24 de outubro de 2019

A liberdade exata de Rita Moutinho: uma homenagem


Querida Rita, te agradeço a oportunidade.
Você é um portal vizinho e próximo.
Uma oficina, uma sala de estar. Uma biblioteca.
Um alfabeto.
Rita, eis aqui um texto meio band-aid,
de quem contigo partilhou pelo menos quatro aventuras.
Na primeira, nos idos de 1989, juntas, fomos “Ladrões do fogo”. Ela bem à frente, acolhedora das pontas dos meus poemas. Decifradora de mistérios, poeta pronta e em êxtase, iluminando com “Uma ou duas luas”, performances em bares, leituras em bandos noturnos, tertúlias na varanda de sua casa.

Na segunda, em 1995, ano em que fui mãe, fui sua leitora e editora na pequena grande coleção “Indivíduos em extinção”. Para mim, “Vocabulário: um homem” vai ser sempre meu livro-criança da Rita inteira, um bebê a oferecer para o leitor um molho de chaves, uma figura de proa em leves traços e um fundo de Netuno. Mar de letras, veleiro erótico, praia grande incontida.

Na terceira, em 2010, fomos companheiras e leitoras mútuas em nova coleção do antigo “Ladrãos do fogo”: ela, com “Sete movimentos da alma; eu, com “Vida vegetativa e outros cadernos”.

E a quarta, na verdade anterior a essa última, pela sua escrita de dedo em riste da orelha do meu livro “Inverno de 99”, em que ela sutilmente apontava quem eu poderia ser como poeta, e alertava aos meus improváveis leitores que precisariam ser tanto aranha quanto teia para adentrar na caixa-preta da minha poesia. Relendo hoje esse texto entendo que, tateando, e aos poucos, tentei seguir os sinais que Rita me indicou a fim de lograr transportar “a poesia da vida que pulsa no cérebro para vida que revolve corpo”. Igualmente tento lembrar, como ela dizia, que o tempo, ainda que infinito, obedece a matemática, mas também ao olho que não pisca, esse olho-cronômetro que o poeta possui.

Artes: Maurício Peltier
Dito isso, passo a fazer o que me foi encomendado: colher de sua fortuna crítica, alguns trechos, indicações que auxiliem o leitor a fruir com mais vagar e aproveitar melhor da poética de Rita Moutinho.

Apesar de ser uma fera lírica, Rita aceitou o desafio de evitar o transbordamento e, para isso (e não só por isso, uma vez que ela era também uma apaixonada estudiosa das tradições da versificação na história da poesia ocidental), tornou-se sonetista. Seus livros “O romanceiro dos amantes” (1999), “Soneto dos amores mortos” (2006) e “Psicografia da terapia cotidiana” (2013) foram integralmente dedicados ao exercício e à renovação do soneto. 

Soube falar de amor, mas também da psicanálise, em sonetos, como diz Fernando Carneiro, folhetinescos. De fato, a partir de “Psicografia...” e depois em “Theo&May” (2016), Rita imprime narratividade à poesia. São “sonetos de romance”, conclui Fernando Carneiro.

Sobre os sonetos de Rita, Ivan Junqueira confessou, o “assombro“ e a “disfarçada inveja“. Tranquilizando o leitor temeroso de que a competência métrica e rítmica pudesse sufocar a expressão, ele indica que, ao contrário, pela concisão dos poemas de Rita, não só a emoção se sutiliza como a tradição se moderniza.

Compartilhando do “grande privilégio dos artistas”, segundo Alexei Bueno, Rita transforma limitações humanas em objetos de beleza. Pela imaginação metafórica livre e rica, e a emoção “recolhida em tranquilidade”, Rui Espinheira Filho junta a voz de Rita Moutinho aos grandes da poesia brasileira. Ela torna “imortais os próprios amores mortos”.

Geraldo Carneiro, na introdução ao livro “Sonetos de amores mortos”, elogia a coragem da poeta que mostra com elegância o seu “negligê feito de andrajos”. Sem bancar a chique, rodando a baiana com classe, sua linguagem é feroz e tragicômica. Em reencontros com amores mortos mortos e mortos vivos, descarta o romantismo e transforma dor em humor, misturando circunstância e transcendência, fazendo da leitura da poesia um privilégio e uma alegria.

Em um mundo cujos elos estariam mortos, em que Eros está morto, a poesia de Rita é brinde, ofensa e fogueira. Possibilita renovar e distinguir as percepções do amor, esse sentimento que atravessa séculos e nos deixa entrever a eternidade. E potencializa a visão do feminino por meio de jogos de espelhos entre o passado e o futuro, cortado por um presente consciente e provisório; ficcional, mas real.

Rita chega assim a ser “um modo intensivo da linguagem poética”, nas palavras de Frederico Gomes, tendo entrado para a “tribo dos raros”, como diz Elaine Pavoulid. Seu lirismo persegue o lirismo proclamado por Mário de Andrade, o que supera o sussurro confessional pelo canto que joga pra escanteio a carpideira, e faz entoar uma carpinteira, livre na medida exata, pra criar a poesia do amor sempre móvel.
Bia Albernaz
(Lido no encontro realizado depois de um ano da morte da Rita.
Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, RJ, out.2019)
***
Trinta anos 
Nem mais nem menos, a liberdade exata,
o bem estar do encontro dos meridianos,
a sombra da floresta, o sol no rosto,
os pés de trinta anos inventando chão,
as possibilidades expostas pelas frestas.

O interno sondar em equilíbrio basta,
a paz,
nem mais nem menos, a liberdade exata,
quando o grão da vagem é que apetece
e sou apenas mais uma que acontece. 
(In: Duas ou três luas, Plaqueta. Coleção Ladrões do Fogo, RJ, 1987.) 
 ***
Voo livre
Da beira da plataforma
a paisagem não cabe
nos planos do meu voo.
A vida que peço não cresce
se me lanço apenas
lança, armada, sabre,
na busca do fim solo.
Vestir a liberdade, acreditar no aço, na asa, na raça,
partir provida e vazia.

                          A praia grande é incontida. 

Da beira da plataforma
o menos é pouco,
quero um voo longo,
quero um pouso esforço,
numa onda ainda sem lugar.
Não nos perderemos de vista.
A espuma se hospeda em areias diversas,
a onda muda de nome.

Lembrar; A praia grande é incontida.
Sem angústias,
marcamos encontro onde?
Que tal na palavra mar?

***
Veleiro
Posso ser veleiro,
mastro, parte ossificada,
velas, sensibilidade,
casco, verdade.

Não multiplico pães nem peixes,
choro onde me sangram as chagas,
singro humana pelos mares,
faço imagens, não milagres.

Mas se você se fizer
veleiro,
eu andarei sobre as águas.
(In: Vocabulário: um homem. Coleção Indivíduos em Extinção. RJ, 1995)
***
Soneto de um sábado surreal
Tu, anjo do "Teorema" e também bruxo,
cevada nas carícias, fel na fala,
pastor de pedras, âncora de surtos, córrego azul, raposa, avenca, magama.
Eu, esta belle de jour, sal de soluços,
frasco de versos, útero de asas,
peregrina das noites, nau sem prumo,
alma de nácar, água, orquídea, calda.
Nas vísceras do oceano nos amamos,
embarcamos um no outro noite adentro,
espumando os delírios mais insanos.
Depois, viraste tronco, e eu, filodendro.
              Amores podem ser longos e poucos,
              mas pelo menos um tem que ser louco.
(In: Sonetos dos amores mortos. Prefácio de Geraldo Carneiro. 2a.ed. Rio, 2014.)
***
Sonetos do Sossego
1981
(62 anos)
Theo, senta aqui na rede do meu lado.
Lerei poemas escritos, yes, à inglesa,
depois de penetrada pelo Bardo
na sosseguidão alva da fazenda.
São poemas inquietos, ardorosos,
tendo o amor por pavio - te devo isto!
Nossa paixão me sai de cada poro,
e a natureza sua nos escritos.
Depois do sarau íntimo arrumarei
rosas em craquelados cache-pots,
antúrios em floreiras, e porei
o feltro pra partida de crapô.
              A paz vamos coroar de noite ouvindo
              "Insensatez", tocada por Laurindo.
                                                                               May

 Minha poeta, parceira e botanista.
Ontem vivemos como duas brisas,
ventando brandamente pela vida,
mantendo em forno brando a crua rotina.
Hoje faço uma letra bossa nova,
exaltando as roseiras e suas rosas,
as rendas de palavras das tuas obras,
o Laurindo de Almeida na vitrola.
Sossego, vou cantar paz e sossego,
fazer um dó-ré-mi bastante tenro
que represente o amor luzente e pleno,
e a bela natureza dos momentos.
              De noite, eu te convido a bom xadrez
               e para muffins com um chá inglês...
                                                                            Theo
(In: Theo&May, 2016)
***
Rita Moutinho, 1995.
 Sessão de fotos para divulgação da Coleção Indivíduos em Extinção.

Obras de Rita Moutinho (1951-2018)
A hora quieta (1975), A trança (1982), Uma ou duas luas (plaqueta), 1987, Vocabulário: um homem (1995), Romanceiro dos amantes (1999), Soneto do amores mortos (2006), Sete movimentos da alma (2010), Psicolirismo da terapia cotidiana (2013), Theo&May (2016).

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