20 de novembro de 2019

Memórias de Adriano - Notas

“Memórias de...”, a quê o título remete? Às memórias como um gênero literário? Talvez, mas também ao romance histórico, à narrativa epistolar e confessional. O título remeteria também a “memorandum”, um tipo de documento comum no cotidiano da burocracia, muito apropriado à função histórica assumida por Adriano, de criar governabilidade para o extenso e espalhado Império Romano.

A mistura dos mundos apresentados por Adriano vem do seu contato com os gregos e com os povos bárbaros, da sua infância na Espanha e de suas muitas campanhas militares; vem da sua formação estrita, física e intelectual, da sua disciplina latina; e vem do seu poder de contemplação e desfrute da arte, da beleza e do pensamento, advindos sobretudo de sua convivência e admiração pela Grécia. Mas, ao se tornar romance, o universo clássico se singulariza, se moderniza. Mistura-se o tempo de ação e o da escrita. Em seu estado quase estático,
em seu final de vida, Adriano é flagrado e ouvido. O romance é a coleta do que ele diz, é fazer com o texto um meio dessa voz tão distante reaparecer. E o modo como isso é feito tem analogia com o de um escultor, uma vez que Adriano é um amante da arte. Como uma matéria dura como mármore, o texto, com suas palavras e suas reentrâncias, pacientemente é esculpido, convertendo-se em uma estátua contemporânea de Adriano. Na bruma espessa criada pelo seu fraseado, vislumbra-se a efígie de um imperador como apenas um aspecto de um homem comum. Ou ainda, o vislumbre do homem incomum, apesar de imperador. Adriano como um status e também em êxtase.

Lendo-o, me identifico, e ao me identificar, pergunto: o que é ser latino? E moderno, é possível que esse romance o seja, ainda que sem a necessária dose de ironia? Ou a ironia, nesse livro, se apresenta tão-somente como pano de fundo existencial, pela aceitação das contradições em prol de uma convivência coletiva na cidade? Pelas “Memórias...”, sente-se a reverência à força do Império, como centrum (o “umbigo do mundo“), e percebe-se a importante referência às leis da República, com seus cultos sacro-mundanos, seus jogos de guerra e seus interesses ocultos na sustentação da paz. Adriano, porém, não parece gostar particularmente de Roma. Vive viajando. Tem várias casas. Conquistou a liberdade de poder viajar constantemente, sem precisar gerir a economia de perto, observando à distância um sistema de governo descentralizado, que funciona com precisão e de acordo com regras e procedimentos bem definidos. Para isso, empenhou-se em consolidar a possibilidade de fazer carreira funcional, nos moldes da militar.

Resumo da história
Adriano é um corpo, uma retórica. Seus ditos, discursos, dizeres modulam-se ao longo dos capítulos que, com o auxílio da Wikipedia, podem ser assim resumidos:

- Em Animula vagula blandula [Pequena alma terna flutuante], sabemos que as “Memórias…” constituem-se como uma carta a Marco Aurélio, sucessor de Adriano, que padece de uma doença mortal de Adriano. Tentando viver um dia após outro, sem medo nem agonia, recua no tempo, e fala de sua juventude, das caçadas, da paixão por cavalos e de outros apetites sensuais. Mas salta para o presente onde sente inapetência e insônia, e daí para o sonho e sua infância;
- Em Varius multiplex multiformis [Várias e complexas formas], expõe a relação com o avô, o pai, a mãe. E também a sua predileção pela cultura grega, que teria o ensinado a ser um imperador. Também nessa parte fala de Roma, o exército, a atração que sente por homens, a iniciação no culto de Elêusis, o medo da morte, seu casamento, o que pensa das mulheres. Refere-se às guerras com os bárbaros e à vitória dos romanos, mas também a uma política não expansionista, à defesa das fronteiras e à pacificação dos focos de instabilidade. A imperatriz Plotina surge como uma figura essencial, cuja atitude, por muitos criticada, no momento da morte de Trajano, garante a sucessão de Adriano no poder;
- Em Tellus stabilita [Estabilidade telúrica, expressão cunhada em moeda da época], Adriano retrata inimigos e o clima de instabilidade social, com a desastrada intervenção de Atiano, homem da sua confiança. E relata suas medidas político-administrativas, sua crítica e seu pragmatismo quanto à sociedade romana, seu apoio aos poetas, sobretudo a Suetônio. Descreve os cenários, a arquitetura, as cores e os edifícios que ajuda a construir e por onde viveu. Dá indícios do romance e do final violento, quando se refere à estatuária e à importância que esta tinha para a sua pessoa uma vez que via nela a imagem do seu amado. Termina com a menção ao culto de Elêusis e à sua admiração pelos astros;
- Em Saeculum aureum [Idade do ouro], dedica-se a seu amado, desde quando se conheceram até à morte inesperada de Antínoo: as viagens, a reciprocidade e a intensa cumplicidade. Mas surgem indícios de tristeza em sua “criança”, que acaba por se suicidar, talvez em sacrifício por Adriano. O embalsamento do seu corpo pelos egípcios, seu túmulo, a construção de uma cidade e mesmo a instituição de um culto a Antínoo são narradas em meio a expressões sombrias;
- Em Disciplina augusta [referência à majestade da deusa Disciplina, presente nas muralhas construídas por Adriano na Britânia], ainda se fazem referências ao culto de Antínoo, acompanhadas de forte revolta. Fala-se de guerra e da revolução dos judeus, da batalha com Simão e do clima febril e de peste no exército. Surgem indícios de sua doença e, apesar disso, dá-se a vitória dos romanos, com a Judeia cortada do mapa, passando a chamar-se Palestina. Inicia-se as ações relacionadas com a sucessão: a adoção de Lúcio, que sucumbe; a nomeação de Antonino como sucessor; e de Marco Aurélio como seu neto; e 
Detalhe da muralha de Adriano, em Northumberland, na Inglaterra. (https://www.megalithic.co.uk/article.php?sid=18177)
- Em Patientia, uma carta de Arriano traz alento a Adriano, mas sem forças e, em desespero, pede a dois homens da sua confiança que o matem, acabando os dois por finalizar a sua vida com o fim de não cumprirem tal ordem. Por isso, continua a viver e, ainda que sonhando com espectros, procura entrar na morte de olhos abertos…

Cada um desses capítulos se reporta a uma dimensão de ser Adriano, de ser um corpo, um cargo, um homem, um qualquer, qualquer um. Sobre todos paira a imagem da autora, com sua força e as muitas histórias que leu, ouviu e buscou in loco, a todo custo e por muitas noites, durante cerca de uma década de sua vida. Num exercício de “magia simpática”, como ela chama esse processo de escrita meditativa em torno de um outro, de uma outra voz, como uma aranha, ela tece sua teia: Marguerite Yourcenar escreve seu romance. Ininterruptamente, ela se dedica a fazê-lo existir, pela arquitetura e pela carpintaria. Nesse processo, La Yourcenar, nome criado a partir de um anagrama de seu sobrenome de batismo[1], se torna digna de Adriano e de si. Reinventa-se enquanto escreve. Essa relação entre uma leitura e o encontro com uma voz faz do escrever, uma escritura.

Do Delirium ("de-lire") como método [2]
O ego como um corpo, com suas ondas de sentimentos e calor. Yourcenar sente fascinação pela disciplina física cultivada por Mishima para fazer frente à cega e insana crença nas palavras (sustentada pela intelectualidade Ocidental) [3], e assim alcançar uma maior intimidade com as ideias, muito maior do que a surgida apenas pela mente. Para aprimorar sua escrita, a autora se aferra em buscar desenvolver técnicas meditativas para criar um vácuo dentro de si e induzir um estado interno de receptividade, aberto ao aspecto do outro, que vem para se refletir “num mar calmo”, nas camadas mais profundas de quem o acolhe.

Yourcenar adapta, para seus próprios propósitos, os exercícios de Inácio de Loyola e o método do ascetismo hindu, a fim de visualizar com mais precisão as imagens que cria por dentro das pálpebras fechadas, e expandir a mente, incluindo o pensamento não racional, não lógico.

A simpatia pela inteligência
Graças a esses métodos de meditação contemplativa e de re-criação imaginativa, confere-se forma, substância e vida ao que de outra maneira permaneceria ignorado, e é assim que se processa a “transição para o outro”, como ação decorrente do verbo em latim delirare (desviar de um buraco). Esse processo, Yourcenar definiu como “simpatia mágica”, uma transferência, em pensamento, para dentro de outra pessoa, permitindo, por exemplo, que ela sentisse as lágrimas de Adriano correrem em seu rosto, em profunda compaixão. A origem do amor e da inteligência se equiparam nesse instante. Simpatia e inteligência tornam-se então interdependentes. 


Notas[1] - "Esa niña llamada Marguerite, según Ud., gustaba bastante del nombre, que identifica una flor, y toma su denominación del antiguo iranio a través del griego en cuya lengua traduce ¨perla¨. Es un nombre místico, que no es de ninguna época ni de ninguna clase. Era un nombre de reina, pero también de campesina. No así el Yourcenar, que nace de la graciosa arrogancia juvenil por desprenderse de la tradición y de las ataduras que pudieran dar a una “futura artista” las convenciones familiares. Fruto de un juego divertido entre Ud. y su padre —cuando decidieron publicar su primer poema— para conseguir un seudónimo a partir del apellido que sonara agradable al oído de quienes serían su público. Entretenidos en hacer un anagrama con el apellido Crayencour y después de acordar la simpatía de ambos por la letra Y, valorada su estética y su significado como cruce de camino o un árbol con los brazos abiertos, esa niña terminaría llamándose Marguerite Yourcernar, una de la más celebres escritoras del siglo XX." Trecho da Carta a Marguerite Yourcenar, por León Sarcos. https://www.elnacional.com/papel-literario/carta-a-marguerite-yourcenar-5-7/
[2] - Cf. Subversive Subjects: Reading Marguerite Yourcenar, editado por Judith Holland Sarnecki, Ingeborg Majer O'Sickey.
[3] - Marguerite Yourcenar escreveu um livro sobre as motivações de Yukio Mishima ao cometer suicídio de acordo com os preceitos do ritual japonês. Em português, "Mishima ou a visão do vazio".

Um comentário:

  1. Beatriz Albernaz, minha mestra, consegue, em palavras, definir o que senti ao reler essa obra extraordinária.

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