24 de junho de 2011

Série "Todos os contos de um caso" (1 e 2)

De um mesmo caso, da mesma sequência de fatos, saem histórias diferentes. Modos diversos de narrar evidenciam pontos de vista distantes de um mesmo episódio. Um único caso resulta em várias histórias porque cada autor lança mão de suas experiências no momento em que se faz narrador, e porque a escolha do protagonista determina a interpretação dos acontecimentos.

Na série "Todos os contos de um caso", seis autores exercitam-se, reinterpretando o seguinte episódio: uma mulher descobre que sua empregada de muitos anos queimou um chale valioso e escondeu o ocorrido. Irritada, a despede. Mas se arrepende no momento em que contempla um varal que a mesma empregada consertou. E a readmite.

Nesta postagem, apresentamos dois dos contos desta série.
*** 
RARIDADES
Ruth Lifschits
          Lindalva se sente vazia.  A mulher calma e humilde tem pressa.  Hoje o trem está lento, parando muito. Quer chegar logo ao Leblon,  pegar sua carteira, receber seu dinheiro e acabar com essa história. Mas ainda tem um ônibus para pegar - muito chão a percorrer. "Trabalhei quinze anos  na mesma casa. Fui despedida.  E nem pude me explicar, não houve como. D. Luíza falou duro:   só me apareça aqui no fim do mês, nem um dia antes.
          Depois de remoer seus maus pensamentos por mais hora e meia, ela finalmente desce na Central e, ao ver que não tem nenhum ônibus no ponto final, decide pegar uma van, "é mais caro mas chego logo, acabo com isso."  
          E as cenas  daquela triste segunda-feira do início do mês também entram na van  com ela. Tenta pensar em outras coisas, na irmã que acabou de voltar de um passeio à Aparecida, na tia que lhe telefonou à cata de novidades, mas tudo somente passa pela cabeça dela sem ficar.  Já o que se refere ao dia em que foi despedida entra, fica e rende muita preocupação.  Aquele dia tinha começado como todos os outros - normalmente. Primeira segunda-feira do mês na casa de Luiza Vaz Lobo era dia de cuidar das porcelanas, das taças e copos de cristal guardados na sala. Horas eram forçosamente dedicadas a lavar, secar e recolocar tudo de volta nos lugares.  E  com muito cuidado para não quebrar nem danificar peça alguma. E  mais cuidado ainda com a louça mais antiga da família - Companhia das Índias .  Mas Lindalva gostava daquela rotina. Detalhista, adorava manusear peças bonitas, cuidar delas como se fossem bebês recém nascidos.   E se lembrou da primeira vez que recebeu ordem para cuidar das preciosidades da patroa. Ela pedira  "atenção com seus movimentos, considere cada objeto como se fosse um recém nascido. Delicadeza e firmeza" e continuara falando do valor das peças, importância para a família, e bla bla bla. Lindalva tinha gostado da idéia de considerar tudo à sua frente como seres frágeis e delicados -  bebezinhos. Desse dia em diante, sua maneira de trabalhar mudou. Se dirigia a tudo pensando "tô cuidando dos meus filhotes".  Seus gestos se tornaram mais brandos. Na verdade, Lindalva era uma pessoa atenta, cuidadosa e muito esforçada. Era dela querer fazer o melhor sem esperar elogios. 
          Mas tudo isso tinha se acabado, um imprevisto pôs tudo a perder. Nem teve  chance de explicar que tinha se assustado. Luiza não quis  saber de nada "mas ela é que começou tudo. E não foi D. Luiza que entrou aflita, me chamando e pedindo pra ajudar? Fez um estardalhaço tamanho que eu tomei um susto.”    
          Ao ouvir os pedidos aflitos,  Lindalva colocou o ferro na posição de descanso: na vertical, apoiado na parte traseira e correu para atender a patroa. Ao voltar, encontrou o ferro caído sobre a echarpe de  seda pura chinesa. Ergueu o ferro rapidamente e viu, horrorizada,  que a  valiosa peça estava queimada. O delicado estampado em tons de azul e verde tinha adquirido um enorme ponto negro. E agora? Luiza  contava com essa echarpe para sair. De manhã, antes de ir para a empresa, tinha pedido: vestido preto de fenda lateral, colar e brincos de pérola, relógio Cartier, a bolsa preta de flores de cetim , os sapatos pretos Chanel e as meias cor da pele que tinha trazido de Paris há pouco tempo. E a famosa tira chinesa de seda estampada, há anos na família e que poucas vezes saía do armário. Lindalva já tinha preparado tudo, e só faltava desamassar a seda com o ferro. Tinha deixado para o final pois a peça precisou ser lavada. "Tava com cheiro de guardado, D. Luiza não ia gostar. Ela quer tudo prontinho sobre a cama do quarto de vestir.”   
          Coração disparado, dentes trancados, dobrou a echarpe e deixou-a sobre a tábua de passar. Decidiu jogar água no rosto antes de enfrentar Luiza. "Explico tudinho pra ela. Vou trabalhar o resto da vida pra pagar o prejuízo, não faz mal." Nessa hora o telefone tocou e ela correu para atender na cozinha. Ouviu o grito de   Luiza, largou o telefone de qualquer maneira e voltou para a área.  A patroa estava com a echarpe aberta nas mãos e o ponto negro fitava as duas mulheres. 
          Passados  vinte e nove dias, ia enfrentar uma D. Luiza ex-patroa. Não tentaria explicar nada. Não tinha conseguido se explicar na hora, não seria agora que conseguiria. E para quê? Nada ia mudar, azar seu. Pegaria seu dinheiro, a carteira de trabalho e rua. Não queria ficar muito tempo lá, não com todas as lembranças revirando em sua cabeça. Qualquer dia  sua irmã  iria lá para pegar o restante de suas coisas. " Vai ser difícil conseguir emprego igual". 
          Até o acidente com a echarpe de seda, Lindalva tinha tido patrões compreensivos e corretos. Tinha convivido com os filhos deles numa relação amiga e carinhosa. Todos confiavam nela.  Com trabalho sério, esforço e dedicação, ela conquistara  o respeito de todos. Gostava daquela família. "Mas isso já acabou", pensou enquanto se dirigia à portaria do prédio. Passou facilmente por todas as barreiras de segurança e pegou o elevador para o décimo primeiro andar. Estranhou ter de tocar a campainha, acostumada com  chaves para entrar. Mas, isso também era passado.
           - D. Luiza em pessoa abriu a porta!, contou mais tarde para a irmã.
          Luiza não era nem de atender telefone nem de abrir a porta para ninguém. Lindalva estava meio catatônica, sem saber como interpretar o comportamento de sua ex-patroa.
          - Lindalva, venha aqui para a sala. Quero conversar com você. 
          E foi um monólogo longo, mal ouvido por Lindalva. 
          Horas depois, ela se lembrava vagamente de  "quero que você continue trabalhando aqui" misturado com "tantas qualidades, seu bom serviço", "mais acertos do que...". Mas Lindalva nunca se esqueceu do olhar inseguro da patroa. 
          Nas muitas vezes em que tentou conversar sobre esse caso com a irmã, nunca conseguiu explicar em detalhes o que  tinha se passado. Tentava ordenar os pensamentos, se emocionava e terminava dizendo  "D. Luiza e eu acabamos nos entendendo."  A irmã queria detalhes, perguntava se tinha contado sobre o susto, sobre o ferro ter caído, mas Lindalva não enxergava as minúcias. O que importava era "não perdi meu emprego, trabalho onde gosto.”
          O que Lindalva nunca soube é que foi salva pelas cordas do velho secador de roupas. 
          Dias depois de ter mandado Lindalva embora,  Luiza reparou que o varal estava com cordas novas e muito bem ajustadas. Trabalho de mestre, reconheceu. Perguntou ao seu motorista,  que tomava um cafezinho na cozinha, se tinha sido ele o autor da proeza, já pronta para fazer elogios.  "Não, foi a Lindalva.” E ela parou no ar, dando-se conta do estrago que tinha feito, da sandice que estava para cometer. 
          Na mesma noite, durante o jantar, ela se surpreendeu interrompendo o marido para dizer: 
          - Artur, acidentes acontecem.

***
COADJUVAÇÃO
Patricia Fucci
           Sebastiana, a “Bá”, viveu sua vida na da família de Aurora, andou nos seus passos, velou seu sono.
          Negra raçuda, empurrou aquela gente pra frente.
          Veio para o Rio de Janeiro bem mocinha, fugida da pobreza de sua terra natal, Santana do Bom Parto, interior de Sergipe. Veio pela mão do padrinho com emprego já acertado na casa de Aurorinha e Jarbas, que haviam acabado de se casar.
          Rapidamente sua presença impregnou a casa, no brilho das pratas, no reluzir dos cristais, no cheirinho gostoso do refogado, no doce aroma do café.
          De manhã botava os meninos pra escola, à noite lhes contava estórias e entre uma coisa e outra era contente. Limpava, lavava, passava, fazia sua parte naquele projeto de vida e cumpria seu papel. Às vezes, quando vinha o banzo, tocava a trabalhar mais ainda, cantarolando baixinho pra espantar a tristeza.
          Os anos passavam depressa, as crianças cresciam, as tarefas domésticas modificavam e a vida seguia seu curso. Cada dia amanhecido era pleno de sentido, tinha o coração leve e sereno daqueles que sabem o que é essencial na vida e simplesmente o fazem, sem questionar.
          Uma quarta-feira qualquer de abril amanheceu como todas as outras. Lá por volta de meio dia Aurora grita por Sebastiana, que prontamente lhe atende o chamado subindo as escadas. Encontra no quarto uma Aurora impaciente, exibindo em uma das mãos uma echarpe de seda queimada por ferro de passar, exigindo explicações, visivelmente alterada.
          Sebastiana tenta lembrar quando passara a peça, mas não se recorda.
          Tenta dizer isso a Aurora que não a escuta e, jogando a echarpe no chão, manda pôr fora, já não lhe serve mais. Sai deixando pra trás o ruído cortante da porta batida. E Sebastiana fica, como sempre ficava, remanescida. Não tinha portas pra bater nem ouvidos para lhe ouvir gritar, só cabia no espaço de ficar. Ficar, refazer e continuar.
          Era final de tarde e o céu se punha cinza quando Aurora apontou o carro no portão. Ao longe, os lençóis brancos dançavam no varal e, através deles, percebeu a sombra de Sebastiana que se apressava em recolher a roupa ante a iminência do temporal. Com gestos firmes de quem faz o que é preciso, Sebastiana dobrava a rouparia.
          Subitamente, Aurora se deu conta de quantas vezes aquela mulher se antecipara para tornar sua vida melhor, quantas vezes se acordou para preservar seu sono, quanto de sua vida lhe emprestou, graciosamente.
          Sua alma foi invadida por uma emoção sem precedente, um misto de gratidão e compaixão por aquela mulher e o inconformismo por ter-lhe sido tão malcriada por nada, por absolutamente nada, como pôde, meu Deus?
          Acelerou o carro e só parou quase em cima do varal. Gritou por Sebastiana e abraçou-a pedindo perdão, todo perdão do mundo. Aqueles instantes do abraço disseram mais que todas as palavras diriam, e, silenciosamente se recompuseram, mas agora com uma cumplicidade diferente, mais explícita, que fortaleceu aquela aliança para sempre.
          Jarbas faleceu há dois anos, os meninos casaram, restaram no casarão Aurora e Sebastiana, que se fazem farta companhia. Freqüentemente presenteiam os “meninos” e suas famílias com as maravilhosas e secretas receitas e, quase sempre, estão às voltas com os netos, que já são cinco, levando às jovens mamães sua vasta experiência com os pequeninos.
          Muitos anos mais tarde, Aurora e Sebastiana finalmente tiveram o merecido reconhecimento, foram eternizadas por J.P. de Barros, um dos netos de Aurora que tinha se tornado um grande escritor, e escreveu no início de seu romance mais famoso: “Quando lembro o bom da infância, lembro daquelas ternas mãos cuidando de mim, que simultaneamente se permutavam, duas pretas e duas brancas, na mescla da doce presença das minhas adoradas avós Aurora e Sebastiana”.

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