8 de maio de 2011

Interpretação e interpretações de Cervantes

Interpretação
Trechos de Manuel Antonio de Castro em Poética e Poiesis: A questão da interpretação (1998)

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. 
(Guimarães Rosa)
A questão é: o que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se?
Interpretar-se é realizar-se.
O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negócio, na discussão dos preços ou do preço, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posições diversas, de onde o inter-pretium. Inter, quando traduzido por “entre” põe em cena o diálogo, o debate em que há posições diferentes. Indica também o lugar no qual e a partir do qual acontece e se desdobra o diálogo, o embate. O preço aparece como algo mutável, que se define no decorrer e como conseqüência do diálogo. É o valor que está em jogo. O diálogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tensão e relação do “entre” como diálogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimensão de toda interpretação: o barganhar, o especular. A interpretação é, pois, um agir que implica: diálogo, ethos, especulação.
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Interpretações de Cervantes
Trechos de prólogos de Jorge Luís Borges
Quijote, de Salvador Dali,1966
          1. 
          De bom grado, os platônicos poderiam imaginar que existe no Céu (ou na insondável inteligência de Deus) um livro que registra as delicadas emoções de um homem a quem nada, precisamente nada, ocorre, e outro que vai desfiando uma série infinita de atos impessoais, executados por qualquer um ou por ninguém. (...) O primeiro é a meta da novela psicológica; o outro, da novela de aventuras.
          Na literatura dos homens não há esse rigor. A novela mais turbulenta admite infiltrações psicológicas; a mais sedentária, um fato ou outro. Na terceira noite de As noites, um gênio encarcerado por Soliman numa vasilha de cobre e lançado ao fundo do mar jura enriquecer a quem o liberte, mas passam cem anos, e ele jura que o tornará senhor de todos os tesouros do mundo; e passam outros cem anos, e ele jura que lhe concederá três desejos; mas passam os séculos e, ao cabo, desesperado, ele jura matá-lo. Não seria esta uma genuína invenção do tipo psicológico, a um tempo verossímil e assombrosa? Algo semelhante acontece com o Quixote, que é a primeira e mais íntima das novelas de caracteres e o último e melhor dentre os livros de cavalaria.
          O fato é que em Cervantes, como em Jekyll, houve pelo menos dois homens: o duro veterano, ligeiramente miles gloriosus, leitor e amante de sonhos quiméricos, e o homem compreensivo, indulgente, irônico e sem fel. Idêntica discórdia aflora na violência das coisas narradas e na grata demora do narrador. Lugones salientou que os longos períodos de Cervantes não acertam nunca com o fim; a verdade é que quase não o procuram. Cervantes os deixa escorrer sem pressa, para leitores aos quais não se esforça por interessar e aos quais, não obstante, interessa. As duas vaidades opostas do fausto sonoro e da sentença lacônica estão dele muito distantes. Cervantes não ignora que o chamado estilo oral é uma das muitas vertentes do estilo escrito; seus diálogos levam os nomes de discursos. Os interlocutores não se interrompem e deixam que o o outro conclua. As frases truncadas do realismo de nosso tempo lhe teriam soado como torpeza indigna da arte literária.

          Julgado à luz dos preceitos da retórica, não há estilo mais precário que o de Cervantes. Abunda em repetições, em langores, em hiatos, em erros de construção, em ociosos e prejudiciais epítetos, em mudanças de propósito. A todos estes deslizes os anula ou tempera certo encanto essencial. Há escritores – Chesterton, Quevedo, Virgílio – interalmente suscetíveis de análise; nenhum procedimento, nenhuma felicidade há neles que não possa justificar o retórico. Outros – De Quincey, Shakespeare – abrangem zonas refratárias a qualquer exame. Outros, ainda mais misteriosos, não são analiticamente justificáveis. Não há uma única de suas frases, revisadas, que não seja corrigível; qualquer homem de letras pode apontar erros; as observações são lógicas, o texto original talvez não seja; apesar de assim incriminado, o texto é eficientíssimo, embora não saibamos por quê. A essa categoria de escritores que a simples razão não pode explicar pertence Cervantes.
Adaptação cinematográfica de Dom Quixote, direção de Orson Welles, com Francisco Reiguera e Akim Tamiroff,1960.
          2.
          Destino paradoxal o de Cervantes. Num século e num país de vaidosa artesania retórica, atraiu-o o que havia de essencial no homem, seja como tipo, seja como indivíduo. Depois de morto o reverenciaram como ídolo das pessoas que menos se parecem com ele, os gramáticos. Aldeões assombrados o veneraram porque sabia muitos sinônimos e muitos provérbios. Lugones, por volta de 1904, denunciou “os que, não vendo senão na forma a suprema realização do Quixote, permaneceram a roer a casaca cujas rugosidades escondiam a fortaleza e o sabor”; Groussac, anos depois, condenou a aberração de reunir “o milagre da obra-prima no sal grosso de seu estilo jocoso e, a partir daí, nos disparates de Sancho”; Alberto Gerchunoff, agora, nestas pensativas páginas póstumas, medita sobre o lado íntimo do Quixote. Descobre e examina dois paradoxos: o de Voltaire, “que não estimava excessivamente Miguel de Cervantes” e que, todavia, foi quixotesco ao extremo em sua defesa de Calas e de Sirven, vítimas judiciais; e o de Juan Montalvo, devoto de Cervantes, valente e justo, mas que estranhamente, não viu na história de Alonso Quijano outra coisa que um melancólico museu de palavras arcaicas. Montalvo, anota Gerchunoff, “exercitou-se talentosamente num esporte suntuoso da inteligência, sem aproximar-se de Cervantes.” Logo a seguir, numa oração que mereceria tornar-se famosa, fala das vozes forâneas e populares que Cervantes captou, “com ouvido de músico de rua”.
          Stevenson julgava que se falta encanto a um escritor, falta-lhe tudo.
Trad. Ivan Junqueira, edição de 1985.



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