13 de outubro de 2015

A madrugada de Gretta


O movimento brusco de Gabriel, lançando o braço pesado sobre o peito de Gretta, fez com que a moça acordasse no meio da noite. Abriu os olhos, empurrou devagar o corpo do marido para mais longe e suspirou aliviada. Como escutava o vento estridente e as cortinas voavam alto, saiu de mansinho da cama quente para verificar as trancas das janelas. Conseguiu vedar as frestas maiores com toalhas e por algum tempo, ficou recostada no vidro, distraída vendo a chuva ensopar o jardim do hotel. Aos poucos, os acontecimentos ocorridos na véspera fluíam desordenados em sua cabeça.
              A lembrança da festa na noite anterior deixou Gretta melancólica, mas sua conversa com Gabriel, antes de dormir, poderia ter um bom final para ela. Quantas vezes participou da comemoração do dia de Reis na casa das tias? pensou. Desde a primeira, detestou o tradicional evento e apesar disto, como esposa do sobrinho favorito, sempre procurou agradar e demonstrar prazer por estar ali. Para suportar a família do marido e os amigos convidados, para suportar a mediocridade e a mesmice, a moça descobriu que precisava estar um pouco entorpecida. Assim, com a ajuda da bebida, desde que chegou na festa, conversou e dançou sem mostrar tédio, jantou, elogiou os repetidos pratos de comida, e bravamente, com um sorriso nos lábios, escutou até o fim o patético discurso de Gabriel.
              Gretta suspirou alto lembrando da única surpresa da noite. Quando os últimos convidados se despediam, inesperadamente uma música passou a ser cantada. Ela tremeu. Era uma música da região onde havia nascido e pouco conhecida ali. Marcou sua juventude e fez com que ela voltasse ao passado, às boas recordações com a sua avó e com amigos. Lembrou de Michael, amor adolescente, olhos expressivos que cantava tão bem a mesma música. Tentando conter as lágrimas que corriam em seu rosto, recordou da morte prematura do rapaz. Tarde como era, já tendo bebido demais, não controlou a emoção que transbordava. Naquela hora, não se deu conta que Gabriel de longe a observava. 
              Gretta reviu mais uma vez a conversa que teve com o marido quando chegaram ao hotel e decidiu esperar sentada que ele acordasse. Ele tinha ficado impressionado com a resposta da mulher sobre o motivo de seu estado transtornado quando escutou a música no final da festa. Mas mal deixou Gretta terminar de contar suas histórias do passado. Fixou-se em Michael e em sua morte. Perturbado, disse que ela tinha guardado um segredo grave. Uma paixão interrompida pela morte, mas viva em seu coração! Gretta ficou admirada com o drama engendrado por Gabriel e, naquele momento, viu uma saída para ela. Resolveu não esclarecer nada, não falar de sua saudade de Galway, da nostalgia que sentiu e nem mencionou que havia bebido demais. Certamente lembrou-se de Michael, mas somente como mais um personagem querido de anos atrás. De coadjuvante, porém, o jovem virou protagonista da história de amor criada por Gabriel.
              Providencial o que aconteceu, pensou Gretta. Há tempos, tentava falar que não era feliz no casamento, que preferia viver sozinha. Quando iniciava a conversa, Gabriel desviava para outro assunto porque não concebia a ideia de que uma mulher escolhesse deixar a segurança oferecida por um marido para ficar por sua conta. Gretta queria aproveitar os sentimentos que afloraram no marido enquanto conversaram na noite anterior para falar da separação. Ele estava abalado com a paixão que criou para Gretta e desolado por não ter ele mesmo experimentado um amor com tamanha intensidade. Que ele pensasse o que quisesse! Gostava de Gabriel e desejava que ele conseguisse se libertar de tantas regras e amarras sociais, mas o que  ela queria mesmo era se afastar daquele homem tão cheio de certezas e verdades.
              Amanhecia e a chuva não parava de cair. Com meio sorriso, Gretta pensou que o dia cinza seria o cenário ideal para a conversa.
Maria Tereza

6 de outubro de 2015

Notas sobre "Dublinenses", sobre Joyce, sobre "Os mortos"

Fusão realismo e simbolismo
    A técnica realista opera por amostragem, isto é, das ações dos personagens, vislumbra-se um certo tipo de ser em sociedade. De situações particulares, lançam-se luzes sobre a divisão social, o sistema político, o regime religioso etc.
     Mas a realidade não é oral. É visual, olfativa, tátil. Nem mesmo todos os sons são passíveis de tradução. Memórias, imagens, paixões não são palavras. Não se transcreve diretamente a realidade.
    No simbolismo, parte desse princípio: um escritor não transcreve; sugere. Usa metáforas, não para declarar, mas para sugerir. Palavras são símbolos compartilhados. Só assim aproxima-se drama e epifania.
    Joyce busca a contemporaneidade dos mitos, indicados por dramas vividos talvez como leis imutáveis, mas sob forma e aparência variáveis. Por isso então um drama não se presta à pregação de moral ou à compreensão da beleza, sempre arbitrárias, mas à verdade, no domínio do mais comprovável e real. Nas palavras do autor: “O drama surge espontaneamente da vida e é coevo dela. Cada raça criou seus próprios mitos e é nesses que o drama, por vezes encontra a sua expressão."
     Significa dizer que o interesse provocado por um drama, um grande conflito, não depende dessa ou daquela ação, nem mesmo de incidentes ou de agentes conflitantes. Drama e vida existem em um mesmo tempo. O drama em toda a sua nudez mostra-se como caminho para a percepção de uma grande verdade, o aparecimento de uma grande questão. Por isso, a glorificação da vida comum: o homem mais comum, o mais morto dentre os vivos, desempenha um papel em um grande drama.
Fonte: https://armonte.wordpress.com/tag/james-joyce/
Ibsen
    Discípulo de Ibsen, Joyce tampouco aspira ideais elevados e denuncia hipocrisias da igreja, o dogmatismo dos partidos políticos, o caráter repressivo do casamento, o status inferior da mulher na sociedade. Tradutor de Ibsen em "Quando despertamos de entre os mortos", Joyce destacou o teatro como exemplo de economia. Curioso é o fato de ter sido pela descoberta da invasão de povos nórdicos na Irlanda que Joyce se enxergou mais em seu país, de forte tradição celta.
    Ainda sobre Ibsen, Virgínia Woolf [contemporânea de Joyce] escreveu:
Um quarto é para ele um quarto;
uma escrivaninha, uma escrivaninha;
e um cesto de lixo, um cesto de lixo.
Ao mesmo tempo,
a parafernália da realidade
tem por vezes de se tornar o véu
através do qual vemos o infinito.
Fonte: http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=content&task=view&id=280
     Nietzsche
    A religião da arte e não a moralidade é a última atividade metafísica no niilismo europeu. O artista como super-homem é um ser alteroso, seu isolamento é glacial em sua abominação das massas; abdica a expressão individual em favor da universal. Pela arte procura superar a subjetividade num encontro com o dionisíaco, quando o  eu-lírico soa do abismo do ser.
    Tal como sugere Nietzsche em "O nascimento da tragédia": é preciso ver a ciência com a ótica do artista mas a arte com a da vida. Isto é "filosofar com o martelo".

Foto: BiaA.
Em "Os mortos", o leitmotiv é a música.
    Na aproximação com a morte, mortos equiparam-se a vivos, quando acontece a aparição de um morto mais vivo do que os vivos. Pela música desperta a epifania, o ressurgimento da nostalgia, da felicidade e da paixão. O drama é a paralisia, a impossibilidade de se mover. Gabriel é uma sombra de si mesmo. Em uma festa, ele se encontra com três mulheres marcantes: Lily, Miss Ivors e Gretta.
    Em seu discurso anual, ele quer se vingar do tempo, e destaca a separação nítida entre as gerações, entre os vivos e os mortos. A imagem da neve que não para de cair sobre todos, sobre todo país mostra uma paisagem paralisada, de vidas congeladas, quando mesmo uma festa torna-se rotina.
    A prisão da rotina. O desejo de escapar, a interseção morte e vida: são temas em “os mortos”; a paralisia, a epifania, a traição, a religião: os motivos; janelas, noite e comida: símbolos. Tédio, paralisia. Mas a neve não pode continuar a cobrir tudo para sempre.  O final fica em aberto: entrevê-se um abraçar a vida, morosamente aceitá-la.
    As cores que predominam são a amarela e a marrom. A ação é interior, em interiores, em fluxo da consciência. O narrador vê a cena com o foco de Gabriel. Descreve a mesa em linguagem militar, com imagens de um campo de batalha, como uma natureza morta.
    Diz-se que a história serve como um balanço para o primeiro conto: “As irmãs”.
The lass of Aughrim
Gabriel, “o inglês”
    Disse ele, em um diálogo enraivecido com Miss Ivors: “o irlandês não é meu idioma.” E o poeta que Gabriel gostaria de citar em seu discurso é Browning, um inglês, talvez refinado demais para aquele público, um pouco grosseiro. Gabriel usa galochas. Estudou na Anglican Trinity College. Em seu trajeto, destaca a estátua de Wellington, herói britânico que deixou a Irlanda, apesar de ter nascido ali. Por fim, lembra da estátua de William III, do seu avô em torno dela. O monge trapista, católico, aparece como um zumbi. A descrição de Freddy Malin pontua todo conto. Ele é o contraponto de Gabriel. Um bêbado desequilibrado, profundamente irlandês. O anjo Gabriel e o demônio Freddy se alternam.
    Na penúltima cena, do corrimão da escada, sob a música ao fundo, uma canção da Irlanda profunda se passa cinematograficamente. A visão de um guarda-chuva, de um crispar de mão, de objetos sucedem-se em saltos, como cortes de um filme que passa de um ângulo a outro, de uma perspectiva a outra, sem conexão aparente, a não ser pelo fato de estarem todos aquelas possibilidades ali, ao mesmo tempo.
    Fica a sugestão: procurar ler o conto de Joyce Carol Oates, “The dead”, de  1973.
O conto "The dead" de Joyce Carol Oates foi publicado em Marriages and infidelities.
Modernista
    Moderno é saber que o mundo não tem sentido e a existência não tem propósito. Moderno é deixar-se infectar pela linguagem do outro. Lembrem-se que desde a primeira frase do conto, para descrever a criada Lily o autor escolhe o advérbio “literalmente”. Significa dizer falar como ela, pensar como ela, do mesmo modo que posteriormente o autor infecta-se de Gabriel, personagem de classe média. Quando se escreve sobre um personagem, é ele quem dita as palavras, as expressões a serem usadas.
    Moderno é usar o método poundiano do detalhe luminoso, do punti luminosi. Pela arte da ficção, apresentar emoções, não provocá-las.