Ruth Lifschits
E o que é que tem levar um pote de creme pro serviço? Já expliquei tudo pra supervisora, ela não lhe contou? Saí de casa atrasada - esqueci o creme e tive que voltar – mas dei sorte e peguei a van das 5. Não estou inventando desculpas não senhor. Sei que perco a hora muitas vezes, moro longe. Levanto no escuro e faço um montão de coisas antes de sair. Deixo tudo adiantado pra minha filha: almoço, troco pro ônibus, mochila pronta, uniforme passado. Não, ela não fica sozinha, tem sete anos. Minha mãe tá lá. Mas o creme é pros pés da paciente do quarto dezessete. Ela tá mal, coração fraco, no oxigênio o tempo todo. Nem banho pode mais. Ontem os pés dela tavam dormentes e eu fiz massagem - pele grossa, muito seca. Aí me lembrei do creme que minha avó fazia. Claro que ela sabe que não sou enfermeira. Fica me olhando enquanto limpo o quarto. Acho que queria fazer o que eu faço. Mas tá fraca. O senhor me desculpe, hospital é horrível. To nisso por necessidade. É, podia trabalhar em casa de família, mas é encrenca, uma prisão. Tenho filha me esperando, preciso de horário certo. Gosto de falar com a doente do dezessete. É a única coisa boa naquele andar. A do dezenove é uma canseira. Se queixa de tudo: ar condicionado muito frio, muito quente, vento direto na cabeça, controle remoto do ar não funciona, o da TV também não, não consegue usar o telefone. Tudo funciona, ela é que bate os dedos de qualquer maneira e não consegue nada. As enfermeiras não agüentam mais. Não estou inventando, elas me disseram. A mulher chama toda hora pra nada. Às vezes eu atendo. Ela não fica sozinha – é filha, filho, nora, acompanhante, todo mundo se virando pra ela ficar quieta. Desconfia dos remédios, diz que não precisa daquilo. Mas respira mal, coração disparado - não assume. Não dorme, é só nos cochilos. A do dezessete sorri quando entro. Oro por ela pra que se recupere. É grave. As duas tão muito mal. O creme? Pois é, logo hoje o motorista me largou mais longe. Consegui bater o cartão no último minuto, tive que correr. Nem deu pra eu tomar café. A supervisora veio logo pra cima de mim e quis saber qual era a do creme. Só porque estava num pote de maionese? Expliquei tudo pra ela. Mas ficou com o creme e me escalou pro quarto andar. Trabalhei direto até o almoço. Comi rápido e fui pegar o creme de volta. Não tinha ninguém na supervisão, fui na mesa dela e peguei. Não tem nada de mais, é meu. Aí a supervisora chegou e armou essa confusão. Posso ir no dezessete agora? Ah...nem fiz a massagem. E a do dezenove? Jura?! Tá melhorando. Injustiça. Vai a jovem e fica a velha que já viveu pra caramba. A moça nem chegou aos trinta. É, o senhor tá certo. Isso não vai mais acontecer. O creme? Pode ficar, não preciso mais.
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