O
movimento brusco de Gabriel, lançando o braço pesado sobre o peito de Gretta,
fez com que a moça acordasse no meio da noite. Abriu os olhos, empurrou devagar
o corpo do marido para mais longe e suspirou aliviada. Como escutava o vento estridente
e as cortinas voavam alto, saiu de mansinho da cama quente para verificar as
trancas das janelas. Conseguiu vedar as frestas maiores com toalhas e por algum
tempo, ficou recostada no vidro, distraída vendo a chuva ensopar o jardim do
hotel. Aos poucos, os acontecimentos ocorridos na véspera fluíam desordenados em
sua cabeça.
A lembrança da festa na noite
anterior deixou Gretta melancólica, mas sua conversa com Gabriel, antes de
dormir, poderia ter um bom final para ela. Quantas vezes participou da
comemoração do dia de Reis na casa das tias? pensou. Desde a primeira, detestou
o tradicional evento e apesar disto, como esposa do sobrinho favorito, sempre
procurou agradar e demonstrar prazer por estar ali. Para suportar a família do
marido e os amigos convidados, para suportar a mediocridade e a mesmice, a moça
descobriu que precisava estar um pouco entorpecida. Assim, com a ajuda da
bebida, desde que chegou na festa, conversou e dançou sem mostrar tédio, jantou,
elogiou os repetidos pratos de comida, e bravamente, com um sorriso nos lábios,
escutou até o fim o patético discurso de Gabriel.
Gretta suspirou alto lembrando da única
surpresa da noite. Quando os últimos convidados se despediam, inesperadamente
uma música passou a ser cantada. Ela tremeu. Era uma música da região onde havia
nascido e pouco conhecida ali. Marcou sua juventude e fez com que ela voltasse ao
passado, às boas recordações com a sua avó e com amigos. Lembrou de Michael, amor
adolescente, olhos expressivos que cantava tão bem a mesma música. Tentando
conter as lágrimas que corriam em seu rosto, recordou da morte prematura do rapaz.
Tarde como era, já tendo bebido demais, não controlou a emoção que
transbordava. Naquela hora, não se deu conta que Gabriel de longe a
observava.
Gretta reviu mais uma vez a
conversa que teve com o marido quando chegaram ao hotel e decidiu esperar
sentada que ele acordasse. Ele tinha ficado impressionado com a resposta da
mulher sobre o motivo de seu estado transtornado quando escutou a música no
final da festa. Mas mal deixou Gretta terminar de contar suas histórias do
passado. Fixou-se em Michael e em sua morte. Perturbado, disse que ela tinha guardado
um segredo grave. Uma paixão interrompida pela morte, mas viva em seu coração! Gretta
ficou admirada com o drama engendrado por Gabriel e, naquele momento, viu uma saída
para ela. Resolveu não esclarecer nada, não falar de sua saudade de Galway, da nostalgia
que sentiu e nem mencionou que havia bebido demais. Certamente lembrou-se de
Michael, mas somente como mais um personagem querido de anos atrás. De coadjuvante,
porém, o jovem virou protagonista da história de amor criada por Gabriel.
Providencial o que aconteceu, pensou
Gretta. Há tempos, tentava falar que não era feliz no casamento, que preferia
viver sozinha. Quando iniciava a conversa, Gabriel desviava para outro assunto porque
não concebia a ideia de que uma mulher escolhesse deixar a segurança oferecida
por um marido para ficar por sua conta. Gretta queria aproveitar os sentimentos
que afloraram no marido enquanto conversaram na noite anterior para falar da
separação. Ele estava abalado com a paixão que criou para Gretta e desolado por
não ter ele mesmo experimentado um amor com tamanha intensidade. Que ele
pensasse o que quisesse! Gostava de Gabriel e desejava que ele conseguisse se
libertar de tantas regras e amarras sociais, mas o que ela queria mesmo era se afastar daquele homem
tão cheio de certezas e verdades.
Amanhecia e a chuva não parava de
cair. Com meio sorriso, Gretta pensou que o dia cinza seria o cenário ideal
para a conversa.
Maria Tereza
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