31 de julho de 2010

O imaginário cotidiano de Moacyr Scliar

A crônica "Última homenagem", de Arlette Santos, foi escrita com base no seguinte exercício: escolher um trecho de notícia de jornal que detone a imaginação e origine um texto em qualquer gênero. Este exercício, por sua vez, surgiu com a leitura da coletânea de crônicas de Moacyr Scliar: O imaginário cotidiano, da Global, 2002.

Na introdução ao livro, diz Scliar:
"Dizem que Dalton Trevisan guarda notícias de jornal para delas depois extrair suas histórias. Quem conhece os contos do grande escritor paranaense não duvida desta afirmação: a realidade está ali presente - mediada, naturalmente, por seu talento ficcional. Porque para o talento qualquer coisa pode ser ponte de partida. Inclusive e principalmente as notícias do dia-a-dia. [...] Atrás de muitas notícias esconde-se uma história pedindo para ser contada. É a história virtual que complementa ou amplia a história real (se é que que sabemos exatamente o que é uma história real). A partir daí eu tinha uma nova fonte de inspiração - e de prazer."
As histórias que compõem o volume foram escritas para a seção "Cotidiano", do jornal Folha de São Paulo.


Outra crônica obituária

Se quiser ler outra crônica baseada em avisos fúnebres, procure no endereço http://www.lalectoraprovisoria.com.ar/?p=1763

Foi escrita por Eduardo Montes-Bradley e se chama "Sospechosa extinción de los vascos - Sobre la vitalidad de los obituarios".

Vale a visita. O blog parece ser coordenado por Flavia de la Fuente. Sempre com fotos originais, crônicas de assuntos variados. Hay literatura em forma de crônica, e um pouco de autocontação - gênero que ganhou força com a internet. Está em espanhol argentino, não portenho.

Última homenagem

Arlette Santos
          Comecei o dia de hoje da forma habitual. Lembrei-me do Chico Buarque: Todo dia ela faz tudo sempre igual... Como não tinha nada programado, pensei em adiantar minhas tarefas para o curso da Estação das Letras. Faltava-me, porém, inspiração.
          Fiz uma pausa para descansar, e liguei para a casa de minhas irmãs: quem atendeu foi Ednéa, que parecia ter algo a me dizer e não sabia como fazê-lo. Finalmente, indagou: “Já leu algum jornal hoje?” “Não”, respondi. “Na parte do obituário está a comunicação da missa de sétimo dia pelo falecimento do João Aragão”, disse-me ela.
          Embora a notícia não me tenha pego totalmente de surpresa, visto que já soubesse de seu grave estado de saúde, emoções e lembranças afloraram naquele momento. Resolvi passar algumas delas para o papel, tentando então criar algo em forma de texto para homenageá-lo.
          Falando assim em falecimento, vocês poderão pensar: e daí? Todo dia morrem Manoéis, Marias: faz parte do dia a dia. Só que para nós da família Ferreira, este João era uma pessoa muito especial.
          Nos anos quarenta, meus pais – descendentes de portugueses e nascidos em Petrópolis – resolveram vir para o Rio na esperança de “dias melhores”. Os pais do João Aragão, o Sr. Aragão – dentista – e D. Vitalina – professora – ambos nordestinos, não sei por quais motivos, fizeram o mesmo. Nossas famílias se tornaram amigas. Morávamos na Rua Miguel Rangel, em Cascadura. Não havia nenhum comércio no local, apenas casas, sendo a maioria bem simples. O número de crianças e jovens era bem grande. Fizemos muitas amizades. A vida era mais tranqüila: jogávamos vôlei no meio da rua, dançávamos ora em casa de um, ora em casa de outro. Clube, nem pensar. Reuníamo-nos cada hora em casa de alguém do grupo, porém onde mais nos encontrávamos era na casa do Sr. Ferreira, meu pai, e na do Dr. Aragão.
          O tempo foi passando. Naquela época, não havia assistência médica da Previdência Social e, mesmo que houvesse, nos moldes em que posteriormente foi criada, não poderíamos dela usufruir porque meu pai não exercia atividade com carteira assinada. Ainda estudante de Medicina, o João nos orientava como se fosse um médico de família. Quantas vezes nos tirou do sufoco! Para o meu pai, ele era uma das pessoas em quem mais se poderia confiar, e não apenas para assuntos de saúde.
          Lembro-me quando já na década de cinqüenta, ele já formado em Medicina, fez concurso para a Marinha. Naquela ocasião eu fazia o curso de Assistente Social na Escola de Serviço Social do Estado do Rio de Janeiro, na época localizada no Castelo. Enfrentava condução precária. Havia lotações de vinte lugares, e eu e outras pessoas amigas ou conhecidas sofríamos na fila por cerca de uma hora. Geralmente aparecia o João, nosso salvador: quando se aproximava do ponto do lotação diminuía a marcha, e os caronas – eu, Neusa, Luiz e algum outro conhecido – entrávamos no velho Citröen, às vezes como “sardinhas em lata”, e na maior alegria nem víamos o tempo passar, chegando logo, logo ao Centro da Cidade.
          E a vida seguiu seu rumo: João fez sua carreira na Marinha, chegando a Vice-Almirante. Foi diretor do Hospital Marcílio Dias. Quando meu marido, ex-combatente, resolveu requerer a pensão militar a que tinha direito, foi ele que, mais uma vez, nos encaminhou a quem pudesse nos orientar.
          Tendo completado setenta e nove anos recentemente, a perda de um amigo dos velhos tempos parece encerrar um capítulo de nossa vida. Ela, porém, continua, e devemos vivê-la intensamente.

26 de julho de 2010

"Crime confesso de imprecisão"

Ricardo Ramos
          Graciliano: retrato Fragmentado
          Eu tinha pouco menos de 15 anos quando cheguei ao Rio e foi aí que praticamente conheci meu pai. Sua prisão me deixara muito pequeno, lá em Maceió, na casa de meu avô materno. Umas férias ligeiras, dois meses corridos entre espantos, cariocas, não haviam bastado para nos aproximar. Se dele quase não aguardar nem o rosto, quanto mais traços de temperamento. È facil imaginar as surpresas que tive, no primeiro encontro, me oferecendo um cigarro ("Você fuma?") ou nas muitas conversas continuadas.
          Logo eu trabalhava em jornal, fazia política, estudava 'a noite. Ele era inspetor de ensino na minha escola, acreditei piamente que só fiscalizava a mim. Depois eu começava a escrever, umas coisas que pareciam contos, e naturalmente foi meu primeiro leitor. Além do geral de política e literatura, nosso terreno mais comum, passamos a falar daquilo em particular. Principiava meu aprendizado.
          - Não escreva "algo" - ele implicou
          Quis saber por quê, me respondeu:
          - É crime confesso de imprecisão.
          Mais tarde eu estranhei:
          - Por que você não usa reticências e exclamações?
          Não demorou um segundo:
          - Reticências, porque é melhor dizer do que deixar em suspenso. Exclamações, porque não sou idiota para ficar me espantando à toa.
         E certa vez, a propósito de um parágrafo que eu empregara diferentes tempos de um verbo( passado, presente , futuro), recomendou:
         - Não faça isso.
        Resisti, Machado de Assis fazia, até numa frase. Estava certo. Era um erro sim. Não gramatical, mas de pensamento. Ninguém raciocina aos pulos. E arrematou:
        - O importante é escrever duas páginas no condicional sem ficar monocórdio, nem dar eco, sem que se perceba.
        Esmoreci, confessando:
        - Não vou conseguir isso nunca.
       Ele me animou:
       - Vai, sim. Com suor, paciência, vai.

Para se alcançar a imprecisão desejada

Para se alcançar a imprecisão desejada, é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa que [o autor] aplica na composição de cada imagem, na definição minuciosa dos detalhes, na escolha dos objetos, da iluminação, da atmosfera.
Seis propostas para o próximo milênio, Ítalo Calvino 

Meninas narradoras, narração de meninas3

em Legião Estrangeira de Clarice Lispector
            Os desastres de Sofia
         O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
           – Cale-se ou expulso a senhora da sala. 
           Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava.


 
Os Desastres de Sofia – quase espetáculo, direção de Ivana Moura e Lúcia Machado, com Maria de Jesus Bacarelli e Leila Freitas.

Veja também Narração de meninos 1, 2 e 4.

25 de julho de 2010

Meninos narradores, narração de meninos2

Günter Grass, trad. Lúcio Alves
           O tambor   
          Mamãe me conduziu por uma escada monumental, idealizada para gigantes, através de ressoantes corredores, a uma sala em cuja porta havia uma tabuleta com a inscrição I-A. [...]
            À minha entrada, puxado por sua mão, houve risos entre a gentalha e as mães da gentalha. A um moleque gorducho, que queria bater em meu tambor, dei uns bons chutes na canela, para evitar partir vidros; isso o fez cair e dar com a cabeça, desmanchando seu penteado, sobre uma carteira, o que me valeu por parte de mamãe um sopapo na nuca.

***

Gente miúda e gente grande, o pequeno e o grande Belt, o pequeno e o grande ABC, Pepino, o Breve, e Carlos Magno, Davi e Golias, Gulliver e os liliputianos; plantei-me em meus três anos na altura do Gnomo e do Pequeno Polegar, negando-me a crescer mais. Por quê? Para me ver livre das distinções como as do grande catecismo, para não me ver chegar a um metro e setenta e dois, na qualidade do que chama de adulto, e ser entregue a um homem que, ao se barbear diante do espelho, se dizia meu pai, e ter de me dedicar a um negocio que, conforme o desejo de Matzerah, haveria de abrir a Oskar, ao completar vinte e um anos, o mundo dos adultos. Para não ter de matraquear nenhum gênero de caixa registradora ruidosa, aferrei-me ao meu tambor e, a partir de meu terceiro aniversário, não cresci nem um dedo a mais; estacionei nos três anos, mas também com uma tríplice sabedoria: superado no tamanho por todos os adultos, mas tão superior a eles; sem querer medir minha sombra com a deles, mas interior e exteriormente já acabado, enquanto eles, mesmo em idade avançada, continuavam se infernizando a propósito de seu desenvolvimento; compreendendo o que os outros somente logram com a experiência e frequentemente a duras penas; sem necessitar mudar ano após ano os sapatos e calças para demonstrar que algo crescia.

Sem exagerar, como viver? Como atingir, sem exagerar?
O exagero era o único tamanho possível para quem era pequeno.
A maçã no escuro, Clarice Lispector

23 de julho de 2010

A parede amarela

Daniele Alves
              Todas as tardes são momentos especiais.Se é primavera ou se está próximo dela, mais especiais ainda são as tardes.
               A idéia ou conceito de tarde se origina de uma tarde primordial a partir da qual todas as demais serão determinadas como tais. Não se trata de dizer o que é a tarde filosoficamente, até porque, a minha ´´primordial`` é aquela passada nos quintais da minha avó que por sua vez também devia trazer algum elemento das tardes da infância dela. Comecei a me dar conta do que seria esse período do dia, por coincidência ou não, quando as paredes da cozinha lá de casa estavam pintadas de amarelo. Somado a esse fato, tem também a coisa de eu estar com sete anos mais ou menos, idade em que a gente inicia um processo de querer dizer o que as coisas abstratas são.
               Se a coisa for assim ou não, isso é irrelevante. O fato é que a cozinha era amarela e quando o sol incidia porta adentro e se misturava á cor da parede, a cozinha ficava mais morna, mais iluminada e bonita. O cheiro era também mais morno, mais adocicado e a cadência da tarde era dada pelos pés de minha avó movimentando o pedal de uma máquina de costura preta e velha. Seus olhos, pés e mãos trabalhavam num sincronismo perfeito: na harmonia de que a tranqüilidade da tarde impregnava o ar, todos os sons eram concordes e harmoniosos também. Parece que toda natureza à tarde faz um acordo no sentido de que nenhum som ou ritmo quebre tal atmosfera. Os cachorros são mais cautelosos ao latir, não latem à toa, os gatos não se precipitam sobre os pássaros mesmo sabendo da abundância maior deles no quintal, nesse período do dia: o instinto não se altera diante da abundância. As crianças gritam mais, é verdade, porém seu riso é mais alegre, ameno, o que de forma nenhuma quebra o clima de santuário desse período do dia. E minha avó com os pés na máquina de costura, os olhos e os ouvidos no fogo, vigiando o borbulho do angu ou do arroz doce. Às vezes parava a costura quando era dia de fritar uns bolinhos de trigo (denominados também de badanha ou orelha de velho, devido ao aspecto de pele enrugada e pela forma que tomavam): fritasse ou cozinhasse o que fosse à tarde, tinha de ser sempre algo doce. Nos dias de pouca disposição para ir para o fogão, cozinhava abóbora, que era mais rápido, para gente comer com leite e açúcar, o que acontecia raramente, graças a deus, porque eu detestava comer aquilo.
              E o sol seguia dourando as horas, nas quais ninguém se aborrecia, ninguém acelerava ou retardava o tempo das coisas, pois que o tempo da tarde é um tempo perfeito, sagrado, o mais humano e sublime do dia.
             Quando o sol não incidia mais na porta, quando retirava sua cara marota da cozinha, minha avó ia recolhendo os restos de panos e de linha espalhados na máquina, no chão. Guardava tudo onde podia, desarmava a máquina que era empurrada para um canto na cozinha e iniciava a preparação do jantar.
           Hoje, mais de vinte anos depois, fico olhando, no centro da cidade as pessoas passando, buscando os filhos nas escolas, andando de carro, a pé ou de bicicleta e encontro ainda algum vestígio da minha tarde primordial, cuja existência construí com minha avó. Hoje parece não haver diferença entre essa parte do dia e as demais no que diz respeito à circulação das pessoas nas ruas. Mas à tarde só uma coisa pelo menos é quase imperceptivelmente diferente. O tempo de ação, das coisas em geral é um pouquinho mais lento. Observando com atenção todo mundo na rua, quase sinto aquele cheiro de angu doce que minha avó fazia, todo salpicadinho de canela que ela teimava em economizar, ignorando sempre meus protestos.
           E não me venham dizer que é porque esse período do dia procede ao almoço e à digestão que as coisas são um pouco mais lentas: ainda prefiro minha explicação poética e sensitiva a uma insossa explicação biológica do que seja a tarde.

22 de julho de 2010

Meninos narradores, narração de meninos1

(De "Infância", Graciliano Ramos)
Um cinturão 
            As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
            Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família.
Veja Meninos narradores, narração de meninos 2 e 4
Meninas narradoras, narração de meninas 3

21 de julho de 2010

A tragédia de um personagem ou Dois irmãos

 Maria Luiza Martins
          Começo comentando que, ao que parece, Luigi constrói os seus personagens a sua semelhança. Na verdade ele quer conversar consigo mesmo as incongruências da vida vivida e de tudo que ocorre no mundo. Ao mesmo tempo em que tal preocupação o diverte, suas observações e constatações o levam a um estado de espírito desconfortável ou até desesperador. E suas análises e conclusões viram o seu objetivo principal, que se expressam em escrever, em fazer teatro e viajando pelo mundo buscando e dando soluções hipotéticas nas mais diversas situações e lugares. É um curioso da vida, este é o seu sabor, mais que vivê-la.
          Ele próprio era um personagem: um criador de personagens. A mãe falecida, os parentes, eu e meu irmão, pois acabei fazendo um texto – Dois irmãos – e digo: nós também poderíamos ser personagens para ele, nascidos da leitura de Luigi Pirandello.
          DOIS IRMÃOS 
          Eu achava que mandava nele. Na verdade éramos tão unidos e identificados nas brincadeiras e interesses, que tudo que fazíamos era juntos. Dizíamos um pro outro: “se você tirar o sapato, eu também tiro”. “Vamos subir nas árvores?” “Vamos colher ovos?” “Vamos brincar de fazer carrinhos e estradinhas no barranco?” Mandava quem primeiro tinha tido a idéia da brincadeira ou empreitada a fazer.
         Achava que ele era meu, desde que ele entrou na minha vida nos seus três aninhos. O meu irmão. Éramos muito divertidos e unidos. Entendíamos um ao outro às mil maravilhas.
         Ele já morreu há dez anos. Não sei por que ele me veio à mente agora. Talvez por estar presente em meu coração.
         Pais mineiros e rigorosos, não nos deixavam ir à rua, exceto às aulas, ou para andar de bicicleta que era uma só. Um na garupa e o outro pedalando. Ou, cada um num pedal, num sobe-desce, a maior diversão.
         Ao longo da vida fomos unidos e ele sempre foi o meu maior amor, dos três aos sessenta. Mas um dia ele se libertou do meu involuntário domínio, que era apenas natural, como tudo de bom na vida é do nosso domínio, a flor, o perfume, a alegria e o prazer. Coisas que Deus nos dá, tudo é da gente.
         Éramos adolescentes. Eu, menina de treze anos e Gabriel de dez.
         Foi num dia qualquer, em que eu estava próxima à janela do quarto, aberta para a área lateral da casa, uma comprida área externa, e lá estava ele no fim desse espaço. Cheguei à janela e um objeto caiu da minha mão lá fora, na área.
        “Pega aqui pra mim!”, gritei pra ele, enfiando a cabeça pra fora.
         Ele não se moveu do lugar e gritou: “Não vou!”
         Foi tão verdadeiro este não, tão nascido dele ali naquele momento, que entendi perfeitamente: terminara o meu mando, ele assumia sua própria individualidade.
         Respeitei-o. E o amei mais ainda.
       Nessa época eu amava também o meu pai, que começava a fazer distinção entre seus dois menores, a filha e o filho. Suas atenções, em caminhadas pela linha da estrada de ferro, num papo maravilhoso que ele sabia ter, caíram sobre meu irmão. E começou a sair só com ele, recusando que eu fosse.
         Eu ficava na janela da varanda. Olhando os dois se afastarem. Sentida.
         Foi um golpe duro, uma escolha. O Gabriel era muito bom, precoce e veio a ser mais inteligente que eu, mais falante, mais solto. Eu tinha inveja dos papos que os dois faziam, na linha da estrada de ferro.
         Engoli. Eu nunca ainda cogitara no que é o amor. Eu já sentia o amor, mas não sabia. Eu já amava todo mundo. Tudo pra mim era muito importante. Hoje nem tudo é importante. Tudo é tão relativo.
         Eu era “metida à besta”, expressão que hoje talvez seja “fulano se acha”. Escrevendo assim tão solta, descuidadamente teclando, vem nascendo estas lembranças, virando saudade louca do meu irmão e da felicidade.
         Na verdade estou é indignada depois de ter lido Luigi Pirandello por ter arranjado personagens pra ele, como ele gostaria. Foi daí que caí me lembrando do Gabriel, meu irmão e de todo o amor e encanto de nossas vidas.  E de toda a dor de viver! Pirandello bem que gostaria desses dois personagens, eu e Gabriel!
         Que tipo de homem este, que deve ter tido também uma vida bem angustiada! Pois se tinha permanente o pensamento de que o homem tinha de escolher apenas um papel na vida, quando sabia que podia ter cem ou mais! Acabou assim, cheio de indagações, de confrontos e análises existenciais. Trabalhou bem suas idéias, tornou-se diferente dos demais de sua época e de todos os tempos. Até ganhou um premio Nobel pela sua esquisitice, sem escorregar para um estado de loucura.
          Era um cara interessante, mas ainda não estou interessada nele. Pode ter sido original, um pensador, um dramaturgo, famoso, o escambau! Não tô nem aí pra esse tipo! O que a vida precisa é de Poetas! Meu Deus, a vida tem tanta poesia! Por que representar tragédias?

17 de julho de 2010

A verdade inspira os homens, as ideias apossam-se deles.

Luigi Pareyson
A verdade transporta os homens, exaltando-os acima de si proprios, tornando também os humildes capazes de grandes coisas; as ideias se apossam dos homens, sujeitam-nos à realização do seu programa, reduzem-nos a meros instrumentos, quer se trate do herói cósmico-histórico ou da massa despersonalizada. Nenhuma escravidão é comparável àquela do homem relativamente às ideias que ele próprio produziu: pensemos no imperio da moda, do lugar comum, do culto da atualidade, dos mais diversos conformismos, e, sobretudo, na violência das lutas ideológicas, do fanatismo político e religioso, das guerras ditas de religião, e que melhor seria chamar de superstição, que é o falseamento puramente humano da religião.

O homem se torna escravo somente de si mesmo e de suas proprias ideias. Mas se a obediencia à razão sem verdade é a mais intoleravel das tiranias, não há nada de servil na obediencia do homem à verdade. Neste caso, a obediencia coincide com a liberdade, porque a verdade inspira, não domina; estimula, não impera; sustenta, não submete; é um apelo que pede resposta e testemunho, não uma imposição que oprima ou constranja; é um reclamo que coloca o homem diante das suas responsabilidades e o instiga a cumprir livremente o ato com o qual afirma a si mesmo, salvaguardando o proprio ser, recuperando a propria origem, estreitando indissoluvelmente o vínculo entre pessoa e verdade: "a verdade vos libertará".
Trecho retirado de Verdade e interpretação, trad. MHelena Garcez e Sandra Neves Abdo, SP: Martins Fontes, 2005, p.28.

16 de julho de 2010

Crença na palavra

 A palavra sem freio e a insensatez sem lei,
à desgraça põe fim.
Eu a aceito, esta crença em que a turba crê.
As Bacantes, Eurípedes (Trad. Eudoro de Sousa)

15 de julho de 2010

O idiota: intertexto

Brito Broca
(Introdução do romance, em edição traduzida por José Geraldo Vieira, da José Olympio, Rio de Janeiro, 1952)

Dostoieviski trabalhava irregularmente, interrompido por inúmeros contratempos. A criação literária não lhe era, além disso, um processo fácil. A descida aos infernos, aos subterrâneos da alma, não se podia fazer suavemente. De onde as hesitações, os diversos esboços que precedem as versões definitivas dos seus romances. Para “O idiota”, os cadernos do autor estão cheios de anotações: assassínios, raptos, incestos. À versão inicial sucedem mais sete, todas diferentes, com diferentes heroínas.

(...) O sétimo esboço assinala verdadeira crise no processo de criação do herói principal. Dostoievski confessa-se indeciso ante o caráter do personagem, e escreve à margem: “Afinal, quem será ele: um impostor ou a encarnação de um ideal misterioso?” No fim desse esboço, o romancista anota, como quem acaba de fazer, subitamente, uma grande descoberta: “Ele é idiota, mas é um príncipe”.

13 de julho de 2010

Exercícios de ser torto

              Embriagai-vos
             É necessário estar sempre bêbedo. Tudo se reduz a isto; eis o único problema. Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem tréguas.
             Mas  – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor. Contanto que vos embriagueis. E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já tenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
             – É a hora da embriaguês! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriaga-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.
Charles Baudelaire (Trad. Aurélio Buarque de Holanda)

Estou embriagada de....

                                                 Poder, do direito de mandar
                                                 no outro, em muitos.
                                                 Como Deus, reis, padres.
                                                 Mandar, ponto.
                                                  Com vileza ou bondade, decido.
                                                  Justiça ou não, quem se importa.
                                                  Exerço e me exercito
                                                  no pântano da solidão.
                                                              SPW
 

Preguiça.
Escolher palavras? Junto cacos.
Quero digerir a pausa.
Morrer num suspiro, fazer algum sentido,
como uma lesma num campo em pleno verão.
Sou bicho-preguiça. Observo,
não me levanto.
Eis meu pecado, minha máxima.
Não me redimo, fico.
Olho aquela nuvenzinha passar.
                                                                  Zeca Carvalho

Baudelaire e a inspiração

Maria Zambrano
A poesia adquire consciência na era da consciência. O poeta vai adquirindo, cada vez mais, consciência de sua poesia e de si. O poeta, pela primeira vez, teoriza sobre sua arte, e até pensa sobre sua inspiração, o poeta propriamente romântico pensa desde a sua inspiração - Novalis, Victor Hugo -. O poeta que o segue - Baudelaire - interpreta sua inspiração como trabalho. "A inspiração é trabalho todos os dias." O poeta já não sente ou não quer se sentir a mercê do arrebatamento, do delírio que o possui. E é tanto mais significativo, porque quem assim pensava era o mesmo que dizia: "Embriagai-vos, embriagai-vos sempre, de virtude, de vinho... que importa!", o mesmo de "em qualquer parte, contanto que seja fora do mundo!" Mas, neste caso, seria preciso distinguir entre a inspiração poética propriamente dita, e o que o homem Charles Baudelaire, vivente da época do positivismo, pensava. Suas idéias correspondiam plenamente às da época: primazia do trabalho, domínio total da consciência. E significam um grau mais no processo de aproximação à consciência pela poesia, e a afortunada união da inspiração com o esforço; do "poeta vate" com o "poeta fabër"; Baudelaire realizou plenamente o que atribuíra a seu gênio tutelar, Edgar Poe, "submetido à sua vontade o demônio fugitivo dos instantes felizes"*.

* Novas histórias extraordinárias

(Trecho de Filosofía y poesía, 5a. ed., Mexico: FCE, 2005. p.75)

11 de julho de 2010

Embriaguez... de quê afinal?

SWP
           Naquela noite caminhava desligada pelas ruas do Humaitá, mal conseguindo distinguir as coisas das pessoas, em meio a uma sensação que me colocava em uma acertada conjunção com o mundo. É verdade que as várias taças de vinho que eu bebera tinham contribuído para aquele estranho sentimento do mundo. De qualquer forma estava leve, corpo e alma. E mais do que isto, coisa rara, achava-me perfeitamente capaz de entender o mundo. Naquele estado de embriaguez, rumava absorta para algum lugar sob a noite estrelada que eu sequer notara. Ao atravessar a primeira rua, ouvi um chamado claro.
           – Would thou be so gentle as to give a lost soul an information? Am I entirely lost in this place! Olhei espantada na direção daquele inglês pouco compreensível e arcaico. Custei a reconhecer a esdrúxula figura. É bem verdade que estivera com ele o dia inteiro, mas nem de longe imaginava encontrá-lo ali àquela hora. Meio trêmula de emoção, caminhei em direção ao mestre bardo. Porém, ele já não mais se dava conta da minha companhia. Alheio, pensava em voz alta na construção do seu próximo personagem. Na tibiez daquele futuro rei que tantos males viria a causar ao reino da Inglaterra. Nas sangrentas lutas que estavam por vir. De mansinho, mas a contragosto, afastei-me com
medo de perturbar tão solene momento. A vontade era ficar ali e sorver até a última gota o que pudesse me ajudar a apreender os meandros da arte da escrita.
           Retomei o meu caminho para, na próxima esquina, deparar-me, sentado em uma mesa de bar, com Camus. Parecia meio amargurado e tinha à mão a versão final da “Queda”, a trajetória de vida daquele advogado, outrora bem sucedido na vida, que ciente da circunstância humana se auto-intitulava agora um juiz itinerante e estava apenas à espera da morte. Fugi apressada e amedrontada daquele cenário. Nada a ver com meu estado de espírito.
           Esbarrei, adiante, saído de não sei onde (um não sei onde que pode ter sido de trás de uma das árvores) com ninguém menos do que o Rosa. A emoção foi talvez maior. Com um ar matreiro ele parecia divertir-se com o meu medo. Lendo meus pensamentos, olhava-me como se me dissesse que talvez fosse tarde demais para que eu fosse capaz de levar a cabo a tarefa a que me propunha. Apreender os meandros da arte da escrita é tarefa para uma vida inteira, inteirinha! E, mais do que isto,
pra poucos. Ou, talvez, quisesse dizer apenas que não há nada de misterioso na arte de escrever. Será que basta saber usar a língua e juntar uma pitadinha de inspiração? Já me preparava para escutá-lo quando ele, assim, meio arisco, decidiu seguir o seu caminho. Ah, que tristeza!
           Ainda mal recomposta daquela decepção, vi aproximar-se o Calvino com as suas propostas para a literatura... Ele, sim, poderia me dar o norte que andava procurando. Claro, com sua sofisticação ao pensar a literatura, não tinha ele, e, com quanta modéstia, sugerido as propostas para o próximo milênio? Quem mais poderia desejar encontrar? Outros sim; ele, certamente. Corri animada ao encontro do mestre que, com seu encanto, me despertou para os encantos da escrita. Porém, por apressada que sou, ele também não me deu grande alento. – É uma conquista paulatina, disse reconfortando-me. Saber reconhecer a leveza, a rapidez, a exatidão, a visibilidade, a multiplicidade, enfim, o valor da obra escrita demanda tempo. Não é tarefa de meio-horário.
           Podia continuar a lista das várias outras leituras recentes que andam me assombrando. Porém é fácil concluir que a embriaguez não era bem do vinho, mas, da arte da escrita, que me tem cativado como nunca, com ou sem a ajuda do vinho. Das alternativas de Baudelaire – virtude, vinho ou poesia – escolho a última.

9 de julho de 2010

Tela viva

Zeca Carvalho
          Minha fantasia é a fantasia dele. Minha realidade é tornar-me realidade dele.
           Esta é a minha oitava visita e é como a primeira vez. Entro através da porta já semi-aberta e noto que ele está aguardando pacientemente no sofá, fumando um charuto perfumado.
           Retiro sapatos, meias, vestido, cinta e todos os aparatos que me cobrem. Deixo ali em suspenso, véus e enfeites. Finalmente despida me visto de mulher.
           Chego mais perto e noto um pano de cetim ao lado do sofá. Pego e displicentemente jogo ao longo do corpo. Cada gesto é acompanhado por um olhar atento.
           No ambiente escutamos apenas nossa respiração e uma triste melodia ao fundo. Tintas e pincéis espalhados na mesa aguardam o longo ritual.
           Ando em direção ao grande espelho do salão e retiro um a um os grampos que ainda prendem meu pesado cabelo num coque. Ao sentir cair a cabeleira, encontro novamente aquele olhar fixo. Não nos falamos. Sei que em breve fechará os olhos como estivesse em transe; mas também fará uma minuciosa vistoria no meu corpo, sem o menor pudor. Aguardo.  Não há cobiça nem desejo, mas há paixão.
           Ele me chama com as mãos sem emitir um único som e ajeita-me ao pé do criado-mudo. O pano que cobre parte do meu corpo é retirado num único movimento. Fico imóvel com meus seios à mostra absorvendo a respiração alheia. Ali ao meu lado, ele toca levemente nos meus ombros, coxas, ventre, face, sempre a procura da melhor posição.
          Torno-me um desafio a ser admirado e perpetuado através da perfeição de cada curva, linha e traço, dele. Somos um. A fantasia dele é minha fantasia que se completam através dos pincéis.  E ficamos ali, horas e horas exercitando nosso poder de contemplação. Imóvel e obediente, acompanho a dança dos pincéis que preenchem a tela e que aos poucos me revelam. Despindo-me, ele me veste em cores.
           Finalmente, com o cair da tarde, o som da rua ultrapassa a janela e faz um coro surdo com os pedidos de nossos corpos já cansados. Ouve-se em seguida a badalada dos sinos anunciando
a missa das seis. Instantaneamente pincéis são jogados na água e como desperta de um longo sono, ergo rapidamente o pano de cetim caído aos meus pés e cubro-me inteira. Ligeira e casta sigo para o canto da sala onde o enorme biombo de madeira escura separa os dois mundos. Coloco de volta a apertada cinta, a anágua, as longas meias finas e o vestido de veludo azul. Os cabelos são presos novamente.
           Já na saída, em frente ao espelho, deparo com o olhar dele que, com o flagrante, abaixa a cabeça timidamente.
           Busco o chapéu pendurado junto a porta e após pegar o pequeno envelope pardo no aparador de madeira, inclino ligeiramente o corpo em sinal de despedida. O aceno é retribuído em igual cortesia.
           Ganho a rua sem pressa e sem culpa.  Sem fantasia, sigo minha realidade. No pátio da igreja, cumprimento outras senhoras.

Podemos ensinar alguém a escrever?

Angela Brancante
          Creio que escrever é um misto de dom, talento, interesse, cultura, conhecimento, sensibilidade, coisas que não se ensinam.
          Escrever é um exercício, um canal de ligação do indivíduo com o mundo, escrever gera redefinições a respeito da própria individualidade, da visão particular, única e subjetiva de mundo e de si mesmo. Escrever é um ato de entrega e de transporte para outros mundos, visíveis ou invisíveis. Escrever é um ato de intimidade com a expressão escrita. Escrever é tomar para si o presente, o aqui e agora, é imaginar destinos, é construir outros tempos, outras memórias. Escrever implica em um processo de criação e descoberta, um ato sempre inacabado. Brincar, rolar e sonhar com as palavras. Escrever é encantar, é aterrorizar, é desvendar a cada passo o sentido da vida.
          Será que isso se ensina?

8 de julho de 2010

Espontaneidade e ritmo na escrita

Bia Albernaz
          Em luta corporal, cada um se encontra quando pega o ônibus, atravessa a rua, perfila-se no banco, senta-se na praça, descansa no jardim ou conversa com o cachorro. E a carga de motivação psíquica, orgânica e social nesses atos imprime ritmos determinados na fala. Um escritor emprega tempo a escutá-la, a rememorá-la, em suas variações de altura, intensidade, tom e duração. Escrever um poema como uma partitura era o que fazia Mallarmé. Em seus últimos romances, Saramago suprimiu total ou parcialmente a pontuação. A entoação desvela movimentos da alma e demarca a linha melódica do texto. Ritmo é tempo qualificado; intenção premeditada ou ímpeto e rompantes, cadenciados ou não.
          Kerouac, Ginsberg e outros escritores da chamada geração beat inventaram uma prosódia, à procura da espontaneidade do jazz. Entregavam-se ao fluxo da consciência, no qual o primeiro pensamento é o melhor pensamento. Improvisavam, desviavam da linha melódica,  e retornavam a ela, em um fraseado rico em alternâncias. Isso dá a batida, a medida. Nesse sentido, a sonoridade do fluxo de consciência beat difere da escrita automática dos surrealistas que, na busca da inconsciência, desprezavam guias, chaves, sentidos.
          No entanto, pode-se dizer que tanto a escrita automática quanto o fluxo de consciência são modos de buscar o sonho, de reconquistar a espontaneidade na escrita. O surrealismo paga seu tributo ao simbolismo francês e o movimento beat ao romantismo anglo-saxão. A música está presente em ambos, mas o universo, a língua faz com que o estilo soe diferente. A escolha do “automático” ao lado da escrita louva a constância da máquina; o “fluxo” da consciência recusa a segmentação.
          Surrealistas, beats, simbolistas e românticos (e mais tarde expressionistas) estão todos jogados em um mesmo movimento de desconstrução para tornar visível o que está oculto, o caótico, que possibilita a reconstrução, e novos conjuntos harmônicos. Assim, a linguagem do escritor musical não se congela. Por mais que um poeta adote formas convencionais de poemas como o soneto, ou um escritor adote um gênero como o policial, ele não se congela numa fórmula, não reduz sua escrita à tradução de um conceito literário. Por isso os surrealistas fugiam do sentido como o diabo foge da cruz. Assim também, escrever de acordo com o fluxo da consciência requer um permanente esforço do escritor em direção à experiência, cuidando para que ela não se contente em ser experimentalismo. Por isso também não se pode dizer que o caminho certo para buscar a musicalidade e a espontaneidade seja o da escrita automática ou do fluxo da consciência. Na direção oposta, João Cabral de Mello Neto dizia sempre desprezar a primeira palavra que lhe vinha à cabeça, orientando a sua sonoridade para o minimalismo. Mas não vou continuar não. João Cabral e o minimalismo musical ficam pra depois.

7 de julho de 2010

Fluxo de consciência ou monólogo interior

Técnicas da ficção para apresentar conteúdos e processos psíquicos do personagem, parcial ou inteiramente inarticulados, em diversos níveis do controle consciente, em estágio anterior ao da fala deliberada.
Modos de apresentação:
- Direta, sem a intervenção do escritor, reduzido à condição de espectador mudo; espécie de confidência, sem barreiras e sem obediência à normalidade gramatical, sem introduções, intercalações ou aspas; uso do presente como tempo dominante; emprego da 1a pessoa; ausência de interlocutor; personagem impõe sua presença.

- Indireta, com a intervenção do ficcionista na transcrição do fluxo mental da personagem, comentando-o, discutindo-o e explicando-o (em 3a pessoa do singular), sem deformá-lo, como se a personagem não conseguisse exprimi-lo. Forma-se o triângulo escritor-protagonista-leitor.

- Solilóquio, personagem fala sozinho, no teatro ou no texto literário; oralização da consciência, com idéias e emoções estruturadas coerente e logicamente, ainda que a partir de um pensamento psicológico e não-racional; a intervenção do escritor é inexistente, personagem se comunica diretamente com o leitor como um interlocutor calado. Empregado quando o escritor deseja que a personagem expresse sua consciência com meios próprios, é feito sempre na 1a pessoa. Difere do diálogo pois personagem diz tudo o que se passa pela sua mente; confidencia, numa narrativa consistente, coerente, lógica. Um truque aparentado ao solilóquio é o aparte.


(Cf. Recanto das Letras em 08/03/2007, por Ricardo Sérgio - Código do texto: T405046; http://www.pucrs.br/gpt/fluxo.php; e HUMPHREY, Robert. O fluxo de consciência: um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy Richardson, Willian Faulkner e outros; tradução de Gert Meyer, revisão técnica de Afrânio Coutinho. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.)

6 de julho de 2010

O Creme

Ruth Lifschits
E o que é que tem levar um pote de creme pro serviço? Já expliquei tudo  pra supervisora, ela não lhe contou?  Saí de casa atrasada - esqueci o creme e tive que voltar – mas dei sorte e peguei a van das 5.  Não estou inventando desculpas não senhor. Sei que perco a hora muitas vezes, moro longe. Levanto no escuro e faço um montão de coisas antes de sair. Deixo tudo adiantado pra minha filha: almoço, troco pro ônibus, mochila pronta, uniforme passado. Não, ela não fica sozinha, tem sete anos. Minha mãe tá lá. Mas o creme é pros pés da paciente do quarto dezessete. Ela  tá mal, coração fraco, no oxigênio o tempo todo. Nem banho pode mais. Ontem os pés dela  tavam dormentes e eu fiz massagem - pele grossa, muito seca.  Aí me lembrei do creme que minha avó fazia. Claro que ela sabe que não sou enfermeira. Fica me olhando enquanto limpo o quarto. Acho que queria  fazer o que eu faço. Mas tá fraca. O senhor me desculpe, hospital é horrível. To nisso por necessidade. É, podia trabalhar em casa de família, mas é encrenca, uma prisão. Tenho filha me esperando, preciso de horário certo.   Gosto de falar com a doente do dezessete. É a única coisa boa naquele andar. A do dezenove é uma canseira. Se queixa de tudo: ar condicionado muito frio, muito quente, vento direto na cabeça, controle remoto do ar não funciona,  o da TV  também não, não consegue usar o telefone. Tudo funciona, ela é que bate os dedos de qualquer maneira e não consegue nada.  As enfermeiras não agüentam mais. Não estou inventando, elas me disseram. A mulher chama toda hora pra nada. Às vezes eu atendo. Ela não fica sozinha – é filha, filho, nora, acompanhante, todo mundo se virando pra ela ficar quieta. Desconfia dos remédios, diz que não precisa daquilo. Mas respira mal, coração disparado - não assume.  Não dorme, é só nos cochilos. A do dezessete sorri quando entro. Oro por ela pra que se recupere. É grave. As duas tão muito mal. O creme? Pois é, logo hoje o motorista me largou mais longe. Consegui bater o cartão no último minuto, tive que correr.   Nem deu pra eu tomar café. A supervisora veio logo pra cima de mim e quis saber qual era a do creme. Só porque estava num pote de maionese?  Expliquei tudo pra ela. Mas ficou com o creme e me escalou pro quarto andar. Trabalhei direto até o almoço.  Comi rápido e fui pegar o creme de volta. Não tinha ninguém na supervisão, fui na mesa dela e peguei. Não tem nada de mais, é meu.   Aí a supervisora chegou e armou essa confusão. Posso ir no dezessete agora? Ah...nem fiz a massagem. E a do dezenove? Jura?! Tá melhorando. Injustiça. Vai a jovem e fica a velha  que já viveu pra caramba.   A moça nem chegou aos trinta. É, o senhor tá certo. Isso não vai mais acontecer. O creme? Pode ficar, não preciso mais.

2 de julho de 2010

Parágrafos

A partir de "Comunicação em prosa e verso",
de Othon M. Garcia, editora FGV-RJ, 1992.
Parágrafo-padrão: tópico frasal + agregação de idéias secundárias
Vários processos de desenvolvimento ou encadeamento de idéias = vários tipos de estruturação de parágrafo.

Tópico frasal desenvolvido por
Enumeração
A televisão, apesar das críticas que recebe, tem trazido muitos benefícios às pessoas, tais como: informação, por meio de noticiários que mostram o que acontece de importante em qualquer parte do mundo; diversão, através  de programas de entretenimento (shows, competições esportivas); cultura, por meio de filmes, debates, cursos. 

Descrição de detalhes 
Era o casarão clássico das antigas fazendas negreiras. Assobradado, erguia-se em alicerces o muramento, de pedra até meia altura e, dali em diante, de pau-a-pique À porta da entrada ia ter uma escadaria dupla, com alpendre e parapeito desgastado.

Confronto
Embora a vida real não seja um jogo, mas algo muito sério, o xadrez pode ilustrar o fato de que, numa relação entre pais e filhos, não se pode planejar mais que uns poucos lances adiante. No xadrez, cada jogada depende da resposta à anterior, pois o jogador não pode seguir seu planos sem considerar os contra-ataques do adversário, senão será prontamente abatido. O mesmo acontecerá com um pai que tentar seguir um plano preconcebido, sem adaptar sua forma de agir às respostas do filho, sem reavaliar as constantes mudanças da situação geral, na medida em que se apresentam.

Razões
As adivinhações agradam particularmente às crianças. Por que isso acontece de maneira tão generalizada? Porque, mais ou menos, representam a forma concentrada, quase simbólica, da experiência infantil de conquista da realidade. Para uma criança, o mundo está cheio de objetos misteriosos, de acontecimentos incompreensíveis, de figuras indecifráveis. A própria presença da criança no mundo é, para ela, uma adivinhação a ser resolvida. Daí o prazer de experimentar de modo desinteressado, por brincadeira, a emoção da procura da surpresa.

Análise
Quatro funções básicas têm sido atribuídas aos meios de comunicação: informar, divertir, persuadir e ensinar. A primeira diz respeito à difusão de notícias, relatos e comentários sobre a realidade. A segunda atende à procura de distração, de evasão, de divertimento por parte do público. A terceira procura persuadir o indivíduo, convencê-lo a adquirir certo produto. A quarta é realizada de modo intencional ou não, por meio de material que contribui para a formação do indivíduo ou para ampliar seu acervo de conhecimentos.

Exemplificação
A imaginação utópica e inerente ao homem, sempre existiu e continuará existindo. Sua presença é uma constante em diferentes momentos históricos: nas sociedades primitivas, sob a forma de lendas e crenças que apontam para um lugar melhor; nas formas do pensamento religioso que falam de um paraíso a alcançar; nas teorias de filósofos e cientistas sociais que, apregoando o sonho de uma vida mais justa, pedem-nos que “sejamos realistas, exijamos o impossível”.

***
A quebra em parágrafos e a pontuação devem ser feitas adequadamente, mas apenas pelo efeito sobre o leitor.
Um conjunto de regras mortas não é bom.
Um novo parágrafo é uma coisa maravilhosa. Ele lhe permite mudar tranquilamente de ritmo, e pode ser como um relâmpago que mostra a mesma paisagem sob um aspecto diferente.
Isaac Bábel

O Que é Ser Idoso?

Arlette Santos
          Amanhã – 8 de abril de 2008 – completo setenta e sete anos, e uma atitude, digamos generalizada, na forma de focar esta parcela da população, na qual me incluo, incomoda-me bastante. Para mim, idoso, velho ou sexagenário é a pessoa que ultrapassou os sessenta e cinco anos... Não vai aí nenhuma ofensa ou discriminação.
          Fala-se freqüentemente em terceira idade, não sendo feitas referências semelhantes às outras faixas etárias como primeira ou segunda idades; quanto à melhor idade, quem inventou essa história? E há ainda a feliz idade, idade da sabedoria, etc, etc, tudo para dourar a pílula.
          Recentemente fui passar o Reveillon em Angra dos Reis, onde seria realizado no dia 30 de dezembro o IV Encontro dos Corredores do Frade. Resolvi participar como “caminhante”. Minha filha me inscreveu, e até o início da competição ninguém me conhecia. Quando cheguei, a minha presença causou impacto: um casal pediu permissão para me entrevistar e filmar, pois desejava me mostrar como exemplo para suas mães e sogras. Cumpri a caminhada no tempo estabelecido. Pelo meu enquadramento etário, ganhei até uma medalha de prata. Modéstia à parte, parece um bom desempenho para quem participou de uma competição esportiva pela primeira vez aos setenta e sete anos incompletos.
          O que quero questionar com este exemplo é que uma pessoa pode ser razoavelmente sadia física e mentalmente, sem deixar de ser idosa. Digo razoavelmente, pois creio ser quase impossível não ser acometido por um dos males característicos desta faixa etária – deficiência visual, cardiopatias, perda de memória... A sabedoria está não em negá-las, mas em saber conviver e não se deixar abater. É bom vermos a mídia preocupada com os nossos problemas, mas a maneira de camuflar uma realidade com expressões como as já citadas me parece uma forma de rejeição.
          Ainda neste fim de semana, lendo uma crônica da Marta Medeiros, surpreendi-me com a frase: “Pretendo morrer jovem aos 120 anos”. Para contestar essa afirmação, imaginemos uma cena: em um auditório repleto, o apresentador anuncia: “E agora, conforme o programado, vamos receber a jovem Maria das Dores, que nos falará sobre suas experiências em viagem à Amazônia!” Na seqüência, entra uma senhora com cerca de oitenta anos...
          Qual seria então a reação da platéia?
          É melhor encarar a realidade, acabar com o preconceito e admitir que o idoso pode ser alegre, sadio, dançar ou discursar. O tempo do vovô lendo e fumando cachimbo e da vovó de coque, pantufas e fazendo crochê já era.
          Os termos criança, adolescente, adulto e idoso se referem à idade cronológica, e não ao seu desempenho físico ou mental. Vamos encarar isto com naturalidade! Talvez assim o idoso seja mais valorizado.