26 de março de 2011

Cortázar: o ordinário e o extraordinário na gênese do fantástico

MBGLA
Julio Cortázar
Eu sei que faz cinco anos que estou numa das etapas mais negativas da minha vida. Mas sou tão pouco racional que não me ocorre a idéia de ir procurar um astrólogo e dizer: “escuta aqui, investigue esse assunto para mim”, porque sei que não vou ganhar nada com essa investigação. Tenho a sensação clara de que existe isso que as pessoas chamam às vezes de “destino”, e que num momento determinado se coloca contra você. [...] Tento assumir algo que sinto que me acontece, e contra o qual não posso fazer nada a não ser me defender com os meios que estiverem ao meu alcance.

Desde muito pequeno existe esse sentimento de que a realidade para mim não era apenas o que a professora ou minha mãe me ensinavam e o que eu podia verificar tocando e cheirando, mas que existiam, além disso, contínuas interferências de elementos que não correspondiam, no meu sentimento, a esse tipo de coisas. Essa foi a iniciação do meu fantástico. Quer dizer, não é um fantástico fabricado, como o fantástico da literatura chamada gótica, em que se inventa todo um aparato de fantasmas, de espectros, toda uma máquina de terror que se opõe às leis naturais, que influi no destino dos personagens.
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Posso dizer que as primeiras intuições que tive nesse plano, desde menino, foram tão normais e tão naturais como as que podia ter frente a qualquer manifestação tangível e aristotélica da realidade. 

Ou seja, uma espécie de aceitação prévia de qualquer coisa que os demais consideravam inexplicável, como um jogo de casualidades, ou como uma brincadeira de coincidências.

Desde criança desconfiei destas palavras: “coincidências”, “casualidades”. Porque me pareciam baratas demais. Na verdade, digo que fui um menino muito precoce e então tudo que existia de barato na inteligência daqueles que as crianças chamam de “os grandes” – ou seja, a família, minha família – eu notava, quase que com crueldade. Ouvia minha família falar e sabia, por antecipação, o que iam dizer. Porque um lugar-comum puxava o outro. Era um sistema já organizado de pensamentos em questão de política, de comida, de saúde, se o banho devia ser morno ou frio, se o bicarbonato fazia ou não fazia bem. E eu me divertia silenciosamente adiantando para mim mesmo tudo o que as pessoas iam dizer. Eu sabia que depois que minha mãe dissesse aquela frase,  minha avó diria outra que, na maioria dos casos, era a que eu tinha previsto. Emendavam de um lugar-comum a outro, de um juízo de valores a outro.
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A margem de pensamento dos adultos me parecia muito pequena no círculo da minha família, que era o único que eu conhecia. [...] Mas o fato é que, sendo precoce no campo das intuições, percebia no vocabulário dos adultos – aliás, um reflexo da realidade deles – que eles viam a realidade de um modo diferente do meu. Pois bem, percebia então naquele vocabulário uma espécie de desajuste.
Quando ouvia certos lugares-comuns, tinha a impressão de que provavelmente a verdade era o avesso daquilo. Naturalmente, a criança não diz essas coisas porque corre o risco de levar um tabefe, sobretudo nessas casas argentinas onde criança é criança e adulto é adulto e justamente por isso tem sempre razão. Nem precisa saber mais: basta ser adulto para ter razão. Mas, enfim, tudo isso é para explicar que não existe um momento no qual eu tenho definido o fantástico. Havia um mundo paralelo, misturado ao mundo de todos os dias, o mundo das escola e o mundo da casa, e eu me movia entre um e outro, flutuando.

Por exemplo, minhas brincadeira solitárias eram praticamente mágicas, totalmente diferentes das brincadeiras com meus amigos, que eram conhecidas. As minhas eram únicas: inventei um reino imaginário no jardim da casa, só para mim. Claro que eu sabia que era o jardim, mas sabia também que os grandes não sabiam que era ao mesmo tempo o “reino”. [...] Assim, no dia em que comecei a escrever poemas e contos, era quase inevitável que essa permeabilidade se abrisse. Na falta de uma palavra melhor, eu mesmo tenho usado “fantástico”.
Trechos de "O fascínio das palavras – entrevistas com Júlio Cortazar" (por Omar Prego) – trad. Eric Nepomuceno, Ed. José Olymplio, Rio de Janeiro: 1991.

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