João Cabral, em A inspiração e o trabalho de arte  (1952), diz que tanto uma - a inspiração -, quanto o outro - o trabalho  de arte -, ambos são realizados em nome da expressão pessoal. Cada  poeta tem sua maneira pessoal de trabalhar.
          Porém,  somente a elaboração cuidadosa e artística da experiência vivida, em  cruzamento com um amor à linguagem, pode criar uma determinada corrente e  certos efeitos formais diferenciados. Graças ao esforço e à  inteligência, a proporção e a objetividade "dão a ler",  e promovem no  poeta ou autor um "desprender-se do limbo".  Já o poema, como depoimento  da subjetividade e que exprime a personalidade, profere a descrença no  ser humano.
          Trata-se da velha oposição entre a técnica e  a improvisação? Não, a discussão vai além. João Cabral chama atenção  para o "olho crítico", que não se reduz simplesmente à técnica. Da mesma  maneira, quem ouve jazz sabe que a improvisação não se opõe à técnica.
           Mas, sublinha Cabral, há claramente dois modos de escrever poesia.  Nos  "inspirados", ativa-se o "olho crítico" em momento posterior à   realização da obra. Para os que se vêem como trabalhadores da arte, no  entanto, a obra é escrita pelo próprio "olho crítico". Ele é o  responsável pela elaboração das experiências.
          O  entusiasmo de Cabral em relação ao trabalho o leva a ser bastante  contundente e várias vezes ele repete o advérbio "jamais". Para ele, a  escrita não deve ser jamais pletórica, não deve jamais disparar em  discurso, jamais ser feita debaixo da experiência imediata, jamais ser  ocasional.
          Trabalho é a palavra-chave.
           Temos uma visão capitalizada do trabalho mas trabalho não é  necessariamente uma opressão. Trabalho é fonte de criação, aponta  Cabral, adensamento de riquezas.  É soma de momento melhores e piores,  reviração do objeto por todos os lados. O trabalho de arte promove a  despedida do objeto  e do poema, filho independente que se vai e não um  membro que se amputa, incapaz de viver por si mesmo.
          A  experiência imediata de cada um é tão-somente uma reserva,  para ser  esquecida e ressuscitada sob outra expressão, no contato íntimo com a  experiência geral da realidade.
          A originalidade do  artista, imerso em seu tempo, diferencia Cabral, não se identifica com a  originalidade do homem. O artista precisa criar uma nova dicção e não  se sujeitar  à morbidez. A escrita artística acontece de modo consciente  e por isso percebe aquilo que se faz sem ponto de referências e também o  que é eco de outras vozes, a dicção de outros poetas, que - diz Cabral  -  é preciso eliminar.
         Contudo, todo trabalho é violento. O do  poeta corta mais que acrescenta. Mas igualmente todo trabalho é  puro exercício,  vale por si, independentemente de resultados.
          Dessa  maneira, João Cabral diferencia obra de trabalho e chama atenção para o  risco que corre o trabalho da arte quando passa a buscar meios para que  ele se faça mais demorado e difícil, quando passa a se impor barreiras  formais a fim de ter mais resistências a vencer. Os operários da  literatura querem propagar o suicídio da intimidade absoluta, o que é  interessante, mas também podem provocar a morte da comunicação.  Formalismo em excesso é a base do hermetismo e do desprezo pelo leitor. O  poeta formalista identifica o leitor, qualquer leitor, consigo mesmo.
           Na parte final do texto, Cabral sai em defesa da comunicação. Sua  sugestão é que essa se garanta pelo controle, pela crítica, pela  percepção da necessidade do leitor e pela "rua" dos homens,  que é muito  mais do que um clube de confrades. Na rua, o poeta encontra a linguagem  em comum, a vida em comum.
          Cuidado - aconselha Cabral -  com o mergulho na mitologia privada e na transformação do leitor em  consumidor. Cuidado com o leitor. "Ele colabora indiretamente na  criação", e a criação subordina-se (o verbo está no texto) à  comunicação.
          O poeta ou autor cabralino escreve na  linguagem comum, tema da vida de homens e mulheres, temas comuns. Ele  procura mostrar a "beleza no que todos vêem e não falar de nenhuma  beleza a que somente ele teve acesso". Com isso, a espontaneidade ganha  novo sentido - uma enorme identificação com a realidade, e valoriza-se o  coletivo, revelado através da voz individual. 
Bia Albernaz 
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| A íntegra desta conferência, pronunciada na Biblioteca de São Paulo, em 1952, encontra-se nas Obras Completas do autor ou ainda numa pequena edição com tiragem de 500 exemplares pela portuguesa Fenda, na coleção As lágrimas de Eros 1, de 1982. | 
 
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