Interpretação
Trechos de Manuel Antonio de Castro em Poética e Poiesis: A questão da interpretação (1998)
Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.
(Guimarães Rosa)
A questão é: o que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se?(Guimarães Rosa)
Interpretar-se é realizar-se.
O substantivo latino interpretatio tem origem na feira, no negócio, na discussão dos preços ou do preço, pretium, face ao qual os interlocutores assumem posições diversas, de onde o inter-pretium. Inter, quando traduzido por “entre” põe em cena o diálogo, o debate em que há posições diferentes. Indica também o lugar no qual e a partir do qual acontece e se desdobra o diálogo, o embate. O preço aparece como algo mutável, que se define no decorrer e como conseqüência do diálogo. É o valor que está em jogo. O diálogo em torno do jogo do valor se faz a partir do lugar no qual os dialogantes se movem. A este lugar de abertura e possibilidade do debate e embate deram os gregos o nome de ethos. A tensão e relação do “entre” como diálogo e do pretium como ethos fazem aparecer a terceira dimensão de toda interpretação: o barganhar, o especular. A interpretação é, pois, um agir que implica: diálogo, ethos, especulação.
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Interpretações de Cervantes
Trechos de prólogos de Jorge Luís Borges
Quijote, de Salvador Dali,1966 |
De bom grado, os platônicos poderiam imaginar que existe no Céu (ou na insondável inteligência de Deus) um livro que registra as delicadas emoções de um homem a quem nada, precisamente nada, ocorre, e outro que vai desfiando uma série infinita de atos impessoais, executados por qualquer um ou por ninguém. (...) O primeiro é a meta da novela psicológica; o outro, da novela de aventuras.
Na literatura dos homens não há esse rigor. A novela mais turbulenta admite infiltrações psicológicas; a mais sedentária, um fato ou outro. Na terceira noite de As noites, um gênio encarcerado por Soliman numa vasilha de cobre e lançado ao fundo do mar jura enriquecer a quem o liberte, mas passam cem anos, e ele jura que o tornará senhor de todos os tesouros do mundo; e passam outros cem anos, e ele jura que lhe concederá três desejos; mas passam os séculos e, ao cabo, desesperado, ele jura matá-lo. Não seria esta uma genuína invenção do tipo psicológico, a um tempo verossímil e assombrosa? Algo semelhante acontece com o Quixote, que é a primeira e mais íntima das novelas de caracteres e o último e melhor dentre os livros de cavalaria.
O fato é que em Cervantes, como em Jekyll, houve pelo menos dois homens: o duro veterano, ligeiramente miles gloriosus, leitor e amante de sonhos quiméricos, e o homem compreensivo, indulgente, irônico e sem fel. Idêntica discórdia aflora na violência das coisas narradas e na grata demora do narrador. Lugones salientou que os longos períodos de Cervantes não acertam nunca com o fim; a verdade é que quase não o procuram. Cervantes os deixa escorrer sem pressa, para leitores aos quais não se esforça por interessar e aos quais, não obstante, interessa. As duas vaidades opostas do fausto sonoro e da sentença lacônica estão dele muito distantes. Cervantes não ignora que o chamado estilo oral é uma das muitas vertentes do estilo escrito; seus diálogos levam os nomes de discursos. Os interlocutores não se interrompem e deixam que o o outro conclua. As frases truncadas do realismo de nosso tempo lhe teriam soado como torpeza indigna da arte literária.
Julgado à luz dos preceitos da retórica, não há estilo mais precário que o de Cervantes. Abunda em repetições, em langores, em hiatos, em erros de construção, em ociosos e prejudiciais epítetos, em mudanças de propósito. A todos estes deslizes os anula ou tempera certo encanto essencial. Há escritores – Chesterton, Quevedo, Virgílio – interalmente suscetíveis de análise; nenhum procedimento, nenhuma felicidade há neles que não possa justificar o retórico. Outros – De Quincey, Shakespeare – abrangem zonas refratárias a qualquer exame. Outros, ainda mais misteriosos, não são analiticamente justificáveis. Não há uma única de suas frases, revisadas, que não seja corrigível; qualquer homem de letras pode apontar erros; as observações são lógicas, o texto original talvez não seja; apesar de assim incriminado, o texto é eficientíssimo, embora não saibamos por quê. A essa categoria de escritores que a simples razão não pode explicar pertence Cervantes.
Na literatura dos homens não há esse rigor. A novela mais turbulenta admite infiltrações psicológicas; a mais sedentária, um fato ou outro. Na terceira noite de As noites, um gênio encarcerado por Soliman numa vasilha de cobre e lançado ao fundo do mar jura enriquecer a quem o liberte, mas passam cem anos, e ele jura que o tornará senhor de todos os tesouros do mundo; e passam outros cem anos, e ele jura que lhe concederá três desejos; mas passam os séculos e, ao cabo, desesperado, ele jura matá-lo. Não seria esta uma genuína invenção do tipo psicológico, a um tempo verossímil e assombrosa? Algo semelhante acontece com o Quixote, que é a primeira e mais íntima das novelas de caracteres e o último e melhor dentre os livros de cavalaria.
O fato é que em Cervantes, como em Jekyll, houve pelo menos dois homens: o duro veterano, ligeiramente miles gloriosus, leitor e amante de sonhos quiméricos, e o homem compreensivo, indulgente, irônico e sem fel. Idêntica discórdia aflora na violência das coisas narradas e na grata demora do narrador. Lugones salientou que os longos períodos de Cervantes não acertam nunca com o fim; a verdade é que quase não o procuram. Cervantes os deixa escorrer sem pressa, para leitores aos quais não se esforça por interessar e aos quais, não obstante, interessa. As duas vaidades opostas do fausto sonoro e da sentença lacônica estão dele muito distantes. Cervantes não ignora que o chamado estilo oral é uma das muitas vertentes do estilo escrito; seus diálogos levam os nomes de discursos. Os interlocutores não se interrompem e deixam que o o outro conclua. As frases truncadas do realismo de nosso tempo lhe teriam soado como torpeza indigna da arte literária.
Julgado à luz dos preceitos da retórica, não há estilo mais precário que o de Cervantes. Abunda em repetições, em langores, em hiatos, em erros de construção, em ociosos e prejudiciais epítetos, em mudanças de propósito. A todos estes deslizes os anula ou tempera certo encanto essencial. Há escritores – Chesterton, Quevedo, Virgílio – interalmente suscetíveis de análise; nenhum procedimento, nenhuma felicidade há neles que não possa justificar o retórico. Outros – De Quincey, Shakespeare – abrangem zonas refratárias a qualquer exame. Outros, ainda mais misteriosos, não são analiticamente justificáveis. Não há uma única de suas frases, revisadas, que não seja corrigível; qualquer homem de letras pode apontar erros; as observações são lógicas, o texto original talvez não seja; apesar de assim incriminado, o texto é eficientíssimo, embora não saibamos por quê. A essa categoria de escritores que a simples razão não pode explicar pertence Cervantes.
Adaptação cinematográfica de Dom Quixote, direção de Orson Welles, com Francisco Reiguera e Akim Tamiroff,1960. |
2.
Destino paradoxal o de Cervantes. Num século e num país de vaidosa artesania retórica, atraiu-o o que havia de essencial no homem, seja como tipo, seja como indivíduo. Depois de morto o reverenciaram como ídolo das pessoas que menos se parecem com ele, os gramáticos. Aldeões assombrados o veneraram porque sabia muitos sinônimos e muitos provérbios. Lugones, por volta de 1904, denunciou “os que, não vendo senão na forma a suprema realização do Quixote, permaneceram a roer a casaca cujas rugosidades escondiam a fortaleza e o sabor”; Groussac, anos depois, condenou a aberração de reunir “o milagre da obra-prima no sal grosso de seu estilo jocoso e, a partir daí, nos disparates de Sancho”; Alberto Gerchunoff, agora, nestas pensativas páginas póstumas, medita sobre o lado íntimo do Quixote. Descobre e examina dois paradoxos: o de Voltaire, “que não estimava excessivamente Miguel de Cervantes” e que, todavia, foi quixotesco ao extremo em sua defesa de Calas e de Sirven, vítimas judiciais; e o de Juan Montalvo, devoto de Cervantes, valente e justo, mas que estranhamente, não viu na história de Alonso Quijano outra coisa que um melancólico museu de palavras arcaicas. Montalvo, anota Gerchunoff, “exercitou-se talentosamente num esporte suntuoso da inteligência, sem aproximar-se de Cervantes.” Logo a seguir, numa oração que mereceria tornar-se famosa, fala das vozes forâneas e populares que Cervantes captou, “com ouvido de músico de rua”.
Stevenson julgava que se falta encanto a um escritor, falta-lhe tudo.
Stevenson julgava que se falta encanto a um escritor, falta-lhe tudo.
Trad. Ivan Junqueira, edição de 1985. |
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