Rotineiramente nos meus sonhos sou levado de roldão no turbilhão das chafurdices mais absurdas. E acordo brigado comigo mesmo, por ser frágil, pequeno, indefeso — criaturinha atômica perdida na grandeza das coisas.
Há pouco eu ia ladeira abaixo, desembestado, numa carreira de doido. E se não conseguisse nunca mais parar, fosse bater no fim do mundo? Bem feito, quem me havia mandado sair daquele jeito! Não, eu podia me esborrachar nas pedras, terminar todo arranhado, quebrar perna, braço, rachar a cabeça. Ah meu Deus! E que vontade de voltar atrás, ao tempo da partida! De pelo menos estacar, tomar fôlego, andar apenas, passo aqui, passo ali, feito cachorro vadio. Porém já nenhuma vontade eu carregava, nada eu conseguia fazer para diminuir a velocidade, desgovernado seixo na correnteza. E descia, rolava, perdido, danado. Grão de areia arrastado pelo ar, eu sentia sumir-me o chão dos pés, levitar, alçar vôo. As pernas, soltas no espaço, balançavam agarradas ao resto do corpo, feito as de um enforcado. E me guiavam os quatro ventos do desespero para as alturas e as perdições. Na boca, o gosto do nada; nos olhos, o medo de precipitar-me; no peito, a ânsia da desgraça. Sim, a queda. Não podia durar muito minha aventura de pássaro sem asas. Como voar para sempre? A menos que eu buscasse o mar, seguro porto de todos os voadores. Nunca, ele não existia, e, se existisse, vivia longe, longe demais. Mas quanta burrice, eu quase alcançava tocar com os pés as cabeleiras das árvores. Não carecia preocupar-me tanto. Bastava soltar-me das argolas do céu e saltar.
Com alguma perícia, agarrava-me aos galhos e, macaco velho, evitava o tombo. E ainda dava cambalhotas no ar, pulava de galho em galho, imitava Tarzan. E se me estrepasse? Não, não me restava salvação, condenado a perambular entre as estrelas, até perder todas as forças e... ploft. Era uma vez um menino que desceu a ladeira da vida, tomou carreira, subiu feito balão e espatifou-se todo.
Não deixei de voar, não avistei o mar, não me agarrei aos galhos das árvores e o sonho terminou em gritaria.
Há muitos anos, eu vivia constantemente machucado, ferido, coberto de ronchas. E, ainda por cima, minha mãe me cobria de peia. Deixasse de ser tão molenga! Eu não me emendava, no entanto. Caía, apanhava, caía de novo, apanhava mais. Por que não largava essa mania de viver trepado, feito macaco? Porém as mangueiras me encantavam. Difícil só alcançar o primeiro galho. Daí em diante eu me perdia, metido entre as folhagens, escondido do mundo. E a sensação de poder cair! Aquele vento doido, o desequilíbrio, o chão coberto de folhas secas, pintinhos entretidos a caçar insetos, aos pios, frágeis, indefesos entre os pés sujos e desatentos dos porcos aos roncos! Então aconteceu qualquer coisa comigo e eu pulei? Ou caí? Tudo isso depois de me fartar de chupar as mangas amassadas e podres do chão. Caíam de maduras ou por arte dos meninos. Eu não participava dessas brincadeiras. E sempre pegava a sobra. Até o sobejo dos bichos.
Aprendi cedo a levar quedas, ou dar pulos; ou voar. Esses três tipos de ginástica se confundiam em mim. Eu caía, pulava ou voava da mangueira? Da janela de minha casa, porém, eu conseguia pular mesmo. E voava até o meio da rua. Chamava os colegas e fazíamos apostas.
Eu devia ter nascido pássaro. Essa vontade de pular, de jogar-me ao chão, de lançar-me do alto. Apenas o espaço vazio, chão, a terra. E o vento que bate, açoita, puxa, empurra.
Quando me senti bem treinado, resolvi pular do muro alto do quintal. Embaixo só pedras, espinhos, formigas. Caí e quase desmaiei. Levantei-me, cambaleante, machucado, arranhado. Ainda bem que não havia ninguém por perto. Só minha decepção. Quando entrei para casa, mamãe ficou muito nervosa e agitada. Eu disse ter pulado uma cerca, com medo de um touro. Eu não podia dizer a verdade. Ou touro, ou tourada. “Esse calção encarnado”.
Antes da seguinte experiência tive a idéia de fazer testes com formigas. Primeira etapa: arranjar uma caixa de fósforos, qualquer latinha. Segunda: encontrar uma porção de formigas. Terceira: ter paciência e coragem de pegar com o maior cuidado as bichinhas. Ninguém consegue fazer isso, porque formiga é bicho danado de esperto. Mas eu era esperto e meio. E conseguia juntar dez, doze, dezenas delas. Subia ao muro, abria a caixinha, as formigas saíam apressadinhas e eu dava um sopro. As coitadas voavam, caíam e não acontecia nada de mais. Ao chegarem ao chão, corriam, apavoradas. Talvez fossem leves demais.
Experimentei também as bonecas de minhas irmãs. Do lugar mais alto do mundo — a torre da igreja. E de lá soltei uma a uma, encantado com suas quedas lentas. Corri as escadas para ver o estado delas. No patamar, porém, não encontrei mais nenhuma. Teriam voado? Para a serra, lá onde moravam os passarinhos? Ou haviam voltado para o alto da torre, à minha procura? Espiei para cima, para todos os lados e cadê boneca? Só passarinho voando. E não podiam ser bonecas de pano. Ou podia boneca se transformar em passarinho?
Noutro dia o sacristão não me deixou subir à torre. Precisava enfeitar a igreja para a procissão. Voltei para casa, doido para ver de novo boneca transformar-se em passarinho.
Na hora da procissão, o povo em fila, as casas fechadas. Nos parapeitos das janelas nenens de colo e suas avós, e nas portas velhinhos sentados em cadeiras de balanço. Tomei a dianteira, impaciente. Ao nos aproximarmos, deixei a fila e subi à torre. Debruçado sobre a janelinha, tive vontade de cuspir na boiada. A igreja se entupiu de gente. No patamar ficou quem não pôde entrar. Tantas cabeças juntas nunca tinha visto assim de cima. Admirado, ia me esquecendo das bonecas. Deu-me vontade de novo de cuspir. Desisti: o sacristão podia me mandar descer. Devia era jogar logo as bonecas. E joguei. Vôo bonito. Pareciam anjos descendo do céu. Tive medo de olhar, vontade de me retirar da janela e me esconder dentro do sino ou detrás do sacristão.
O povo, ao avistar a chuva de anjos, gritava e corria. As bonecas caíam. O padre pedia calma aos fiéis. Eu me espremia de medo. As bonecas assustavam o povo de Deus. E se o povo subisse as paredes para me castigar? Aranhas vingativas que me jogassem ao solo. Eu me espatifaria feito uma boneca. Não, voaria e viraria anjo ou passarinho e sobrevoaria a cidade e fugiria para a serra. O padre me amaldiçoaria, me chamaria de Maligno. Mostraria a cruz e eu voltaria a ser gente, menino maligno. Cairia, me despedaçaria todo. Não precisava nem cair. Bastava pular da torre. Todas aquelas ovelhas correriam, fugiriam de mim e me deixariam morrer. Nenhuma abriria os braços para me aparar. Eu me quebraria de encontro ao duro chão do patamar. A menos que o povo se juntasse de novo. Então eu cairia em cima dele e me salvaria. Não, aquelas cabeças eram duras. Serviam então as mãos. E se seus dedos me furassem, me espetassem? Nem isso. Aquele povo imenso abria caminho para minha morte. Furava um buraco para eu me enterrar. Eu e as bonecas.
Todos olhavam para cima, embasbacados, como se eu fosse a papa-ceia. O vento soprava. O espaço vazio, cinzento. Minhas irmãs choravam a morte de suas bonecas que voavam para a serra e às vezes caíam como frutas maduras. Por onde andava o sacristão que não vinha bater o sino? A procissão continuava, mas no patamar não cabia sequer mais um cristão. Os fiéis esperavam Deus. Se eu caísse? Se eu voasse? Se eu virasse anjo, passarinho, aquele homem de asas?
Com alguma perícia, agarrava-me aos galhos e, macaco velho, evitava o tombo. E ainda dava cambalhotas no ar, pulava de galho em galho, imitava Tarzan. E se me estrepasse? Não, não me restava salvação, condenado a perambular entre as estrelas, até perder todas as forças e... ploft. Era uma vez um menino que desceu a ladeira da vida, tomou carreira, subiu feito balão e espatifou-se todo.
Não deixei de voar, não avistei o mar, não me agarrei aos galhos das árvores e o sonho terminou em gritaria.
Há muitos anos, eu vivia constantemente machucado, ferido, coberto de ronchas. E, ainda por cima, minha mãe me cobria de peia. Deixasse de ser tão molenga! Eu não me emendava, no entanto. Caía, apanhava, caía de novo, apanhava mais. Por que não largava essa mania de viver trepado, feito macaco? Porém as mangueiras me encantavam. Difícil só alcançar o primeiro galho. Daí em diante eu me perdia, metido entre as folhagens, escondido do mundo. E a sensação de poder cair! Aquele vento doido, o desequilíbrio, o chão coberto de folhas secas, pintinhos entretidos a caçar insetos, aos pios, frágeis, indefesos entre os pés sujos e desatentos dos porcos aos roncos! Então aconteceu qualquer coisa comigo e eu pulei? Ou caí? Tudo isso depois de me fartar de chupar as mangas amassadas e podres do chão. Caíam de maduras ou por arte dos meninos. Eu não participava dessas brincadeiras. E sempre pegava a sobra. Até o sobejo dos bichos.
Aprendi cedo a levar quedas, ou dar pulos; ou voar. Esses três tipos de ginástica se confundiam em mim. Eu caía, pulava ou voava da mangueira? Da janela de minha casa, porém, eu conseguia pular mesmo. E voava até o meio da rua. Chamava os colegas e fazíamos apostas.
Eu devia ter nascido pássaro. Essa vontade de pular, de jogar-me ao chão, de lançar-me do alto. Apenas o espaço vazio, chão, a terra. E o vento que bate, açoita, puxa, empurra.
Quando me senti bem treinado, resolvi pular do muro alto do quintal. Embaixo só pedras, espinhos, formigas. Caí e quase desmaiei. Levantei-me, cambaleante, machucado, arranhado. Ainda bem que não havia ninguém por perto. Só minha decepção. Quando entrei para casa, mamãe ficou muito nervosa e agitada. Eu disse ter pulado uma cerca, com medo de um touro. Eu não podia dizer a verdade. Ou touro, ou tourada. “Esse calção encarnado”.
Antes da seguinte experiência tive a idéia de fazer testes com formigas. Primeira etapa: arranjar uma caixa de fósforos, qualquer latinha. Segunda: encontrar uma porção de formigas. Terceira: ter paciência e coragem de pegar com o maior cuidado as bichinhas. Ninguém consegue fazer isso, porque formiga é bicho danado de esperto. Mas eu era esperto e meio. E conseguia juntar dez, doze, dezenas delas. Subia ao muro, abria a caixinha, as formigas saíam apressadinhas e eu dava um sopro. As coitadas voavam, caíam e não acontecia nada de mais. Ao chegarem ao chão, corriam, apavoradas. Talvez fossem leves demais.
Experimentei também as bonecas de minhas irmãs. Do lugar mais alto do mundo — a torre da igreja. E de lá soltei uma a uma, encantado com suas quedas lentas. Corri as escadas para ver o estado delas. No patamar, porém, não encontrei mais nenhuma. Teriam voado? Para a serra, lá onde moravam os passarinhos? Ou haviam voltado para o alto da torre, à minha procura? Espiei para cima, para todos os lados e cadê boneca? Só passarinho voando. E não podiam ser bonecas de pano. Ou podia boneca se transformar em passarinho?
Noutro dia o sacristão não me deixou subir à torre. Precisava enfeitar a igreja para a procissão. Voltei para casa, doido para ver de novo boneca transformar-se em passarinho.
Na hora da procissão, o povo em fila, as casas fechadas. Nos parapeitos das janelas nenens de colo e suas avós, e nas portas velhinhos sentados em cadeiras de balanço. Tomei a dianteira, impaciente. Ao nos aproximarmos, deixei a fila e subi à torre. Debruçado sobre a janelinha, tive vontade de cuspir na boiada. A igreja se entupiu de gente. No patamar ficou quem não pôde entrar. Tantas cabeças juntas nunca tinha visto assim de cima. Admirado, ia me esquecendo das bonecas. Deu-me vontade de novo de cuspir. Desisti: o sacristão podia me mandar descer. Devia era jogar logo as bonecas. E joguei. Vôo bonito. Pareciam anjos descendo do céu. Tive medo de olhar, vontade de me retirar da janela e me esconder dentro do sino ou detrás do sacristão.
O povo, ao avistar a chuva de anjos, gritava e corria. As bonecas caíam. O padre pedia calma aos fiéis. Eu me espremia de medo. As bonecas assustavam o povo de Deus. E se o povo subisse as paredes para me castigar? Aranhas vingativas que me jogassem ao solo. Eu me espatifaria feito uma boneca. Não, voaria e viraria anjo ou passarinho e sobrevoaria a cidade e fugiria para a serra. O padre me amaldiçoaria, me chamaria de Maligno. Mostraria a cruz e eu voltaria a ser gente, menino maligno. Cairia, me despedaçaria todo. Não precisava nem cair. Bastava pular da torre. Todas aquelas ovelhas correriam, fugiriam de mim e me deixariam morrer. Nenhuma abriria os braços para me aparar. Eu me quebraria de encontro ao duro chão do patamar. A menos que o povo se juntasse de novo. Então eu cairia em cima dele e me salvaria. Não, aquelas cabeças eram duras. Serviam então as mãos. E se seus dedos me furassem, me espetassem? Nem isso. Aquele povo imenso abria caminho para minha morte. Furava um buraco para eu me enterrar. Eu e as bonecas.
Todos olhavam para cima, embasbacados, como se eu fosse a papa-ceia. O vento soprava. O espaço vazio, cinzento. Minhas irmãs choravam a morte de suas bonecas que voavam para a serra e às vezes caíam como frutas maduras. Por onde andava o sacristão que não vinha bater o sino? A procissão continuava, mas no patamar não cabia sequer mais um cristão. Os fiéis esperavam Deus. Se eu caísse? Se eu voasse? Se eu virasse anjo, passarinho, aquele homem de asas?
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