4 de fevereiro de 2011

Livro pra escrever (a colagem como ética)

Poema visual de Joan Brossa
          O foco na poética e nas possibilidades artísticas e filosóficas do ordinário, do cotidiano, ou seja, na extensão do conceito de leitura para a cidade e para o mundo, apreendendo nas ruas uma sintaxe e uma semântica, aproxima da colagem o conceito de transculturação. Incrementada atualmente pela tecnologia, a colagem de textos pode se valer também da noção de hipertexto como um de seus desdobramentos.
          Em termos imediatos, pensando em propostas de trabalho que exercitem a capacidade de “colar” a escrita à leitura, sugerimos a reunião de textos de gêneros diferentes e de contextos culturais diversos; a roteirização de um texto durante a sua leitura; a reescritura de titulares e subtítulos com tipologias diferentes ou com símbolos gráficos. Qualquer processo de recorte e colagem implica na descoberta de um modo de construção, através do qual se reconhece a diversidade como fundamento do exercício da ética da liberdade e da solidariedade entre textos diversos em torno de um interesse comum.
          Se o leitor compreende que, ao ler, recebe algo de alguém, e se, ao receber, decide fazer alguma coisa, procurará um caminho que materialize essa troca de saberes. A escrita é uma ação. Nesse sentido, relaciona-se com a ética. Diz Ari Paulo Jantsch que a escrita é uma tomada de posição. Suas colocações, apesar de voltadas apenas para a dissertação como um tipo de escrita “em situação”, pontuam a necessidade de sublinhar o dialogismo implícito na escrita de textos científicos, pois esses se realizam justamente para que outros se pronunciem. Também segundo Jantsch, é importante que o leitor se dê conta de que o sentido de um texto só acontece em referência ao real. Na impossibilidade de um texto dar conta da multiplicidade desse todo, reside o papel fundamental – e produtivo – do leitor. Ou seja: dar sentido a um texto é reescrevê-lo na linha do horizonte em que o próprio leitor encontra-se inscrito. Horizonte que também se alarga na medida em que antepara a leitura. [1]
 Conversa com o Inspetor de Finanças sobre a Poesia,
de Maiakovski (
Capa de Rodchenko)
          Pela escrita, pode-se olhar novamente esse horizonte, guardar as coisas em nossa memória e, principalmente, relacionar-se diferentemente com a linguagem. O propósito da escrita é expandir os limites de nosso pensamento. Para Virgínia Wolf, apenas quando tentamos escrever, conseguimos saber como ler.[2] Ao escrever, apreendemos melhor o processo de exploração, a descoberta de si e do mundo apresentado pelos diferentes autores em suas obras. Certamente, ao escrever, aprendemos sobre nós próprios, mas o mais interessante é que, na medida em que essa aprendizagem se aprofunda, mais superamos a nossa visão particular, individualista em relação ao mundo, e menos nos importa a leitura e a escrita como meios para conquistar algo, seja uma maior erudição, seja um emprego ou até um bom resultado numa prova. Se a “linguagem é a casa do ser”, como dizia Heidegger, [3] leitura e escrita não podem ser apenas meios pelos quais nos comuniquemos melhor, mas deve servir também para – ao retomar o espírito de poesia na linguagem – “sermos” melhor.
Espaço de Leitura na Cidade de Deus, organizado pelo comitê Funjec com livros arrecadados na campanha Natal Sem Fome dos Sonhos
Notas
1. Cf. Jantsch, Ari Paulo. “Concepção dialética de escrita-leitura: um ensaio. In: Bianchetti (org.). Trama e texto – leitura escrita criativa, São Paulo: Summus, 2002.
2. “Como se deve ler um livro”. In: Woolf, Virginia. O leitor comum. Seleção, tradução e notas de Luciana Viégas. Rio de Janeiro: Graphia, 2007.
3. Heidegger, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
Imagens
http://escritosdogabriel.blogspot.com/2010/04/dois-poemas-visuais-de-joan-brossa.html
http://mol-tagge.blogspot.com/2010/05/fotomontagem-fotografia-rodchenko.html
http://blogemacao.com/2010/12/espaco-de-leitura-na-cidade-de-deus.html

Bia Albernaz

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