23 de julho de 2010

A parede amarela

Daniele Alves
              Todas as tardes são momentos especiais.Se é primavera ou se está próximo dela, mais especiais ainda são as tardes.
               A idéia ou conceito de tarde se origina de uma tarde primordial a partir da qual todas as demais serão determinadas como tais. Não se trata de dizer o que é a tarde filosoficamente, até porque, a minha ´´primordial`` é aquela passada nos quintais da minha avó que por sua vez também devia trazer algum elemento das tardes da infância dela. Comecei a me dar conta do que seria esse período do dia, por coincidência ou não, quando as paredes da cozinha lá de casa estavam pintadas de amarelo. Somado a esse fato, tem também a coisa de eu estar com sete anos mais ou menos, idade em que a gente inicia um processo de querer dizer o que as coisas abstratas são.
               Se a coisa for assim ou não, isso é irrelevante. O fato é que a cozinha era amarela e quando o sol incidia porta adentro e se misturava á cor da parede, a cozinha ficava mais morna, mais iluminada e bonita. O cheiro era também mais morno, mais adocicado e a cadência da tarde era dada pelos pés de minha avó movimentando o pedal de uma máquina de costura preta e velha. Seus olhos, pés e mãos trabalhavam num sincronismo perfeito: na harmonia de que a tranqüilidade da tarde impregnava o ar, todos os sons eram concordes e harmoniosos também. Parece que toda natureza à tarde faz um acordo no sentido de que nenhum som ou ritmo quebre tal atmosfera. Os cachorros são mais cautelosos ao latir, não latem à toa, os gatos não se precipitam sobre os pássaros mesmo sabendo da abundância maior deles no quintal, nesse período do dia: o instinto não se altera diante da abundância. As crianças gritam mais, é verdade, porém seu riso é mais alegre, ameno, o que de forma nenhuma quebra o clima de santuário desse período do dia. E minha avó com os pés na máquina de costura, os olhos e os ouvidos no fogo, vigiando o borbulho do angu ou do arroz doce. Às vezes parava a costura quando era dia de fritar uns bolinhos de trigo (denominados também de badanha ou orelha de velho, devido ao aspecto de pele enrugada e pela forma que tomavam): fritasse ou cozinhasse o que fosse à tarde, tinha de ser sempre algo doce. Nos dias de pouca disposição para ir para o fogão, cozinhava abóbora, que era mais rápido, para gente comer com leite e açúcar, o que acontecia raramente, graças a deus, porque eu detestava comer aquilo.
              E o sol seguia dourando as horas, nas quais ninguém se aborrecia, ninguém acelerava ou retardava o tempo das coisas, pois que o tempo da tarde é um tempo perfeito, sagrado, o mais humano e sublime do dia.
             Quando o sol não incidia mais na porta, quando retirava sua cara marota da cozinha, minha avó ia recolhendo os restos de panos e de linha espalhados na máquina, no chão. Guardava tudo onde podia, desarmava a máquina que era empurrada para um canto na cozinha e iniciava a preparação do jantar.
           Hoje, mais de vinte anos depois, fico olhando, no centro da cidade as pessoas passando, buscando os filhos nas escolas, andando de carro, a pé ou de bicicleta e encontro ainda algum vestígio da minha tarde primordial, cuja existência construí com minha avó. Hoje parece não haver diferença entre essa parte do dia e as demais no que diz respeito à circulação das pessoas nas ruas. Mas à tarde só uma coisa pelo menos é quase imperceptivelmente diferente. O tempo de ação, das coisas em geral é um pouquinho mais lento. Observando com atenção todo mundo na rua, quase sinto aquele cheiro de angu doce que minha avó fazia, todo salpicadinho de canela que ela teimava em economizar, ignorando sempre meus protestos.
           E não me venham dizer que é porque esse período do dia procede ao almoço e à digestão que as coisas são um pouco mais lentas: ainda prefiro minha explicação poética e sensitiva a uma insossa explicação biológica do que seja a tarde.

Um comentário:

  1. Daniele Alves é o máximo!!!!!!!!
    Parede Amarela é tudo!

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