2 de outubro de 2019

Sobre o medo de ficar cego


Daniel Willmer
Em fevereiro de 2015, quando ainda existia o suplemento "Sabático" no Estadão, li uma resenha com breve entrevista com uma escritora chilena até então desconhecida no Brasil, embora elogiada por escritores consagrados como Roberto Bolaño e Enrique Vila-Matas e também vencedora de vários prêmios internacionais. O livro em questão era Sangue no olho e a escritora, Lina Meruane.
Divulgação
Lembro que a resenha e entrevista me interessaram bastante e aquilo ficou guardado na memória. O enredo, no entanto, era difícil. Tratava-se da perda de visão da personagem principal e havia no livro uma associação entre os dois 11/9, o das duas torres em Nova Iorque e o anterior em 1973, golpe de estado que traria ao poder o ditador Pinochet.
Tempos depois, conversando sobre livros e literatura com minha amiga Teresa B., recomendei-lhe o livro, que embora não tivesse sido comprado ou lido, estava em minhas cogitações e listas. Como constantemente eu emprestava a ela livros meus, combinamos que dessa vez ela compraria o livro e após a leitura, me presentearia com ele. Assim foi feito, mas no durante, Teresa me relatava as dificuldades que encontrava em sua leitura, o assunto difícil. E me contou algo que ficaria marcado: as páginas ficam mais escuras à medida em que se progride na leitura. Não esclareci esse ponto pois havia compreendido que o escuro estava relacionado com a qualidade da trama. Eu não havia visto o livro nem ela me mostrou, portanto só soube o significado de seu relato quando o volume veio parar em minhas mãos. As primeiras páginas são como qualquer outro, brancas ou quase. Mas, na progressão, de forma muito lenta vão ficando de cor acinzentada, cada vez mais escuras. No término, são escuras como nuvens pesadas de chuva. 
Para ver o efeito das páginas escurecendo, clique AQUI
no site do Studio Pindó, com  Gabriela Castro
Naquela época, 2015, não consegui ler o livro. Era um assunto muito pesado para quem havia acabado de perder o pai. Daí, Sangue no olho ficou perdido na estante durante alguns anos até que este ano, 2019, tive que retirar todos os livros de uma prateleira a fim de fazer um pequeno conserto. Dois livros então reapareceram. Esse e O rosto de um outro, de Kobo Abe, de um personagem que tendo perdido seu rosto procura um que o substitua, outro projeto da mesma editora, COSAKNAIFY. Escolhi o da Lina Meruane.
E, durante sua leitura, retornou minha curiosidade sobre a autora. Por que teria ela escolhido tal enredo? Porque a referência ao 11 de setembro? 
***
Sangue no olho se passa entre dois pólos da existência de Lina (autora e personagem têm o mesmo nome) – Nova Iorque e a capital de seu Chile natal, Santiago. Uma dualidade histórica faz parte do pano de fundo do romance: os dois 11 de setembro pontuam a distância entre as duas localizações no mapa. O Chile tinha que ver com a ditadura e de como a transição para a democracia ser tão demorada, uma vez que o ditador ainda estava lá, lado a lado com o presidente democrático. Então de fato isso provocou um impacto na formas em que vejo o poder e hierarquia e as relações entre homens e mulheres. Todos os da minha geração comungam o senso de que algo se quebrou no país e que isso sacudiu nossas vidas. (cf.  Los Angeles Times)

O 11/9 de Nova Iorque me deu um senso de paralelismo, que acho está disposto no livro como uma espécie de dupla visão. Claro que fiquei chocada. Eu tinha acabado de chegar à cidade quando aconteceu, mas ecoou em mim de forma diferente. Me fez perceber que eu era uma estrangeira nos Estados Unidos.
Em sua cegueira, Lina recorda ausências que conseguia perceber apenas com a visão: o vazio deixado pelas duas torres de Manhattan. No Chile, sendo conduzida pela frente do Palácio de la Moneda, recorda “como era antes do golpe, assim como os buracos de bala num prédio próximo, e a poeira escura que os cobre como uma mascara. É como se essas ausências fossem uma antecipação da substituição da visão pela memória." (cf.  bookanista.com)
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... em vez de parar cuidadosamente, como devia, eu me dobrei e estiquei o braço para apanhá-la (a bolsa). Foi então que um fogo de artifício atravessou minha cabeça. Só que o que eu via não era fogo e sim sangue vertendo dentro do meu olho. O sangue mais espantosamente belo que vi na vida.

Quando fui operado nos olhos para a remoção de catarata, também fui acometido pela mesma fascinação descrita no trecho acima. Realmente, durante a incisão feita pelo cirurgião na superfície da córnea para poder retirar o cristalino, lembro o que via e comentei com o médico a beleza visual que desfrutava naquele momento e a minha absoluta surpresa de achar belo o espetáculo que era a destruição a bisturi de uma parte de meu olho direito. As cores intensas que foram se espalhando da esquerda para a direita de forma curvilínea, lenta e progressiva do vermelho a um azul muito violáceo vertendo dentro no olho, tomaram conta de meu espectro visual durante alguns minutos. Durante esse tempo não há registro sobre o outro olho. Foi como se não existisse. Meu médico – espantadíssimo – não pode me dar qualquer explicação para o evento, pois foi a primeira vez que algum paciente havia revelado tal incidente. Na ocasião da remoção da catarata do olho esquerdo alguns meses depois, aconteceu  uma repetição do mesmo espetáculo visual.
Quanto ao livro, a resolução da história é realmente surpreendente, passando pelo conflito burocrático do plano de saúde, a burla para executar o procedimento, o novo tempo de espera onde a heroína tem suportar muito desconforto e a incógnita do resultado.
Terminando a leitura de Sangue no olho, me dei conta de que o medo que sentira antes de iniciá-lo não tinha razão de ser. Não é um livro sobre o horror, nem sobre as mazelas que nos podem ocorrer, mas um romance muito bem escrito, uma história contada com bastante ironia e carinho pelos personagens principais. Muito fácil de se identificar na trama e, embora as páginas fiquem mais escuras ao longo do livro físico, o que nos obriga a ler com mais vagar, a sensação não é ruim, ao contrário, o recurso nos faz perceber que alguns diálogos estão entre parênteses, mostrando dois tempos distintos na ação.
No meu caso percebi também que meu medo principal de ler esse livro se devia ao fato de que, em minha família, alguns ficaram cegos, como meu pai, sua irmã e sua sobrinha, a minha prima mais velha. Hoje, no entanto, acho que os três foram vítimas da Segunda Guerra Mundial e da falta de alimentação adequada daquela época. Eu não vou perder os olhos.
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Abaixo, dois trechos do começo da experiência de não enxergar e do início de sua dependência dos outros, no caso, Inácio, para fazer as coisas:

"A rua não era um lugar, era uma multidão de ruídos se acotovelando e se apertando.”

“...pedia que Ignácio descrevesse a atmosfera para assim preencher os buracos da minha imaginação e fazia perguntas que o incomodavam. O norte continua à minha esquerda? Ele dizia Central Park e minha cabeça se enchia de patos azuis e girinos sobrevivendo aos turistas em lagunas fosforescentes.”
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Bom, agora é partir para O rosto de um outro, de Kobo Abe...

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