5 de agosto de 2019

O ardor de uma escrita

Ruth Lifschits 
O escritor Sandor Márai nasceu na Hungria em 1900, época em que era forte o nacionalismo, sentimento fundado tanto na fidelidade às próprias origens quanto numa lealdade quase absoluta à pátria. Tanto uma quanto a outra estão presentes no General Henrik, personagem principal de seu romance As Brasas, objeto dessa resenha.
Ainda jovem e sem fazer parte de nenhum grupo literário, Márai tornou-se um dos expoentes de destaque da narrativa húngara: a crítica o definia como um mestre do estilo, o público o adorava e seus livros eram sucesso de vendas. Essa época, que vai de 1920 a 1948, aproximadamente, é a única em que Márai conviveu com o sucesso. Em 1948, com a Hungria sob o jugo soviético e a implantação de uma política interna policialesca e persecutória, Márai deixou seu país para sempre. Ele não aceitou viver sem poder se expressar em seu próprio país. Para ele, a liberdade de pensamento era fundamental para que o homem pudesse conquistar respeito e conhecer a felicidade. A maior parte de sua obra (mais de 60 livros) foi escrita entre 1928 e 1948. Ele pagou um alto preço por suas opiniões contrárias às ações ditatoriais do governo, pois, quando já tinha alcançado respeito em seu país e era estimado pelo público como um dos maiores escritores da Hungria e da Europa, toda sua obra foi proibida e ele caiu no esquecimento. Esse desconforto com os rumos tomados por sua terra natal inspirou o longo monólogo de seu personagem desesperado e sincero, o solitário e rancoroso General Henrik.
As Brasas, romance de 1942, fala de amizade, paixão e honra. Seu título original em húngaro é A gyertyák csonkig égnek, que significa “Velas queimam até o fim”, título muito expressivo e que corresponde a uma fala do General Henrik já quase no final do livro.
 A narrativa, em terceira pessoa, se desenvolve em torno de Henrik já idoso e vivendo sozinho no castelo de seus antepassados, cercado de riqueza e mordomias, mas auto-confinado, recluso em uma pequena ala do castelo. Inesperadamente lhe chega às mãos uma carta de seu grande e inseparável amigo da juventude, Konrad. O general o convida para jantar em seu castelo.  Esse amigo, quase um irmão, tinha desaparecido há 41 anos sem explicações ou despedidas. O jantar acaba se tornando um acerto de contas, quase um julgamento no qual o amigo que reaparece é acusado por ter demonstrado graves falhas de caráter no passado.
A escrita de Márai flui com facilidade e elegância. Suas descrições dos locais onde se desenrola a história tem visibilidade fotográfica. Vemos e sentimos o que ele nos passa, pois tudo vem carregado de detalhes, cores, comportamentos e metáforas, mas sem frieza e sim com muito sentimento. Seguem exemplos da fluência narrativa de Márai, em As Brasas:

A ama se sentou. Envelhecera naquele último ano. Depois dos noventa, a pessoa envelhece de forma diferente do que ocorre depois dos cinquenta ou dos sessenta. Envelhece sem rancores. O rosto de Nini era rosado e enrugado – assim envelhecem os tecidos de grande valor, as sedas que têm séculos de vida, nas quais uma família inteira gastou suas habilidades manuais, trançando junto com os fios todos os seus sonhos. No ano anterior ela adoecera, passando a sofrer de catarata num dos olhos, que ficou cinza e apagado. O outro olho permaneceu azul, com esse azul dos lagos das altas montanhas sob o sol de agosto. E esse olho sorria.

O castelo, era um mundo em si, como aqueles grandes e pomposos mausoléus de pedra onde definham os ossos de gerações inteiras e se esfarelam as mortalhas de seda cinza ou pano preto de homens e mulheres que viveram em outros tempos. Guardava o silêncio dentro de si, qual um prisioneiro que vegeta exangue na palha apodrecida de um subterrâneo, de barba comprida, vestido de trapos e coberto de mofo.

As longas falas do General na presença do amigo durante o jantar são na verdade um diálogo com ele mesmo. Expressam a necessidade que ele próprio tem de tentar chegar a conclusões sobre fatos marcantes de sua vida e sobre os quais, ele bem sabe, nada poderá fazer. Destaco um trecho expressivo desse monólogo interior:

Não acredita que o significado da vida é simplesmente a paixão que um dia invade nosso coração, nossa alma e nosso corpo e que, aconteça o que acontecer, continua a queimar eternamente, até a morte? [...] É aí que me pergunto: a paixão é de fato tão profunda, tão má, tão grandiosa, tão desumana?

Somente depois de muitos anos, com a implantação de um sistema político pluripartidário e a retirada as tropas soviéticas da Hungria,  a obra de Márai pôde ser novamente apreciada em seu país e ficou cada vez mais conhecida em todo o mundo.
Mas a Guerra Fria já o tinha levado a escolher viver nos Estados Unidos, onde, em 1989, pouco depois da morte de sua mulher, Sandor Márai se suicidou. 
           Em 1990, em uma homenagem póstuma, lhe foi concedido o prestigiado Prêmio Kossuth da Hungria, por sua significativa contribuição à Literatura. 
***
O romance foi adaptado para o teatro por Duca Rachid e Julio Fischer.
Na peça, Herson Capri e Genézio de Barros interpretam os dois homens que vivem a amizade intensa, que passa por duas guerras e se projeta como amor à mesma mulher.

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