias.

Inesperadamente, Crawford visita Portsmouth para uma última tentativa de conquistar Fanny, que nele observa novas atitudes, mais louváveis. Muito preocupado com a sua saúde, ele insta-a a informar sua irmã, Mary, em caso de agravamento, para que possam levá-la de volta a Mansfield. Aqui e em outras passagens da sua visita, insinua-se que, se Edmund se casasse com Mary e se Henry perseverasse em sua ternura e bom comportamento, Fanny afinal se casaria com ele.

As reações de Fanny à “apaixonite” de Edmund por Mary Crawford são mostradas com a entonação do que hoje chamamos de fluxo de consciência ou monólogo interior, maravilhosamente desenvolvida, 150 anos mais tarde, por James Joyce.
Fanny reprimiu como pôde esses pensamentos reativos, porém meio minuto depois passa a achar que Sir Thomas estava sendo muito cruel com sua tia e com ela. Quanto ao assunto principal da carta, em nada contribuiu para diminuir sua irritação. Ao contrário, enfureceu-se de tal modo que por pouco não a fez detestar Edmund: “Nada de bom vai resultar dessa demora”, disse ela. “Por que não resolvem logo? Ele está cego, e nada vai lhe abrir os olhos, pois durante tanto tempo a verdade se mostrou com tanta clareza e de nada adiantou. Vai casar com ela e ser infeliz. Deus queira que não deixe de ser respeitável, apesar da influência dela! o estrague também!” E releu a carta: “ ‘A srta. Crawford gosta tanto de mim’! Bobagem! Ela só ama a si mesma e ao irmão. ‘Há anos que a levam para o mau caminho’! É bem provável que ela é que leve as amigas para o mau caminho. Talvez todas se corrompam mutuamente; no entanto, se a estimam muito mais do que elas as estima, é pouco provável que a prejudiquem a não ser com lisonjas. ‘Ela é a única mulher no mundo com quem eu pensaria em me casar.’ Acredito piamente. Esse é um amor que há de dominá-lo pela vida afora. Se ela o aceita ou recusa, o curacao de Edmund pertence a ela para sempre. ‘Perder Mary implicaria perder Crawford e Fanny’. “Primo, você não me conhece. As duas famílias nunca estariam unidas, se você não as unisse. Ah, escreva, escreva. Acabe com isso de uma vez. Acabe com essa agonia. Decida-se, entregue-se, condene-se.” (pp. 521-2)

Tais emoções, porém, aproximavam-se demais do ressentimento para continuar orientando esse solilóquio por muito tempo.

A chegada do carteiro substitui dispositivos estruturais mais delicados. O romance passa a apresentar sinais de desintegração, lançando mão, mais e mais, da fácil forma epistolar. Esse é um sinal claro de um certo cansaço por parte da autora. Por outro lado, estamos nos aproximando do evento mais chocante de toda a história.

O interlúdio Portsmouth – três meses na vida de Fanny – termina junto com o uso da forma epistolar no romance. A história volta assim ao seu início, por assim dizer, mas agora os Crawford foram eliminados. Miss Austen teria de escrever outro volume praticamente de 500 páginas se tivesse a intenção de narrar as fugas de Henry e Maria e a de Julia com Yates da mesma forma direta e detalhada como fizera ao relatar os jogos e os flertes em Mansfield Park antes de Fanny partir para Portsmouth. Nesse ponto, a forma epistolar ajudou a sustentar a estrutura do romance, mas não resta dúvida de que muita coisa aconteceu nos bastidores e que esse negócio de escrita de cartas é um atalho de não muito grande mérito artístico.

Temos agora apenas dois capítulos mais, e o que resta é nada mais do que um processo de limpeza geral. No final do penúltimo capítulo, Edmund pensa que nunca se casará, mas o leitor sabe mais. No último, o crime é punido, a virtude recebe sua justa recompensa e os pecadores voltam ao bom caminho. Edmund encontra em Fanny a esposa ideal, com uma leve sugestão de incesto: "E se não conseguiria convencê-la de que seu amor fraternal por ele poderia ser uma base suficiente para o amor conjugal." (p.569) "Não há como descrever os sentimentos de uma jovem ante a revelação de um amor que julgava impossível." (p.571)

A sra. Bertram agora tem Susan para substituir Fanny como "sobrinha estacionária” e o tema da Cinderela continua. É uma curiosa contenda, a de que – para além e depois da história contada em detalhes pelo autor de um romance – a vida, para todos os personagens, segue suavemente o seu curso. Deus, por assim dizer, assume a direção.
Notas
1-  As observações foram extraídas e adaptadas do livro "Lectures on  Literature" de Nabokov. O livro foi traduzido e recentemente publicado pela Três Estrelas. 
2- Os trechos em português foram retirados da edição publicada pela Cia. das Letras, com tradução de Hildegard Feist.