26 de fevereiro de 2011

Para repensar a inspiração

Bia Albernaz
É muito comum ouvir que, na escrita literária, 5% cabem à inspiração, e que o resto é trabalho, com o intuito de desmistificar a idéia de que arte se faz “de papo pro ar”. Mas tente escrever algo contando apenas com os 95% de expiração. Essa proporção é forçada, sobretudo se reconhecermos que – fundamental – a leitura é inspiradora. Com que porcentagem de leitura, afinal, se escreve um texto?

Começamos a escrever um texto a partir do que desconhecemos. Focamos aquilo que não se encaixa, mas que sabemos ser um começo. Saber é crença, como afirma Duchamps. Se juntarmos o que não se encaixa com o que se acredita, podemos começar. De um lado, os senões da realidade; do outro, a participação, o envolvimento, a fusão do eu ao outro. Impossível dizer onde começa ou onde termina um texto. A inspiração mantém-se intermitente, como um sabiá que é preciso às vezes realimentar, pelo desejo de tornar a ouvi-lo.
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Manifesto do movimento expressionista Die Brucke (A ponte), que procurava estabelecer uma ligação entre o visível e o invisível.

25 de fevereiro de 2011

Na primeira frase, a cena

          Meu último natal
Marcelino Freire
          Aí o Leco resolveu matar o Papai Noel. De verdade. dar uma pedrada na cabeça dele assim que ele chegasse. Não pela chaminé, que não havia. pela janela do barraco. Aquela encruzilhada de esgoto. Como viria? Voando?
          Leco ficou esperando. O olho grudado no alto. Apertando o pedaço de paralelepípedo. Também trouxe uma faca, caso fosse preciso. Ou se o velho gordo revidasse. E gritasse. Eu disse para o Leco. Papai Noel não grita. Faz só ho, ho, ho. Leco riu, meio apressado. E me disse que papai Noel era rico. Eu disse que não era. Leco disse que era. Papai Noel era dono de uma fábrica. E vinha de longe. De um país cheio de neve. País pobre não tem neve. E Papai Noel era gordo. Muito gordo. E sorria. Era um homem muito rico, sim. Por isso fazia ho.
          Tudo começou porque a mãe do Leco falou que Papai Noel não traria a motoca. Era uma motoco muito cara. E outra: Leco nunca foi um bom menino. Xinga a mãe por qualquer coisa. Um dia, cuspiu na cara da vizinha. O máximo que ele poderia ganhar, adivinha. Uma bola. Velho pão-duro. No ano passado, trouxe uma boneca bem feia para a irmãzinha do Leco. Ele ficou revoltado. Para ele, um helicóptero torto. E o Leco não queria um helicóptero. Muito menos torto. Queria uma motoca. Grande. Uma que pisca-pisca. Vem até com capacete de polícia. [...]

O conto encontra-se no livro Rasif - mar que arrebenta, da Record, 2008.
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O  conto de Marcelino Freire começa com uma frase-cena. Só de ler "Aí o Leco resolveu matar o Papai Noel." já se visualiza, ainda que de modo impreciso e vário, uma cena. Mas, pela vítima, antecipa-se: Leco só pode ser um menino. É o início pelo meio, como sugere Tchecov. Retire-se o princípio e o fim em um conto - que ele seja só desenvolvimento. Em "Meu último natal", o fluxo é contínuo. As frases gotejam pela voz de um narrador infantil que conta da sua preocupação em ser cúmplice deste possível assassinato do bom velhinho. "A polícia dos Estados Unidos vai nos pegar. [...] Eu acho que eu sou um terrorista." O cenário surge em pinceladas rápidas, sem estancar o fluxo narrativo. Por entre frases de ação, detalhes como a janela miúda por onde o Papai Noel terá de passar, a camisa do Flamengo - pedido de natal do menino-narrador -, a chuva forte a provocar o medo de uma invasão de lama no barraco, não deixam dúvida: tudo se passa em uma favela bem pobre.  No ritmo rápido que as frases curtas imprimem, misturam-se humor e crítica social sem discurso algum. Não há tempo. Nos três paragrafos que iniciam o conto, acima citados, se percebe também a inversão temporal na escrita do conto. Primeiro vem o efeito, depois a causa. Primeiro a decisão, depois as suas motivações. Este recurso promove ainda mais dinamismo ao texto. No final, o autor oferece uma chave para a compreensão do título. Nada de bandeja, mas sem hermetismo. Pela poesia, sobra ao leitor a oportunidade de ser um intérprete, de ser inteligente, sem precisar ser um intelectual. Vale a pena conferir o texto na íntegra.
O Coletivo Angu de Teatro apresenta o espetáculo RASIF – Mar que Arrebenta baseado em doze contos do autor pernambucano Marcelino Freire.
***
Outros exemplos de meninos e meninas narradores em Graciliano Ramos, Gunther Grass, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.  

21 de fevereiro de 2011

Tradução: traição?

Uma espécie de canção

Que a víbora espere sob
as ervas daninhas
e a escrita
se faça de palavras, lentas e rápidas,
prontas ao ataque, aguardando pacientemente,
em vigília.

_ e através da metáfora reconciliem
as pessoas e as pedras.
Compõe. (Ideias
só nas coisas) Inventa!
Saxífraga é a minha flor que fende
as rochas.

William Carlos Williams (trad. de José Agostinho Baptista) em Antologia Breve

***
A sort of song

Let the snake wait under
his weed
and the writing
be of words, slow and quick, sharp
to strike, quiet to wait,
sleepless.

_ through the metaphor to reconclie
the people and the stones.
Compose. (No ideas
but in thing) Invent!
Saxifrage is my flower that splits
the rocks.

***
Tradução. Como não trair, se para a palavra weed, temos "erva daninha"? E sendo tão mais longa esta nossa expressão, como manter, no poema em português, o pronome possessivo que a acompanha no original em inglês? Snake é "víbora" ou "cobra" simplesmente? E o que dizer do jogo sharp to strike, quiet to wait? Por que não traduzi-lo por "agudas para atacar" e "quietas para esperar"? Sleepless não poderia ser "insones"? E, na segunda estrofe, Compose. (No ideas but in things) Invent!, não seríamos mais fiéis ao poeta se a tradução fosse "Compõe. (Não idéias mas nas coisas) Inventa!"?

***
Ao procurar na internet se havia uma tradução brasileira para o poema, encontro em uma postagem do blog "mundo de K", a referência ao trecho "não há ideias senão nas coisas", e a capa de uma edição com tradução de José Paulo Paes. A conferir.

Em tempo: neste blog, há uma listagem de links preciosos.

18 de fevereiro de 2011

Laboratório Novas Histórias (Recado)

Cenário

          A cena e o cenário
Raimundo Carrero em O segredo da ficção
         Cena é ação de conflito, decisiva para a compreensão da história, representativa da movimentação dos personagens, mesmo quando muda. Silenciosa. Em geral, só há cena com a participação do personagem.
          Cenário é o local, a área ou o registro onde ocorre a cena, sem a participação ativa do personagem. O cenário sem personagem é, no máximo metafórico, registrando o olhar do personagem ou do narrador.
          As pessoas dizem sempre: "Essa foi a cena do crime". Não é verdade. "esse foi - ou é - o cenário do crime." Isso, sim. "Cena" pede personagem ativo. O teatro resolve esse problema com muita facilidade. Vejamos em O casamento suspeitoso, de Ariano Suassuna:

          Uma sala de casarão sertanejo. Portas para quartos e corredor. Uma grande mala ou um guarda-chuva. Estão em cena Cancão, Gaspar - que é gago - e o juiz Nunes.

          Com a maior clareza: o cenário é formado por "uma sala de casarão sertanejo. Portas para quartos e corredor. Uma grande mala ou um guarda-chuva". O autor adverte, logo em seguida, que estão em cena os personagens que vão promover a ação dentro do cenário - "Cancão - que é gago - e o juiz Nunes". A distinção é óbvia.
          Em geral, o cenário é fixo; a cena, dinâmica.

          O silêncio do cenário
          A seguir, um exemplo mais avançado de cenário. Observaremos que no cenário de Hemingway há referência a tropas, mas elas não estão em movimento. Apenas lembram os movimentos. Apenas. Não existe ação plena. Podemos dizer que há aí o cenário da guerra. E não a cena da guerra. Os personagens não interferem na história.

          As tropas de passagem pela estrada erguiam pó e o pó acamava-se sobre as folhas. Também o tronco das árvores vivia empoado. As folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha pela estrada sempre envolvidas numa nuvem de pó; e víamos as folhas caírem ao sopro do vento; e depois que os soldados passavam, a estrada estendia-se deserta e branca, só pintalgada das folhas secas.
          A planície abundava de plantações; muitos pomares, árvores frutíferas, e ao longe as montanhas pardas e descalvadas. A guerra nas montanhas as noites de clarões de artilharia. Clarões que lembravam os relâmpagos do verão, mas em contraste com o frio da noite e nenhum sinal de tempestade. (Adeus às armas)*

* Sem indicação de tradutor.
***
          O conto "Cenários", de Sergio Sant'Anna, que abre o livro O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, apresenta uma sucessão de descrições completamente diferentes entre si. O leitor, do momento em que começa a se sentir envolvido e parece já estar no ponto certo para ser flagrado pelo irromper de uma cena de dentro do cenário descrito pelo narrador (sempre em 3a pessoa), recebe um pequeno tapa do autor, que aparece abruptamente para concluir: "não, não é bem isso", exigindo a escrita de um novo início.

          Um fio d'água caindo de um esgoto sobre um córrego da Baixada cheio de bolhas pestilentas, onde um rato passeia sobre um cadáver algemado e degolado e cuja cabeça, com cabelos soltos, lisos e grossos, de índio amestiçado, pertencendo a um desses homens que perderam sua raça e não encontraram outra - e por isso, talvez, buscava a si próprio nos crimes - pende ela do corpo também apenas por um fio, boiando numa correnteza quase imperceptível e à espera de que, com o calor e o roer do rato, possa desprender-se do corpo e descer rolando, vagarosamente, este arremedo de rio, encalhando aqui, soltando-se novamente ali, como a última marca de um homem cuja falta nunca será sentida, devorado até a última migalha pelos vermes e, mais adiante, pelos peixes que resistiram a tanto lixo, mas que persiste, ainda, este homem, como se quisesse fazer valer até o fim sua presença, em desprender do crânio durante as noites de lua em fogo fátuo, diante do qual as pessoas se benzem e fogem espavoridas?
          Não, não é bem isso.
Capa de Paulo Cesar Pereira, edição da Ática, 1982.
***
Um cenário pode ter personagens que se movimentam, sem que isto signifique que alguma ação ou cena esteja em curso. Um rio também se movimenta mas pode simplesmente ser parte da paisagem. Um chafariz, o vento, uma pessoa fazendo ginástica, um menino andando no deserto podem ser parte do cenário, assim como alguém pode se tornar mais um móvel ou utensílio da casa. Toda ação deflagra uma mudança, o que dá ensejo ao encadeamento da narração.  A parada repentina do jorro de um chafariz, ou do sopro contínuo do vento,  a ocorrência de uma distensão em uma ginasta, o tropeço de um menino na deserto em uma raiz de um arbusto no meio de um deserto. Mas, parodiando Sant'Anna, talvez seja possível concluir: não, não é bem isso.

17 de fevereiro de 2011

O pequeno monstro (exemplo maravilhoso de personagem)

Clarice Lispector, em Fundo de gaveta
É o primeiro aluno da classe. Não brinca. (Seu segredo é um caracol.) O cabelo bem cortado, os olhos são delicados e atentos. Sua cortês carne de nove anos ainda é transparente. É de uma polidez inata: pega nas coisas sem quebrá-las. Empresta livros para os colegas, ensina a quem lhe pede, não se impacienta com a régua e o esquadro, não se comporta mal quando há tanto aluno desvairado.

Seu segredo é um caracol. Do qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol tratado com frio e torturante cuidado. Ele o cria numa caixa de sapatos com cuidado. Com gentileza, diariamente finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado, adia-lhe atentamente a morte. Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão.

"Deus está nos detalhes"

Grandes escritores constroem suas ficções esmeradamente com detalhes pequenos mas significativos que, pincelada por pincelada, pintam as imagens que procuram retratar, as realidades estranhas ou familiares de que esperam nos convencer[...].

Muitas vezes, um detalhe bem escondido pode nos dizer mais sobre um personagem - seu status social e econômico, suas esperanças e sonhos, sua visão de si mesmo - que uma longa passagem explanatória.
Francine Prose
***
Um bom exercício seria procurar o(s) detalhe(s) que diferencia(m) e personalizam cada um destes rapazes:
Foto: Antonio Pinheiro

Mais tipos de Canetti

O Voa-voa 
Elias Canetti
          Em outros tempos, o Voa-voa teria chegado com o vento, mas agora há veículos mais rápidos. Mal aterrisou em Bangkok, já estuda o horário dos aviões para o Rio e faz logo uma reservatio mentalis para Roma. O Voa-voa vive no turbilhão das cidades. Em toda a parte existe algo que possa ser comprado, algo a ser aprendido.
          Ele gosta de viver nos nossos dias; pois como se passava aquilo outrora? Aonde se podia ir? Quão molestas e perigosas não eram as viagens! Atualmente decorrem, sem que se exija o menor esforço. Basta mencionar alguma cidade, para já ter estado lá. Talvez até se renove a visita. Tudo é possível, sempre que o permita o lufa-lufa. Os outros pensam que ele já esteve em todos os lugares do mundo, mas o Voa-voa tem informações melhores. Novos aeroportos estão sendo construídos; novas companhias iniciam suas atividades. Pode ser que anciãos caducos ainda sonhem com serenas viagens marítimas. A estes, almeja boa sorte nas preguiçosas do convés, mas aquilo não lhe serve, visto que sempre tem pressa.
          O Voa-voa tem seu próprio idioma, que consiste em nomes de cidades, unidades monetárias. Quitutes exóticos, vestimentas de terras estranhas, hotéis, praias, templos e boates. Também sabe onde em determinado momento se trava uma guerra, que o possa incomodar. Acontece, no entanto, freqüentemente, que haja nas proximidades um movimento extraordinário, e se a coisa não for excessivamente perigosa, o Voa-voa gosta de acrescentar seu próprio frenesi, encaminhando-se para lá por dois ou três dias, para em seguida, deslocar-se em outra direção, buscando o contrastes de regiões inteiramente pacíficas.
          O Voa-voa não tem preconceitos. Acha que os homens são iguais em toda parte, pois sempre querem comprar algo. Que se trate de roupas ou antigüidades, todos se aglomeram nas lojas. Em qualquer lugar há dinheiro, embora as moedas sejam diferentes; troca-se em toda a parte. Que se lhe mostre um sítio do mundo, onde faltem manicuras e favelas. Se a demora não for demasiada, nada humano lhe fica alheio. Ele demonstra compreensão e interesse por tudo. Um Voa-voa ao qual permitam que aja à sua vontade, não guarda rancor a ninguém. Seria bom para o mundo, se todos fossem como ele. Um dia serão, mas melhor é viver, enquanto não forem, já que a azáfama geral certamente não causará nenhum pesar. Assim sendo, o Voa-voa dá um ligeiro suspiro, não pensa mais nisso e salta no primeiro avião que se ofereça.

***

A Prima-lunar
          Através de um sonho, a Prima-lunar ficou sabendo que tem parentes na lua. Sempre suspeitara disso, pois jamais esteve em outros países, sem topar neles com pessoas que não lhe parecessem conhecidas ou familiares. Não eram amigas. Nunca as vira em outra ocasião. Tampouco entendia seu idioma. Mas havia algo no aspecto desses vultos: a inclinação da cabeça, a redondez das unhas, a posição expectante dos pés. Sentia-se uma atração recíproca, já antes que tais particularidades se tornassem perceptíveis. Na movimentada praça principal de uma cidade exótica, subitamente a gente defrontava com um homem diferente de todos os demais. Ele se acercava com tamanha segurança que dava a impressão de terem se separado apenas na véspera. Seu olhar fixava-se em nós de modo inconfundível, demonstrando que nós, em meio a toda a multidão, também havíamos chamado sua atenção. Na verdade, erros podem ocorrer às vezes. Não é, no entanto, provável que duas criaturas totalmente estranhas, que nunca se avistaram, possam incorrer ao mesmo tempo no mesmíssimo erro. Ademais, em seguida constatar-se-á com toda facilidade que não houve nenhuma intenção calculista, pois se o inopinadamente aparecido não quer nada especial e tão-somente cede a seu mero assombro, se então verificamos que ele se ente exatamente o mesmo que nós, deve haver algum significado no incidente.
          A Prima-lunar não larga nenhum desses inopinadamente avistados, sejam homens ou mulheres. Prefere essas últimas porque com elas é mais fácil evitar quiprocós suscetíveis de provocar decepções. Após algumas tentativas iniciais, descobre-se uma terceira língua que sirva para entendermo-nos. Sentamo-nos juntos, permutamos nossas origens, e logo encolhem as presumidas distâncias. Houve muitas migrações neste mundo, e por inúmeros motivos, seres humanos abandonaram suas terras. Como se sabe hoje em dia, o globo é pequeno, e as distâncias têm pouca importância. Logo se chega a um nome que signifique algo para os dois, e com um mínimo de paciência, além de muita delicadeza, comprova-se, então, por incrível que pareça, que ambos fazem parte da mesma família e até mesmo já tenham conjeturado a sua mútua existência. Quem tiver predisposição para isso e guardar abertos os olhos e a memória, não terá necessidade de conquistar amigos, já que achará parentes em toda parte.
          “Mantenho um registro”, afirma a Prima-lunar, “e esta é a única razão por que viajo. Ainda não visitei nenhum país sem descobrir parentes. O mundo não pode ser tão mau como dizem. Por que não andam todas à procura de seus familiares? Ao invés de fazerem viagens ao estrangeiro, para serem estranhos ali, deveriam viajar no intuito de sentir-se em casa”.
          Ela demonstrou a verdade de suas suspeitas, e por isso, sentir-se-á à vontade onde quer que se encontre. Pois a primeira coisa que faz após a chegada a qualquer lugar é estabelecer uma família. Até nos menores países, orienta-se com facilidade, e se neles existissem apenas dez pessoas, uma delas seria, com absoluta certeza, sua parenta.
          Quando se preparava a primeira expedição à lua, cuidou em enviar junto uma mensagem à sua prima. Conseguiu convencer um dos astronautas da importância de aproveitar tal contato, e ele prometeu-lhe depositar antes de mais nada a carta na lua. Ainda não se sabe seguramente se a prima a recebeu. Mas tudo é possível, e quando se confirmar que seu pressentimento mais uma vez não a enganou, o apelido de “Prima-lunar”, que por enquanto lhe aplicam zombeteiramente, transformar-se-á em título honorífico.


15 de fevereiro de 2011

A inventada


Mulher-livro, de Salvador Dali (cf. leitoras.sos)




Elias Canetti
          A Inventada não viveu nunca, mas existe e se faz notar. É muito bela, porém de modo diferente para cada espectador. Dela já se deram descrições estáticas. Alguns encomiam os cabelos, outros, os olhos. Mas há divergências quanto à cor, que vai desde um brilhante azul-dourado até o mais intenso preto, e o mesmo se pode dizer dos cabelos.
          A Inventada varia com relação à estatura e tem qualquer peso. Promissores são seus dentes, que de vez em quando põe a descoberto. Os seios ora intumescem ora encolhem. Ou caminha cerimoniosamente, ou permanece deitada. Está nua ou fabulosamente vestida. Somente a respeito de seus calçados foram recolhidas centenas de informações.
          A Inventada é inatingível, a Inventada comunica-se com facilidade. Promete mais do que cumpre mais do que prometeu. Revoluteia, detém-se. Não fala; o que diz é imprescindível. É exigente; apega-se a qualquer um. É pesada como a terra e leve como um sopro.
          Continua duvidoso se a Inventada tem ou não consciência de sua importância. Até neste ponto discordam violentamente os seus adoradores. Como consegue fazer com que todos saibam que é ela? Claro que isso não cria nenhuma dificuldade à Inventada; mas teria sido sempre assim, desde o começo? E quem a inventou, até torná-la inolvidável? Quem divulgou-a através de toda a terra habitada? Quem diviniza e quem vende a preço vil? Quem dispersou-a pelos ermos da lua, ainda antes de içarem uma bandeira em seu solo? E quem envolveu um planeta em densas nuvens, por ter este recebido o nome dela?
          A Inventada abre os olhos e nunca mais os fecha. Nas guerras, pertencem-lhe moribundos de ambos os campos. Em tempos remotos, estalaram guerras por ela. Hoje em dia, tal não acontece. Agora visita os homens na frente de batalha, e sorridente, entrega-lhes o seu retrato.
Do livro Todo-ouvidos – cinqüenta caracteres. Trad. Herbert Caro.

14 de fevereiro de 2011

Maravilhoso exemplo de metáfora

Retrato de uma sombra
Paul Celan (trad. João Barrento, em "A morte é uma flor - poemas do espólio")
Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de arma da madrugada;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

                   ***

9 de fevereiro de 2011

Rabiscos obscuros no papel branco

 Bia Albernaz
Liniers. Macanudo
        Nem toda escrita necessariamente inscreve-se num gênero. Num grau para além do diário, muitas vezes a escrita oferece àquele que escreve a oportunidade de, ao dizer de si, por força da intensidade das palavras escritas, deixar de dizer de si. Assim, se é comum que se comece a escrever, pelo rascunhar de sentimentos íntimos, desabafos que cumprem a função de esvaziar o excesso de subjetividade, em um dado momento, aquele que escreve não mais prioriza sua atenção ao escoamento de seus desejos, interesses e lembranças, passando a prestar-se à canalização de uma existência invisível anterior e maior do que a sua individualidade. Desviando a atenção da sua veia a pulsar, o sujeito percebe que palavras têm pulsação própria, afirmam-se, e – ao dedicar-se ao desenvolvimento dessa vitalidade na linguagem – fortalece a sua escrita, pelo modo como diz as coisas e como assim a elas assegura uma existência.
          Pela escrita sem gênero, roçamos a poesia das coisas e abrimo-nos ao encantamento literário, mas a literatura achega-se ainda de modo incidental. Nesse processo de “letrafirmação”, profundamente amador, tal qual um primeiro namorado, o escritor não consegue responder à celebre questão proposta por Rilke ao aspirante a poeta acerca da sua real e imprescindível necessidade de escrever, como condição essencial de entrega à atividade da poesia [1]. Porém, apesar da falta de consciência do percurso, esse sujeito amador da escrita tem já a coragem de ficar diante de uma folha de papel em branco ou de uma tela de computador vazia e, se for preciso, sem fazer nada, até que a palavra chegue, arriscando-se a ser taxado como vagabundo, preguiçoso ou presunçoso (por que, afinal, esse sujeito não faz algo de realmente útil?).
          É difícil mesmo escrever algo que valha a pena, mas para isso o sujeito precisa se pôr a pensar-junto à escrita, estando próximo às coisas para afirmá-las corajosamente pela palavras certas, o que implica em levantar tampas de baú, abrir portas, atravessar a rua, sentar-se numa praça nunca dantes visitada, conversar com desconhecidos com a sinceridade de quem, ao conhecer seus pontos de vista, “dá corpo ao suceder”, como diz Guimarães Rosa [2]. Paradoxalmente, a literatura afasta-se das misérias, aproximando-se da comoção por elas provocada. O negativo inspira a alquimia.
           Diante da necessidade de embrenhar-se na obscuridade, o escritor tem nos livros grandes amigos. A ficção cria o distanciamento para quem busca a proximidade; e faz dos autores, personagens, de modo a produzirem valentia. E, se necessário, a criarem lendas a respeito de suas infâncias, de suas fraquezas, tornando-se clowns, a fim de saltarem da não-verdade como dissimulação para a mentira como acordo ou exagero, como parte da ritualização da escrita, em reverência à verdade dos nossos mitos.
          Tomemos como premissa que, mesmo a escrita mais íntima, mesmo aquela que se circunscreve à letrafirmação, busca a intensificação do trânsito do não-ser para o ser. Se não se tem a coragem de errar, de “crer nos impossíveis” de imaginar, de rasgar compromissos e modelos, não se escreve, porque a escrita começa num suporte invisível. Antes do papel, o sonho. A escrita delineia indefinições. Sem suprimi-las, amarra-as momentaneamente, para algum leitor de novo desatá-las.
Notas
1. Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Trad. Paulo Ronai. Rio de Janeiro: Globo, 1986.
2. Rosa, Guimarães. Grande sertão e veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.134.

Liniers, Macanudo

6 de fevereiro de 2011

Reflexões sobre poesia e ética - 1

Konstantinos Kaváfis (1863-1933)
          Nunca vivi no campo. Tampouco lá passei, como outras pessoas, breves temporadas. Entretanto escrevi um poema no qual celebro o campo e digo que a ele se devem meus versos. Esse poema de pouco valor não é a coisa mais insincera que já se escreveu: é pura mentira.
          Ocorre-me porém agora: trata-se verdadeiramente de insinceridade? Não mente sempre a arte? E não é quando mente mais que ela se revela mais criativa? Aqueles versos meus não eram um efeito da arte? (que não fossem bem logrados talvez não se devesse à falta de sinceridade; malogra-se muitas vezes sob o império de um emoção sincera). No momento em que os escrevia não estava eu imbuído de sinceridade artística? Não imaginei então como se tivesse de fato vivido no campo?
(trad. José Paulo Paes)

***
Ítaca
Se partires um dia rumo a Ítaca
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for tem pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quanto houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.
Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.

Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
(trad. José Paulo Paes)
***
Ítaca
Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.
(trad. de Jorge de Sena)

Fac-símile do poema "Itaca". (cf. http://www.ezgeta.com/itaka.html)

4 de fevereiro de 2011

Livro pra escrever (a colagem como ética)

Poema visual de Joan Brossa
          O foco na poética e nas possibilidades artísticas e filosóficas do ordinário, do cotidiano, ou seja, na extensão do conceito de leitura para a cidade e para o mundo, apreendendo nas ruas uma sintaxe e uma semântica, aproxima da colagem o conceito de transculturação. Incrementada atualmente pela tecnologia, a colagem de textos pode se valer também da noção de hipertexto como um de seus desdobramentos.
          Em termos imediatos, pensando em propostas de trabalho que exercitem a capacidade de “colar” a escrita à leitura, sugerimos a reunião de textos de gêneros diferentes e de contextos culturais diversos; a roteirização de um texto durante a sua leitura; a reescritura de titulares e subtítulos com tipologias diferentes ou com símbolos gráficos. Qualquer processo de recorte e colagem implica na descoberta de um modo de construção, através do qual se reconhece a diversidade como fundamento do exercício da ética da liberdade e da solidariedade entre textos diversos em torno de um interesse comum.
          Se o leitor compreende que, ao ler, recebe algo de alguém, e se, ao receber, decide fazer alguma coisa, procurará um caminho que materialize essa troca de saberes. A escrita é uma ação. Nesse sentido, relaciona-se com a ética. Diz Ari Paulo Jantsch que a escrita é uma tomada de posição. Suas colocações, apesar de voltadas apenas para a dissertação como um tipo de escrita “em situação”, pontuam a necessidade de sublinhar o dialogismo implícito na escrita de textos científicos, pois esses se realizam justamente para que outros se pronunciem. Também segundo Jantsch, é importante que o leitor se dê conta de que o sentido de um texto só acontece em referência ao real. Na impossibilidade de um texto dar conta da multiplicidade desse todo, reside o papel fundamental – e produtivo – do leitor. Ou seja: dar sentido a um texto é reescrevê-lo na linha do horizonte em que o próprio leitor encontra-se inscrito. Horizonte que também se alarga na medida em que antepara a leitura. [1]
 Conversa com o Inspetor de Finanças sobre a Poesia,
de Maiakovski (
Capa de Rodchenko)
          Pela escrita, pode-se olhar novamente esse horizonte, guardar as coisas em nossa memória e, principalmente, relacionar-se diferentemente com a linguagem. O propósito da escrita é expandir os limites de nosso pensamento. Para Virgínia Wolf, apenas quando tentamos escrever, conseguimos saber como ler.[2] Ao escrever, apreendemos melhor o processo de exploração, a descoberta de si e do mundo apresentado pelos diferentes autores em suas obras. Certamente, ao escrever, aprendemos sobre nós próprios, mas o mais interessante é que, na medida em que essa aprendizagem se aprofunda, mais superamos a nossa visão particular, individualista em relação ao mundo, e menos nos importa a leitura e a escrita como meios para conquistar algo, seja uma maior erudição, seja um emprego ou até um bom resultado numa prova. Se a “linguagem é a casa do ser”, como dizia Heidegger, [3] leitura e escrita não podem ser apenas meios pelos quais nos comuniquemos melhor, mas deve servir também para – ao retomar o espírito de poesia na linguagem – “sermos” melhor.
Espaço de Leitura na Cidade de Deus, organizado pelo comitê Funjec com livros arrecadados na campanha Natal Sem Fome dos Sonhos
Notas
1. Cf. Jantsch, Ari Paulo. “Concepção dialética de escrita-leitura: um ensaio. In: Bianchetti (org.). Trama e texto – leitura escrita criativa, São Paulo: Summus, 2002.
2. “Como se deve ler um livro”. In: Woolf, Virginia. O leitor comum. Seleção, tradução e notas de Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007.
3. Heidegger, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
Imagens
http://escritosdogabriel.blogspot.com/2010/04/dois-poemas-visuais-de-joan-brossa.html
http://mol-tagge.blogspot.com/2010/05/fotomontagem-fotografia-rodchenko.html
http://blogemacao.com/2010/12/espaco-de-leitura-na-cidade-de-deus.html

Bia Albernaz