27 de outubro de 2009

De como um Teatro encerrou suas atividades

Mgrilo

Apesar de não acreditar que poderia ser uma boa peça, estava com minha mulher no saguão aguardando a abertura das portas.

Enquanto esperávamos, estava lhe dando instruções de como agir no final da peça se o ator fosse ruim: “Conta a História que em Roma no ano 303, o Imperador Diocleciano mandou para a arena com os leões o ator mimo Genésio, sendo desconhecida se essa decisão foi porque ele se converteu ao cristianismo ou se porque era um péssimo ator. Dessa maneira, quando assistir um ator medíocre você deve gritar assim: ‘VÁ PARA ARENA COM SÃO GENÉSIO!’ e ambas as partes irão ficar satisfeitas, ele porque vai se achar elogiado até em teatro de arena, e você porque vai se achar uma Imperatriz”, e essa conversa meia boca seguiu até as portas se abrirem.

Que noite! Era uma peça em que o elenco queria interagir com a platéia, e o que aconteceu durante o espetáculo peço que os leitores leiam o que está lavrado no livro de ocorrências pelo escrivão de uma delegacia da comarca do Rio de Janeiro:

“No dia primeiro do mês de abril do ano corrente de hum mil novecentos e oitenta e quatro, um batalhão da PM trouxe diversos elementos para esta Delegacia e se apurou que se tratavam do público e do elenco de uma peça de teatro intitulada AQUILES, AJAX E ZEUS; relatado que perto do final da peça um espectador exaltado reclamou: “Se é para a gente ter algum tipo de participação como está acontecendo, quero o meu cachê!”, paralisando o espetáculo e trazendo dos bastidores o diretor que retrucou se tratar de uma montagem stanislavskiana, ao que foi interrompido por um coro de “quero o meu!”, iniciando uma troca de insultos entre o público e o elenco; contam ainda que neste mesmo momento o gerente do teatro, que estava do lado de fora e colocava o cartaz do novo espetáculo, ao ouvir a barulheira entrou ainda segurando o cartaz sobre sua cabeça onde se lia: ”PORQUE NÃO NASCI MILIONÁRIO?”, provocando mais revolta; e que, depois de muita discussão e cálculos, concluiu-se que os espectadores pela sua participação deveriam receber determinado valor cada um na saída e postos em fila única; mais o agravante é que depois disso, dois atores ainda empolgados pelos seus papéis de marginais e dizendo que iam fazer um tal de “laboratório” resolveram assaltar o público do lado de fora do teatro para tentar recuperar o prejuízo, causando assim pancadaria generalizada”.

Ainda outro dia, passei em frente ao teatro fechado, e olhando para o alto pude ler o que sobrou das letras - que ainda não caíram - daquela malfadada peça: AQUI    JA    Z

Ao vento

    Ruth Lifschits

  “De quem é isso?”, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço – uma tanga de renda vermelha.
    Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: “Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PÁRA, PÁRA, PÁRA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão, e faz coisas que nem imagino”.
    A calcinha secando, embalada pelo vento que entrava pela janela, parecia uma bandeira demarcando os limites dos territórios. Um apartamento, duas mulheres, dois mundos diametralmente opostos.
    Heloísa voltou correndo para o quarto. Precisava ficar quieta. Felizmente, não trabalhava às sextas-feiras.  Enfiou-se na cama e ficou imóvel, de olhos fechados, toda contraída. Desejou poder desligar seus pensamentos e parar de sentir. Impossível. A calcinha vermelha lhe mostrara, em segundos, tudo que havia de errado em sua vida. Acontecimentos recentes afloraram: o filho que saíra de casa para estudar no exterior, a casa vazia que o casal não conseguira encher de alegria, a descoberta da traição, a separação.
   E lhe veio à mente o dia em que, por engano, saíra para o consultório com o celular do marido, Rogério. Ao verificar suas mensagens, ainda na garagem do seu prédio, identificara a voz de Sandra, sua melhor amiga. Sacanagem, sensualidade e sexo quase pornográfico a atingiram, como um direto na boca do estômago. Tonta, a respiração curta e difícil, viu-se no papel de voyeur das proezas de Rogério & Sandra durante infindáveis segundos. As intimidades obscenas da dupla, com promessas de mais e melhor pro final da tarde, queimavam-lhe mente, coração e retinas. “Sandra sabia das minhas dificuldades, me dizia pra ser paciente, que as coisas iam melhorar. Melhorar pra ela, cretina, falsa, filha da puta!”, praguejava Heloísa, dando meia volta, decidida a confrontar o marido. Jogou tudo na cara dele, junto com o celular. Rogério se assustou, mas ouviu tudo calado. Heloísa falou, falou, falou, desesperada. Depois de um longo silêncio, ele disse: “Não tenho o que te explicar. Aconteceu. Como você quer fazer?”. Naquela mesma noite, Rogério saiu para não mais voltar. Já fazia mais de um ano que os direitos tinham sido respeitados e os bens divididos. Falavam-se de vez em quando, trocando notícias sobre o filho distante.
    Depois de uma hora em posição fetal, Heloísa se levantou, tomou um banho e foi se vestir no closet, como de costume. Assustou-se ao ver sua imagem no espelho da parede ao fundo. “Que cara horrível”, murmurou, enquanto deixava a toalha cair. Baixou o olhar para seu corpo refletido, examinando-o minuciosamente. Aprovou os braços firmes, o busto pequeno, os quadris estreitos e as pernas longas e musculosas. Gostava de ser magra – “Viva minha avó, que me deu isso tudo. Pena que não me ensinou como se usa”. Heloísa não tinha vaidades. Suas roupas eram práticas, confortáveis e discretas. Funcionais. Claro que poderia usar uma tanga igual à da Cida, só que nunca tinha querido. Sem pensar, abriu sua gaveta de calcinhas e foi jogando uma por uma no chão. “Iguais, grandonas, broxantes. Por que faço isso comigo, por quê?”, pensava, de olhos presos naquelas peças sem graça. Foi então que partiu para o ataque. Pegou uma tesoura na escrivaninha e, entregando-se a uma raiva avassaladora, picotou todas as calcinhas. Cortava, retalhava, rasgava e xingava: Sandra, Rogério e, depois de um tempo, ela mesma. Vários minutos depois, tinha feito um estrago enorme, pois também atingira mortalmente outros setores de seu vestuário, mas não tudo – não estava tão desvairada assim. Queria ferir, destruir seus objetos neutros e conservadores. Não repetiria o que já tinha feito outras vezes – recolocar tudo de volta em seus lugares uma vez passada a raiva. Deu por terminada a batalha pisoteando os destroços, numa dança de guerra furiosa. Sentiu um grande alívio, muita fome e um certo cansaço. “Preciso sair daqui. É, é isso. Vou sair por aí, andar pelo calçadão, olhar gente bonita. Sem rumo certo, sem hora pra voltar. Hoje vou fazer o que me der na telha”, pensava enquanto esticava a mão para pegar uma calcinha. Mas, lembrando-se do que acabara de fazer, caiu na gargalhada. Um riso nervoso, descontrolado, que terminou num choro sentido, silencioso, doído. “Olha o que eu fui arrumar – não tenho calcinha pra sair! Eu quero sair. Sem calcinha? Sentar na cadeira do bar da esquina, o frio do metal no meu traseiro pelado, e pedir um capuccino pro Zé? Ah, não dá, não dá mesmo”, concluiu.
    Cobrindo-se com um quimono, foi procurar sua empregada, na esperança de conseguir uma calcinha limpa no armário das roupas lavadas.
    “Dona Helô, só tem essa aqui”, respondeu Cida, com a tanga de renda vermelha nas mãos.
    Heloísa, espantada e confusa, exclamou: “Mas essa é sua, mulher!”.
    “MINHAAAAAAAAAA! A senhora tá brincando. Essa não passa dos meus joelhos”, respondeu Cida, rindo, meio sem jeito. “Tava aqui, embolada no tanque quando cheguei. Pensei que fosse da senhora. Deve ter caído lá de cima. Vai ver que é da Tina, do 804. Isso é capetagem desse vento danado que joga de tudo aqui dentro. É só abrir a janela que entra coisa. E faço o que com isso?”
    “Sei lá. Joga fora, leva pra você”, respondeu Heloísa, já voltando leve e saltitante para o quarto, esforçando-se para pôr ordem em seus pensamentos. “A suíte vai ficar trancada, enfrento a bagunça mais tarde”.
    Meia hora depois, lá estava Heloísa no café da esquina, mordiscando um croissant de chocolate enquanto o segundo capuccino era preparado pelo Zé, o garçom que atendia as mesas da calçada. O jornal do dia continuava dobrado e esquecido sobre a mesa.
    Heloísa, de olhar perdido na distância, um sorriso maroto nos lábios entreabertos, acariciava sua saia de seda estampada e se deixava invadir por sensações novas e muito agradáveis - o frio do metal da cadeira não era desagradável ao contato. A sensação de frescor provocada pelo ar que lhe subia pelas pernas cruzadas, que ela balançava sem parar, era de um prazer indescritível.

LOBO

Ângela Brancante

Os que sonham de dia têm conhecimento de muitas coisas
que escapam aos que sonham de noite.
Edgar Alan Poe

Folhas ao vento
Lento tão lento
Sons ao relento
Vento dos ventos
Sonhos só sonhos
Sonhos de vento

A noite é parte do medo
O dia é parte da vida
O vento é hora sombria
Lobo branco, alma vadia




***
TYGER
animação de Guilherme Marcondes,
inspirada no poema de William Blake do mesmo nome,
foi o mote para descrever a transformação do obediente em selvagem.

Voltando à Vaca Fria ou... Por que ler “A Velha Senhora Indigna” de Bertold Brecht

Arlette Santos

O texto me agradou. No dia em que foi comentado em aula não estava muito inspirada, e pouco falei. Mas numa dessas noites, sozinha, resolvi relê-lo. Gostei da abordagem, o autor chama a velha de “velha”. E não era mesmo? Chamar um negro de “negro” para identificar uma de suas características não significa preconceito, nem chamar uma loura de “loura” revela qualquer intenção oculta de insinuar que ela seja burra.

Voltemos à vaca fria, ou seja, à velha senhora indigna: será que os filhos consentiam que ela tivesse “um lar em sua casa” ou somente “um canto para ir ficando”? E o filho, o tipógrafo, será que queria ir morar com a mãe apenas para se livrar do aluguel e viver com mais conforto? Fico a imaginar se meus filhos trocassem correspondência para decidir que destino me dariam (como se eu fosse “um troço”).

O texto mostra o preconceito para com os velhos, a falta de amor e a mesquinhez. Pelas falas e modo de expressar do neto da senhora considerada indigna, a avó continuava a mesma, apesar de fazer tantas coisas que os filhos desaprovavam: “era a mesma de sempre”. Apenas passou a levar a vida a que tinha direito e sobre a qual não devia satisfação a ninguém. Não quis acompanhar o filho ao cemitério para visitar o marido? E daí?
Também eu, há um bom tempo, só vou ao cemitério para enterrar meus mortos queridos. Quisera que todos eles optassem pela cremação. O filho tipógrafo insinuou um “affaire” entre a mãe e o sapateiro. E se fosse verdade, que mal haveria? Se só sobrou na cidade o filho fofoqueiro, melhor seria se não tivesse ficado ninguém.

Referir-se à pessoa que ela escolheu por acompanhante como “idiota” e “aborto” é o cúmulo da mesquinhez e preconceito! Imagine se meus filhos, netos, irmãos e amigos se referissem à M. – minha acompanhante – dessa maneira... E olhe que saio com ela para ir ao cinema, teatro, visitar parentes e amigos. Vamos à feira, supermercado, caminhamos... Será que tem alguém que faz comentários daquele tipo no meio em que vivo?

Realmente me diverti com a leitura desse texto. E, para completar, neste fim de semana o porteiro do prédio em que moro interfonou dizendo que o Sobral – antigo proprietário do meu apartamento – entrara em contato pedindo meu telefone para repassá-lo ao Heitor, que ficara compungido ao saber da morte do meu marido. Os três haviam sido colegas na academia de yoga do Professor Hermógenes. O porteiro, cioso de suas funções, disse que iria me pedir permissão, e então, para facilitar, o Sobral deixou seu telefone. Liguei, conversamos um pouco, e ele perguntou se eu ainda estava trabalhando. Disse-lhe que há muito estava aposentada, e então ele retrucou: “Mas a senhora saía muito...” Não, Sobral, eu ainda saio muito.