14 de março de 2016

Mansfield Park: observações de Nabokov - Final

      O método Austen: elementos de seu estilo literário
    Para considerar a questão do método no livro de Miss Austen, devemos notar que existem características em Mansfield Park (detectáveis em outros romances seus) que pertencem ao domínio da comédia de costumes, e que são típicas do romance sentimental dos séculos XVIII e XIX. A primeira característica é a escolha de uma jovem como agente ou filtro – tipo Cinderela, mas que também poderia ser uma enfermeira, uma órfã etc. – através de quem ou por quem os outros personagens são vistos.
    Um segundo ponto refere-se ao método de Jane conferir aos personagens antipáticos ou menos simpáticos uma espécie de comportamento, atitudes ou modos ardilosos, um pouco grotescos, trazidos à tona toda vez que o personagem aparece. Dois exemplos óbvios são a sra. Norris e as questões monetárias, ou a sra. Bertram e seu cachorrinho. Artisticamente, Miss Austen traz alguma variação nessa abordagem pelas mudanças de luz, por assim dizer, por conta das mudanças na ação, ao emprestar um pouco de cor nova para a atitude habitual dessa ou daquela personagem, mas em geral os personagens de comédia carregam os seus feixes de defeitos de uma cena para outra em todo o romance. Dickens usa o mesmo método.
    O terceiro ponto tem como principal referência as cenas em Portsmouth. Se Dickens tivesse surgido antes de Austen, teríamos dito que a família Price é totalmente dickensiana e que as crianças Price conectam-se completamente com o tema da criança que atravessa Bleak House [“A casa soturna”].
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      Uso de imagens e modos de descrição
      Alguns dos elementos mais importantes do estilo de Jane Austen valem a menção. Suas imagens, porém, são fracas. Embora aqui e ali ela pincele o texto com figuras de linguagem graciosas “com uma delicada escova em um pequeno cabo de marfim” (como ela disse de si mesma), o imaginário em relação às paisagens, gestos, cores, e assim por diante, é muito contido. Raramente ela usa metáforas e analogias em suas comparações. Em Portsmouth, a imagem do mar que "dançava de alegria e quebrava contra as muralhas" (p.505) é uma das raras usadas no livro. Infrequentes também são as metáforas convencionais ou banais como a da gota de água na comparação do ambiente doméstico dos Price com o dos Bertram: "e, quanto aos pequenos aborrecimentos, às vezes provocados pela tia Norris, eram breves, insignificantes, uma gota de água no oceano, comparados com o tumulto constante do atual domicílio.” (p.487) Em descrições de atitudes e gestos, ela faz um uso correto de particípios [no original, smiling, looking etc.] ou de adjetivos como um “sorriso maroto” (arch smile), apresentados de uma maneira similar a parênteses, como se fossem rubricas teatrais, dispositivo mais do que apropriado em Mansfield Park já que o romance como um todo se assemelha a uma peça. Destaca-se ainda o caráter  oblíquo da construção e da entonação de um discurso, fazendo com que a ação e a caracterização procedam do diálogo ou do  monólogo. Um excelente exemplo encontra-se na fala de Maria à medida que se aproximam de Sotherton, seu futuro lar: 
Daqui para a frente, a estrada é plana, srta. Crawford; acabou-se o incômodo. O resto do caminho é como deve ser. O sr. Rushworth o arrumou quando herdou a propriedade. O vilarejo começa aqui. Aquelas casinhas são uma desgraça. O pináculo da igreja é muito bonito. Ainda bem que a igreja não fica tão perto do solar como em tantos povoados antigos. Os sinos devem ser um transtorno. Lá está o presbitério; uma casa muito arrumada; e eu soube que o reverendo e sua esposa são ótimas pessoas. Aqueles asilos para pobres foram construídos por alguém da família. À direita fica a residência do administrador, um homem muito respeitável. Agora estamos perto do portão; mas ainda temos de percorrer quase um quilômetro e meio para atravessar o parque. (pp.170-1)
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     A jogada do cavalo [knight's move]
    Especialmente ao lidar com reações de Fanny, Austen usa um dispositivo que Nabokov chama a jogada do cavalo [knight's move], um termo de xadrez para descrever uma guinada súbita das emoções da mocinha.
     Na partida de Sir Thomas para Antigua, Fanny também respirou aliviada, embora, sendo por natureza mais sensível que as primas, recriminasse o que via como ingratidão de sua parte e [knight's move:] sofresse por não conseguir sofrer. (p.120)
    Antes dela ser convidada a acompanhar a expedição a Sotherton, ela deseja intensamente ver a alameda de árvores da propriedade antes que fosse alterada, mas como era muito longe, ela diz, Ah, não importa. Quando eu for, [knight's move:] você [Edmund] me dirá o que mudou.(p.145)
    A indecisão em participar da peça por questões ligadas a um desejo de autenticidade e de pureza, a faz desconfiar [knight's move:] da autenticidade e da pureza dos próprios escrúpulos. (p.242)
    Ela fica “muito feliz” em aceitar o convite para jantar com os Grant, mas logo se pergunta (knight's move:) Mas por que eu estaria feliz? Não sei que vou ver ou escutar alguma coisa que há de me magoar? (p.309)
    Quando, escolhendo uma corrente, ela percebe que há uma que está posta à sua vista mais do que as demais, escolheu-a [knight's move:] na esperança de que fosse a que a amiga menos queria conservar. (p.348)   

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    A “covinha” irônica
    Destacam-se entre os elementos do estilo de Austen uma espécie de “covinha especial”, obtida pela furtiva introdução nas frases de um pouco de delicada ironia entre dados de informação simples. Em destaque, algumas dessas frases-chave:
Ofendida e indignada, a sra. Price enviou-lhe uma resposta amarga, que incluía todas as irmãs e tecia comentários tão desrespeitosos acerca de Sir Thomas que a sra. Norris não conseguiu guardá-los para si mesma. E essa resposta pôs fim a toda relação entre elas por um tempo considerável. (p.92)
    Quando a jovem Fanny é apresentada às crianças Bertram, essas estavam tão acostumadas com visitas e elogios que não sofriam de timidez natural e, sentindo-se mais seguras ante a total insegurança da prima, logo estavam examinando as feições e a roupa da recém-chegada com absoluta indiferença. (p.101)
    No dia seguinte, as filhas se horrorizaram ao descobrir que Fanny só tinha dois cintos e nunca aprendera francês; e, ao perceber que não a impressionaram muito com o duo que tiveram a bondade de tocar, generosamente lhe deram alguns brinquedos de que menos gostavam e a deixaram sozinha... (p.102)
    A sra. Bertram passava o dia no sofá, elegantemente vestida, ocupada com uma costura ou um bordado de pouca serventia e nenhuma beleza, pensando mais na cachorrinha do que na prole... (p.107)
    Podemos chamar esse tipo de inserção de “covinhas” delicadamente irônicas na pálida e virginal face do autor.
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     Entonação epigramática
    Outro elemento do estilo de Austen é a sua entonação epigramática, um certo ritmo conciso na expressão espirituosa de um pensamento um pouco paradoxal. Esse tom de voz é conciso e macio, seco e ainda assim musical, incisivo, mas límpido e leve. Um exemplo é a sua descrição de Fanny aos 10 anos, quando chegou em Mansfield: Era miúda para a idade, um tanto pálida, desprovida de qualquer traço de beleza e excessivamente tímida; contudo, embora desajeitada, nada tinha de vulgar e, ao falar, revelava uma voz doce e assumia uma bonita expressão. (p.100)
      She was small of her age, with no glow of complexion, nor any other striking beauty; exceedingly timid and shy, and shrinking from notice; but her air, though awkward, was not vulgar, her voice was sweet, and when she spoke, her countenance was pretty.
    Nos primeiros dias após a sua chegada, Tom não a submetia a nada pior que o tipo de brincadeira que um rapaz de dezessete anos acha justo fazer com uma criança de dez. Ele estava começando a vida com a empolgação e a liberalidade do primogênito ... Com relação à priminha adotara uma postura condizente com sua situação e suas prerrogativas: dava-lhe bonitos presentes e ria dela. (p.105)
    [Fanny] had nothing worse to endure on the part of Tom, than that sort of merriment which a young man of seventeen will always think fair with a child of ten. He was just entering into life, full of spirits, and with all the liberal dispositions of an eldest son .... His kindness to his little cousin was consistent with his situation and rights: he made her some very pretty presents, and laughed at her.
    Tal estilo não é invenção de Austen, nem mesmo é uma invenção inglesa, diz Nabokov, que suspeita ser advindo da literatura francesa, nos séculos XVIII e XIX. Austen não leu francês, mas manipula o ritmo epigramático com perfeição.
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Estilo não é uma ferramenta, não é apenas uma escolha de palavras. Constitui um componente intrínseco ou uma característica da personalidade do autor. Quando se fala de estilo, se diz da natureza peculiar e individual de um artista; a forma como ele se expressa em sua produção artística. É essencial lembrar que, apesar de todas as pessoas terem o seu estilo, somente o estilo peculiar a esse ou aquele escritor de gênio vale a discussão. E esse gênio não pode se expressar pelo estilo literário de um escritor a não ser que esteja presente em sua alma. Um modo de expressão pode ser aperfeiçoada por um autor. Não é incomum que, no curso de sua carreira literária, o estilo de um escritor torne-se cada vez mais preciso e impressionante, como, aliás, foi o que fez Jane Austen. Mas um escritor desprovido de talento não pode desenvolver um estilo literário de valor; na melhor das hipóteses, será uma mecanismo artificial deliberadamente desenvolvido e desprovido da faísca divina.

Notas
1 - A casa soturna (1954), de Charles Dickens, foi traduzido por Oscar Mendes, publicado pela Globo, em 2 volumes, e reeditado em volume único (1986) pela Nova Fronteira.
2- As observações aqui expostas foram extraídas do livro Lectures on Literature, de Nabokov.
3- Os trechos em português do romance Mansfield Park foram retirados da tradução de Hildegard Feist, publicada pela Cia. das Letras (selo Penguin).
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A defesa Luzhin, capa de Paul Sahre, Vintage Books.
Nabokov foi um ótimo enxadrista. O romance A Defesa Luzhin trata diretamente do xadrez, mas o jogo perpassa toda sua obra. Em Lolita, ele emprega a expressão “a knight’s move” para significar um tipo de acontecimento que desafia a aparente lógica. Em 1971, no livro Poems and Problems, reuniu 18 problemas de xadrez a 53 poemas de sua invenção. Segundo ele, “Problemas de xadrez exigem do compositor as mesmas virtudes que caracterizam todo tipo de arte respeitável: originalidade, invenção, harmonia, complexidade, e esplêndida insinceridade.” (cf. http://marginalia.com.br/2015/11/12/machado-de-assis-na-caissana-brasileira/)
Adaptação de The Luzhin Defence (2000), dir. Marleen Gorris
18 problemas de xadrez, 53 poemas













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Adaptações de Mansfield Park
 
Para a TV (1983), a  mais fiel.
“Palácio das ilusões” (1999), algumas alterações no enredo e uma Fanny indômita.
Para a TV (2007), baixo orçamento, muitas alterações.



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