6 de outubro de 2015

Notas sobre "Dublinenses", sobre Joyce, sobre "Os mortos"

Fusão realismo e simbolismo
    A técnica realista opera por amostragem, isto é, das ações dos personagens, vislumbra-se um certo tipo de ser em sociedade. De situações particulares, lançam-se luzes sobre a divisão social, o sistema político, o regime religioso etc.
     Mas a realidade não é oral. É visual, olfativa, tátil. Nem mesmo todos os sons são passíveis de tradução. Memórias, imagens, paixões não são palavras. Não se transcreve diretamente a realidade.
    No simbolismo, parte desse princípio: um escritor não transcreve; sugere. Usa metáforas, não para declarar, mas para sugerir. Palavras são símbolos compartilhados. Só assim aproxima-se drama e epifania.
    Joyce busca a contemporaneidade dos mitos, indicados por dramas vividos talvez como leis imutáveis, mas sob forma e aparência variáveis. Por isso então um drama não se presta à pregação de moral ou à compreensão da beleza, sempre arbitrárias, mas à verdade, no domínio do mais comprovável e real. Nas palavras do autor: “O drama surge espontaneamente da vida e é coevo dela. Cada raça criou seus próprios mitos e é nesses que o drama, por vezes encontra a sua expressão."
     Significa dizer que o interesse provocado por um drama, um grande conflito, não depende dessa ou daquela ação, nem mesmo de incidentes ou de agentes conflitantes. Drama e vida existem em um mesmo tempo. O drama em toda a sua nudez mostra-se como caminho para a percepção de uma grande verdade, o aparecimento de uma grande questão. Por isso, a glorificação da vida comum: o homem mais comum, o mais morto dentre os vivos, desempenha um papel em um grande drama.
Fonte: https://armonte.wordpress.com/tag/james-joyce/
Ibsen
    Discípulo de Ibsen, Joyce tampouco aspira ideais elevados e denuncia hipocrisias da igreja, o dogmatismo dos partidos políticos, o caráter repressivo do casamento, o status inferior da mulher na sociedade. Tradutor de Ibsen em "Quando despertamos de entre os mortos", Joyce destacou o teatro como exemplo de economia. Curioso é o fato de ter sido pela descoberta da invasão de povos nórdicos na Irlanda que Joyce se enxergou mais em seu país, de forte tradição celta.
    Ainda sobre Ibsen, Virgínia Woolf [contemporânea de Joyce] escreveu:
Um quarto é para ele um quarto;
uma escrivaninha, uma escrivaninha;
e um cesto de lixo, um cesto de lixo.
Ao mesmo tempo,
a parafernália da realidade
tem por vezes de se tornar o véu
através do qual vemos o infinito.
Fonte: http://www.joaodorio.com/site/index.php?option=content&task=view&id=280
     Nietzsche
    A religião da arte e não a moralidade é a última atividade metafísica no niilismo europeu. O artista como super-homem é um ser alteroso, seu isolamento é glacial em sua abominação das massas; abdica a expressão individual em favor da universal. Pela arte procura superar a subjetividade num encontro com o dionisíaco, quando o  eu-lírico soa do abismo do ser.
    Tal como sugere Nietzsche em "O nascimento da tragédia": é preciso ver a ciência com a ótica do artista mas a arte com a da vida. Isto é "filosofar com o martelo".

Foto: BiaA.
Em "Os mortos", o leitmotiv é a música.
    Na aproximação com a morte, mortos equiparam-se a vivos, quando acontece a aparição de um morto mais vivo do que os vivos. Pela música desperta a epifania, o ressurgimento da nostalgia, da felicidade e da paixão. O drama é a paralisia, a impossibilidade de se mover. Gabriel é uma sombra de si mesmo. Em uma festa, ele se encontra com três mulheres marcantes: Lily, Miss Ivors e Gretta.
    Em seu discurso anual, ele quer se vingar do tempo, e destaca a separação nítida entre as gerações, entre os vivos e os mortos. A imagem da neve que não para de cair sobre todos, sobre todo país mostra uma paisagem paralisada, de vidas congeladas, quando mesmo uma festa torna-se rotina.
    A prisão da rotina. O desejo de escapar, a interseção morte e vida: são temas em “os mortos”; a paralisia, a epifania, a traição, a religião: os motivos; janelas, noite e comida: símbolos. Tédio, paralisia. Mas a neve não pode continuar a cobrir tudo para sempre.  O final fica em aberto: entrevê-se um abraçar a vida, morosamente aceitá-la.
    As cores que predominam são a amarela e a marrom. A ação é interior, em interiores, em fluxo da consciência. O narrador vê a cena com o foco de Gabriel. Descreve a mesa em linguagem militar, com imagens de um campo de batalha, como uma natureza morta.
    Diz-se que a história serve como um balanço para o primeiro conto: “As irmãs”.
The lass of Aughrim
Gabriel, “o inglês”
    Disse ele, em um diálogo enraivecido com Miss Ivors: “o irlandês não é meu idioma.” E o poeta que Gabriel gostaria de citar em seu discurso é Browning, um inglês, talvez refinado demais para aquele público, um pouco grosseiro. Gabriel usa galochas. Estudou na Anglican Trinity College. Em seu trajeto, destaca a estátua de Wellington, herói britânico que deixou a Irlanda, apesar de ter nascido ali. Por fim, lembra da estátua de William III, do seu avô em torno dela. O monge trapista, católico, aparece como um zumbi. A descrição de Freddy Malin pontua todo conto. Ele é o contraponto de Gabriel. Um bêbado desequilibrado, profundamente irlandês. O anjo Gabriel e o demônio Freddy se alternam.
    Na penúltima cena, do corrimão da escada, sob a música ao fundo, uma canção da Irlanda profunda se passa cinematograficamente. A visão de um guarda-chuva, de um crispar de mão, de objetos sucedem-se em saltos, como cortes de um filme que passa de um ângulo a outro, de uma perspectiva a outra, sem conexão aparente, a não ser pelo fato de estarem todos aquelas possibilidades ali, ao mesmo tempo.
    Fica a sugestão: procurar ler o conto de Joyce Carol Oates, “The dead”, de  1973.
O conto "The dead" de Joyce Carol Oates foi publicado em Marriages and infidelities.
Modernista
    Moderno é saber que o mundo não tem sentido e a existência não tem propósito. Moderno é deixar-se infectar pela linguagem do outro. Lembrem-se que desde a primeira frase do conto, para descrever a criada Lily o autor escolhe o advérbio “literalmente”. Significa dizer falar como ela, pensar como ela, do mesmo modo que posteriormente o autor infecta-se de Gabriel, personagem de classe média. Quando se escreve sobre um personagem, é ele quem dita as palavras, as expressões a serem usadas.
    Moderno é usar o método poundiano do detalhe luminoso, do punti luminosi. Pela arte da ficção, apresentar emoções, não provocá-las.

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