Nos anos 70, ainda na Argélia, cineastas e médicos fizeram um
documentário educacional sobre uma doença dos olhos que se espalhava por uma
das províncias centrais do país. Equipes passaram a viajar para mostrar o filme
e organizar palestras nas aldeias. A doença, uma forma de tracoma, é causada
por uma mosca, que foi mostrada várias vezes em close na tela.
Depois da exibição, os aldeões afirmaram que o filme nada tinha a
ver com eles. Pareciam até surpresos de terem sido convidados a vê-los.
- Mas quase todos vocês têm tracoma!
- Sim, mas não temos moscas desse tamanho.
[...] Na década de 60, o diretor e etnólogo Jean Rouch fez um
filme sobre a caça ao hipopótamo, com os habitantes de uma aldeia perto do rio
Niger. Durante as filmagens, gravou música na aldeia dos caçadores. Foi então a
Dacar para montar o filme, incorporando a música à trilha sonora.
Alguns meses depois, com o filme pronto ele voltou à aldeia para
mostra-lo aos habitantes. [...] O filme como filme teve plena aceitação. Mesmo
assim, já quase de madrugada, um ou dois deles acrescentaram um comentário aos
calorosos elogios que faziam a Jean Rouch: a música estava errada, bastante
errada.
- Mas é a música de vocês! Eu a gravei bem aqui! – disse Rouch,
surpreso.
- Oh, sim – responderam os africanos. – Nós a reconhecemos. Mas se a
tocássemos assim, durante a caçada, os hipopótamos fugiriam bem depressa.
(De A linguagem secreta do cinema, Jean-Claude
Carrière, trad. Fernando e Benjamin Albagli, 1995)
ESCREVER CINEMATOGRAFICAMENTE É FAZER A MENTIRA PARECER REAL?
É REFORÇAR A REALIDADE PARA ENFATIZAR O DRAMA?
TRILHA SONORA, DECUPAGEM SÃO RECURSOS CINEMATOGRÁFICOS QUE PODEM
SER TAMBÉM USADOS EM TEXTOS LITERÁRIOS, AINDA QUE NESTE ÚLTIMO CASO, SEJA
PRECISO TODO UM ESFORÇO EXTRA PARA FAZER O LEITOR VER A CENA.
Observem-se os saltos na narrativa, as decupagens que parecem espontâneas, a entrada da música no corte entre o mar e o rio neste trecho do filme de Jean Rouch: "moi, un noir" (eu, um negro), 1958. Seria possível descrever esta cena literariamente com a mesma leveza do filme? A literatura conta com as metáforas e metonímias e outras figuras de linguagem como formas de "decupagem" da língua.
***
Como se cria uma cena?
Primeiro crie o contexto
e depois determine o conteúdo.
O que acontece numa cena? Qual é o propósito da cena? Por
que ela está lá? Como ela move a
história adiante? O que acontece?
Um ator às vezes aborda a cena descobrindo o que ele está
fazendo nela, onde ele esteve e onde estará depois da cena. Qual é o propósito
da cena? Por que ele está lá?
Como escritor, é de sua responsabilidade saber o que
acontece com seus personagens dentro
das cenas, e também o que acontece a eles entre
as cenas; o que aconteceu entre segunda-feira à tarde no escritório e
quarta-feira à noite no jantar? Se você não sabe, quem sabe?
Ao criar contexto,
você determina um propósito dramático e pode construir sua cena frase a frase,
ação por ação. Ao criar contexto,
você estabelece conteúdo.
Certo. Como se faz isso?
Primeiro, ache os
componentes ou elementos dentro
da cena. Que aspecto da vida profissional,
pessoal ou privada de seu personagem será revelado?
Voltemos à história de três caras assaltando o Chase
Manhattan Bank. Suponha que queiramos escrever uma cena em que nossos
personagens decidem-se definitivamente a assaltar o banco. Até agora, eles
somente falaram sobre isso. Agora eles vão fazê-lo. Isso é contexto. Agora, conteúdo.
Onde sua cena acontece?
No banco? Em casa? Num bar? Dentro de um carro?
Caminhando no parque? O lugar óbvio para colocá-la seria um lugar calmo,
distante, talvez um carro alugado numa rodovia. Este é o local óbvio para a cena.
Funciona, mas talvez haja algo mais visual que possamos usar; afinal, isto é um
filme.
Atores frequentemente representam "contra a
corrente" da cena; isto é, abordam a cena não do ponto de vista mais
óbvio, mas do menos óbvio. Por exemplo, eles representarão uma cena de ódio
sorrindo suavemente, escondendo sua raiva atrás de uma máscara gentil. Brando é
um mestre nisso.
Em Silver Streak
(Expresso de Chicago), Colin Higgins escreve uma cena de amor entre Jill
Clayburgh e Gene Wilder em que eles conversam sobre flores! É lindo. Orson
Welles, em The Lady of Shanghai (A
Dama de Xangai), teve uma cena de amor com Rita Hayworth num parque aquático,
em frente aos tubarões e barracudas.
Cena de "A dama de Shangai" em que se mencionam tubarões no Brasil que, enlouquecidos,
se comem uns aos outros.
Quando escrever uma cena, procure por uma maneira de
dramatizar a cena "contra a corrente".
Suponha que usemos uma sala de sinuca lotada, à noite,
para colocar a cena de "decisão" de nossa história do Chase Manhattan
Bank. Podemos introduzir um elemento de suspense na cena; enquanto nossos
personagens jogam sinuca e discutem a decisão de assaltar o banco, um policial
entra, perambula pelo lugar. Isso acrescenta um toque de
tensão dramática. Hitchcock faz isso o tempo todo. Visualmente, poderíamos
começar com uma jogada na bola sete, e depois abrirmos o quadro para revelar
nossos personagens debruçados na mesa falando sobre o roubo.
Uma vez determinado o contexto
— o propósito, local e tempo — o conteúdo vem naturalmente.
Suponha que queiramos escrever uma cena sobre o fim de um
relacionamento. Como a faríamos?
Primeiro — estabeleça o propósito da cena. Neste caso é o
fim de um relacionamento. Segundo — descubra onde a cena se localiza e quando,
dia ou noite. Ela pode se localizar num carro, numa caminhada, num cinema ou
num restaurante. Usemos o restaurante; é o lugar ideal para terminar um
relacionamento.
Eis o contexto.
Eles estão juntos há muito tempo? Quanto tempo? Num relacionamento prestes a
terminar, geralmente uma pessoa quer que ele acabe e a outra espera que não.
Digamos que ele quer terminar com ela. Ele não quer magoá-la; ele quer ser o
mais "gentil" e "civilizado" possível.
É claro que o tiro sempre sai pela culatra. Recorde a
cena de rompimento em An Unmarried Woman
(Uma Mulher Descasada), em que Michael Murphy almoça com Jill Clayburgh, mas
não pode forçar-se a dizer as palavras. Ele espera até chegarem à rua, depois
do almoço, então descontrola-se e deixa escapar as palavras.
Primeiro, encontre os componentes da cena. O que existe
num restaurante que possamos usar dramaticamente? Os garçons, a comida, alguém
sentado ao lado; um velho amigo?
O conteúdo da
cena agora torna-se parte do contexto.
Ele não quer "magoá-la", então está calado e
desconfortável. Use o desconforto: frases interrompidas, olhar fixo na
distância, o espiar de outros jantares próximos; talvez o garçom entreouça
algumas observações, e ele é um francês rude, possivelmente homossexual. Você
tem que escolher!
Este é um método que lhe permite ficar no controle de sua
história, não sob o controle dela. Como roteirista, você tem que exercer a escolha e a responsabilidade na construção e apresentação de suas cenas.
Procure pelos conflitos; dificulte alguma coisa, faça-as
mais difíceis. Isso acrescenta tensão.
(De Manual
do roteiro, Syd Field, trad. Álvaro Ramos, 1995)
***
Do processo de escrita de
Ana Paula Maia
Trechos da entrevista “Ir aonde ninguém
quer ir” (Por Christian Grünnagel)
O Germinal é um livro que li para escrever a passagem do
carvão [em “Carvão animal”], por causa da mina. Além disso, assisti à adaptação
para o cinema, porque é visualmente também importante. Foi uma referência. Você
lê um livro para escrever um capítulo, uma cena.
Talvez isso seja também uma relação que esse livro [“A guerra dos
bastardos”] tem com o cinema. Por exemplo, tem uma passagem desse livro em que
ele é visto de dois ângulos diferentes. Na mesma passagem, há a cena de
atropelamento do Amadeu, você vê ela no primeiro momento e, lá na frente, você
vê como ela foi provocada por um outro ângulo. Então existe essa brincadeira do
olhar, da narrativa.
Para escrever uma cena, às vezes, eu demoro muito, porque eu tenho
que entender qual é o processo daquilo ali. Qual é o nome daquela manivela? Aí
eu paro e vou descobrir o nome da manivela. Eu faço questão. Este livro [Carvão
animal] foi revisado por um bombeiro de verdade. A parte de fogo mesmo, eu
destaquei e mandei para ele, que revisou.
***
Aparou o bigodinho e escolheu a camisa florida.
Ele se enfeitava para a
morte e não sabia.
(De Ah, é? Dalton
Trevisan, 1994)
Exercício:
1. O que acontecerá com o cara do bigodinho? Imagine as
circunstâncias da sua morte.
2.
Escreva um contexto para a cena apresentada por Dalton Trevisan, de modo que, pela leitura de alguns detalhes, o leitor
acesse a um conteúdo coerente com o que virá a ser o episódio onde o sujeito
irá morrer. (Não é preciso escrever a cena da morte propriamente dita.)
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